Os úberes do infinito, de R. Roldan-Roldan
Por Pedro Fernandes
Lembro
que certa vez, nalguma post das que por aqui já fiz circular ter falado acerca
de minha atração por fuçar curiosidades nas bibliotecas. Faz cerca de um ano,
acho que isso, se não me engano, faz mesmo dois (a mim me parece que foi quando me
encontrei com a obra de José Saramago pela primeira vez), que eu encontrei um
sujeito chamado por R. Roldan-Roldan. O livro era Os úberes do infinito –
uma obra que, nossa!, transpira poesia por todos os poros da palavra.
Encantei-me. Pesquisei mais e descobri mais coisas do autor na pequena
biblioteca da universidade.
Li Ao sul do desejo. Passei a vista por Carta
a uma mulher separada e Azeviche ou Nossa Senhora do Sagrado Sexo.
Bem, surpresa tive quando numa roda de sorteios feita num sarau com leitura de poemas na faculdade estava o livro primeiro que li de R. Roldan-Roldan,
doado por outro poeta (em breve falarei dele) Leontino Filho (que me orgulho de
tê-lo como mestre, orientador e etc. e tal). E arrumando minhas primeiras
bagagens para voltar do exílio que estive quatro anos para cursar faculdade em
Mossoró, dou de cara com Os úberes do infinito (vê-se que ganhei o livro
do Roldan-Roldan naquela noite, coisa muito rara). E é sobre esse livro e sobre R. Roldan-Roldan
que falo hoje neste blog.
Fuçando a web – vou logo ao site Jornal de Poesia – de outro grande poeta – o Soares
Feitosa (quanto tempo que não o escrevo, nem dele recebo mais nada!)
encontro alguns elementos biográficos desse sujeito que valem a pena lembrar: Roldan-Roldan nasceu na Espanha, foi criado no Marrocos e passou sua
educação na França. É radicado no Brasil. Teve uma infância conturbada:
separou-se dos pais durante o pós-guerra devido à perseguição política.
Tornou-se empregado numa empresa de transporte aéreo e, com isso viajou pelo
mundo.
Numa dessas viagens, um marco em sua vida, é detido por engano no
Afeganistão, país que o marcará para o resto de sua existência. Em 1996, já
gerente de uma multinacional e com três filhos, abandona absolutamente tudo
para se dedicar ao ofício da literatura. Come o pão que o diabo amassou. Mas, coerente e
liberto, assume seu destino e sente-se finalmente digno e em paz. É autor de mais de 20
livros publicados. Os 5 primeiros (3 na França e 2 no Brasil) são por ele
destruídos depois de editados e não constam de sua bibliografia. Sua obra, que
abrange romance, conto, poesia e teatro, vai aos extremos. Como sua vida. Com a
qual se confunde. Da paixão ibérica, do ceticismo gaulês, do solo islâmico e da
sensualidade tropical surge a cor intrínseca de sua identidade, obsessão e tema
principal de sua obra.
"Os úberes do infinito" é o nome também da primeira parte do livro, formado ainda por "Pelas frestas do silêncio", "Definições", "Litania da virada do século", "Quatro orações" e "Três cores". O que fica premente da leitura é o trabalho fascinante de renovação da linguagem (instrumento tão caro à poesia depois das vanguardas, sim, sempre acreditamos na impossibilidade de qualquer coisa mais ousada depois das vanguardas). Mas, atenção! O livro de Roldan-Roldan não pratica malabarismos com a linguagem; é um exercício acurado de desobediência da palavra polida pela palavra escrachada. Uma conjunção que, os iludidos com a forma simples da língua, há-de chamar isso que se apresenta, em alguns casos (não em Os úberes), de pornográfico, pelo vocabular, em outros, de indecifrável, pelo uso da palavra. Este último epíteto, creio, não faria mal à obra, sobretudo, porque, o poeta tem consciência plena do sublime da palavra e não pratica regurgitos de palavreado fútil. É tudo muito bem assustado, singelo e plenamente bem gerido. Diante da incapacidade de dizer mais, deixo o poema falar. Seleciono um poema das três primeiras partes do livro.
De "Os úberes do infinito"
Estendido sobre o algodão dos sonhos
em tardes vestidas de chuva
diluo o ego em palácios de penumbra
lácteo prazer que por fissuras ancestrais
pontua o sabor de identidade
lapidando transparências que mentem
ocultando verdades opacas que transpiram luz
verde ou azul sagrados códigos
que me acendem milênios
fecho de constelações
adormecidas em longínquas memórias
buscando o ritmo do eterno
em brechas esquecidas pela rapidez
humildes lampejos de lucidez
na vastidão da gangrena
pulsando
vida
ser
cumes por alcançar abismos por preencher
êxtases de comunhão universal.
De "Pelas frestas do silêncio"
No corte transversal
a lei do revezamento
desmente o absoluto
De "Definições"
Amizade,
fator circunstancial
De "Litania da virada do século"
I
A Palavra segregada pela imagem
desterra-se nas savanas do inexistente
o Verbo se faz deserto
mergulhando no Nada
sentimentos racionados
o Céu esvazia-se
nem sequer um deus de segunda mão
nem ao menos um anjo caído
a Papoula costura suas pétalas rasgadas
a Azinheira cola seus galhos
ouve-se o Buxo uivando a seiva derramada
a Amendoeira recolhendo suas últimas flores
o Plátano tossindo tísico
o passo ferido do Coala
e tu carne caolha de matadouro
otimista alienado
fantoche satisfeito
continuas consumindo a mentira imposta
manipulando
Ergue-te!
Contesta!
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