José Saramago de “O ano de 1993” é um poeta ruim?

Por Pedro Fernandes

1. Por motivo de viagem, sai mais uma vez o Letras in.verso e re.verso para uma pequena estadia sem postagens. É possível que, quando voltar, muito provavelmente na segunda-feira próxima, já no mês de Machado de Assis, recorra a atualizações mais frequentes. Veremos. Deixo ao leitor um tema que poderá dar o que falar.

2. Refleti aqui, certa vez, sobre a fala de um professor e crítico literário que discorria acerca do que denominava pontuação insólita de José Saramago; em seguida, apresentei um Saramago não tão conhecido dos leitores, o poeta.

3. Hoje retomo a esta última post para fazer o que fiz na primeira, sugerir algumas questões anotadas de outro artigo, esse do professor de Teoria da Universidade de Campinas (Unicamp) Alcir Pécora, em que ele afirma ser o escritor português tudo, exceto poeta, num artigo para o jornal Folha de São Paulo logo quando do lançamento do livro O ano de 1993, publicado em Portugal em 1975 e no Brasil, ano passado.




No silêncio dos olhos

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?

Longe de ser um “saramaguista”, mas como bom saramaguiano, as palavras do Professor Alcir Pécora veiculadas no jornal Folha de São Paulo em torno do livro O ano de 1993, de José Saramago (Companhia das Letras, 2007), me soaram destoantes. Não consigo encontrar, no vão de minha insignificância teórica – não sou nenhum profundo conhecedor da obra do autor português que só há poucos descobri e me tornei leitor apaixonado, tampouco professor de Teoria da Literatura num centro de excelência como julgo ser a universidade Pécora onde leciona – mas, continuo, não consigo encontrar em que parte o livro lido poderia sugerir o tom de certa revolta apresentado no artigo “Saramago pré-Nobel faz poesia ruim”. Ele diz que “José Saramago não é poeta. ‘O ano de 1993’ é prova cabal disso. É tão ruim como poesia que deixa até supor que possa ter mérito como prosa. (...) Se algum dia a Ilustrada tiver a idéia de fazer uma dessas deliciosas enquetes sobre os piores versos do século passado, já adianto meu voto.”

Bem, diante de tudo, resolvi investigar mais nas malhas do virtual sempre procurando algo sobre O ano de 1993 capaz de ampliar essa leitura de Pécora ou mesmo alguma compreensão que se aproximasse do estranhamento do professor. Encontro um blog que postou fragmentos do artigo e abaixo se seguiam algumas opiniões. Resolvi então dá a minha sob forma deste texto – quer dizer, está aqui a gênese dessas notas; são uma maneira de resposta ao texto citado, que, repito, soou-me implicante.

Haveremos de considerar para todos os efeitos o cenário porque passa os gêneros literários do Realismo para cá. São todos eles resultados de uma lenta transformação operada pelos criadores ao longo da história da literatura e suas bases definidoras, originais, portanto, se é que um dia houveram, embora continuem como modelo criativo, há muito estão caducas – de modo que em muitos casos é-se praticamente impossível definir fronteiras do que venha a ser prosa e poesia.

Ora, a distinção entre prosa e poesia, questão nunca superada, sequer se encontra no horizonte do tempo de concepção de O ano de 1993, tampouco reside nela a primeira escolha dos escritores. Ora, o que será a poesia depois dos poemas em prosa de Rimbaud ou dos caligramas de Apollinaire? E, nem mesmo o radicalismo criativo dos dois poetas é praticado por José Saramago, afinal, o que faz o autor é eleger a forma do versículo e propor, fragmentariamente, o itinerário de um roteiro narrativo; textualidade que se imprime das influências das vanguardas (simbolista e surrealista, principalmente) e da contaminação de linguagens, como as experimentadas entre as artes plásticas, o cinema na literatura.

Acho que, apenas por esse motivo, dispomos de elementos interessantes ao questionamento da posição crítica do professor. Mas, cito a professora Maria Alzira Seixo – a quem também o professor derruba com certa calhordice com os designativos de “valente apologista do Nobel para Saramago” e “passada para as fileiras do arqui-rival Lobo Antunes”:

O Ano de 1993 é um livro de teor inesperado, intrigante, simultaneamente misterioso e sedutor na sua indecisão estrutural, na sua feição alegórica e na indecisão de caminhos interpretativos que pode abrir. Embora nenhum subtítulo o integre num género literário determinado, certas indicações do autor parecem situá-lo no domínio da poesia, e com efeito a sua estrutura, organizada em 30 partes (poemas ou capítulos), assenta na escrita versicular, que aliás encontrámos em alguns textos de Provavelmente Alegria; no entanto, há um fio narrativo sensível ao longo do livro, com movimentos de progressão e de clímax que apontam para uma urdidura novelística - sendo sobretudo perceptível a intenção fantástica que, hesitando entre um maravilhoso de índole profética e uma nítida tendência para a ficção científica, pela primeira vez organiza com coesão orgânica numa obra do autor esta fundamental convergência “deste mundo e do outro”. Herda assim este texto da prática da crónica o tom sentencioso e a tendência moralizante (ou, pelo menos, judicativa) que irão persistir na sua restante obra; de algumas das melhores páginas dessa sua importante actividade de cronista, assim como da experiência lírica, traz ele também um veio poético, essencialmente expresso pelos processos metafórico e alusivo, que lhe comunicam uma funda capacidade evocativa; mas o seu mais importante sentido situa-se, a nosso ver, no esforço de transposição que pela primeira vez José Saramago pratica em relação ao tratamento do mundo, que já não é aqui abordado enquanto circunstância efectiva mas como formulação poética literal que, justamente por essa sua natureza poética, adquire uma significação humana, não só pela mensagem de conhecimento que se procura transmitir, mas também pela irradiação semântica multivalente que a criatividade verbal produz nos efeitos criados pela sua leitura.”

Não vejo que o trabalho de um crítico literário seja o de “derrubar” escritores. Posso incitar um debate de idéias, contrapor visões com as quais não compartilho porque sou moldado por certa determinante teórica, e mesmo questionar o trabalho do escritor, embora os criadores pouco liguem para isso, mas levá-lo abaixo, não sei se é uma alternativa saudável. Isso me parece soar um tanto mal, tendo em vista que o nosso trabalho enquanto crítico depende exclusivamente do que fazem os escritores. Se eles não existissem, existiria a crítica literária? Se existisse, estaríamos desempregados.

O mundo pintado pelo Professor Alcir Pécora deixa-se entrever como uma grande ribalta onde reina a rivalidade, do quem é o maior ou o melhor. Compreensível porque é mesmo este o mundo a que pertence. Conheço, embora busque praticar outra postura. Dizer que José Saramago e António Lobo Antunes são arqui-rivais me parece a mais pura infantilidade, das mesmas que colocam em lados opostos Dostoiévski e Tolstói, Machado de Assis e Eça de Queirós. E, para isso, não resiste qualquer explicação. Os escritores podem (e devem) ter visões diferentes de mundo e de escrita, e mesmo sobre o papel do escritor, e mesmo rivalidades, mas estas, receio, é lá com eles. Quando crítico faz dela matéria induz ao leitor se guiar por este ou aquele caminho, quando a opção mais interesse é levá-los aos vários possíveis. Um crítico não é um construtor de inimizades à base de uma fofoca grosseira de mesa de bar ou mesmo um tomador público de suas posições pessoais ou das posições dos escritores.

Esse caminho me parece só o mais fácil a quem quer construir um lugar ao sol pela aparição polêmica amparada nos que têm alcançada essa posição. 



Não me parece ser O ano de 1993 um livro de alegoria barata, mas, como todo poema (se poema for) um corpo carregado de sentidos e caminhos possíveis. Pela estrutura, creio que o livro inaugura um novo modo de escrita literária que, no projeto literário de José Saramago se confunde com uma transição entre o trabalho experimental com a escrita, praticado desde sua frustra estreia como romancista e responsável por momentos interessantes (como o do poeta e o do cronista). É um livro, portanto, que cobra um estudo mais detalhado, antes de quaisquer críticas mesquinhas e superficiais. Louvo a opinião de Maria Alzira Seixo.

Se já deixei que o tom de poesia saramaguiana abrisse a post, em discordância da fala de Pécora, deixo que novamente a poesia fale; agora, com alguns fragmentos d’O Ano de 1993 (transcrevo de acordo com a forma que se apresenta na edição lindinha da Companhia das Letras):

2

       Os habitantes da cidade doente de peste 
estão reunidos na praça grande que assim fi-
cou conhecida porque todas as outras se atu-
lharam de ruínas

       Foram tirados das suas casas por uma or-
dem que ninguém ouviu

       Porém segundo estava escrito em lendas 
antiquíssimas haveria vozes vindas do céu ou 
trombetas ou luzes extraordinárias e todos 
quiseram estar presentes

       Alguma coisa podia talvez suceder no 
mundo antes do triunfo final da peste nem 
que fosse uma peste maior

       Ali estão pois na praça angustiados e em 
silêncio à espera

       E depois nada mais se ouve que uma aé-
rea e delicada música de cravo

       Qualquer fuga composta há duzentos e 
cinquenta anos por João Sebastião Bach em 
Leipzig

       É então que os homens e as mulheres sem 
esperança se deixam cair no pavimento estala-
do da praça

      Enquanto a música se afasta e voa sobre 
os campos devastados


4

      O interrogatório do homem que saiu de 
casa depois da hora de recolher começou há 
quinze dias e ainda não acabou

     Os inquiridores fazem uma pergunta em 
cada sessenta minutos vinte quatro por dia 
e exigem cinquenta e nove respostas diferen-
tes para cada uma

     É um método novo

     Acreditam que é impossível não estar a res-
posta verdadeira entre as cinquenta e nove que 
foram dadas

     E contam com a perspicácia do ordena-
dor para descobrir qual delas seja e a sua li-
gação com as outras

    Há quinze dias que o homem não dorme 
nem dormirá enquanto o ordenador não dis-
ser não preciso de mais ou o médico não
preciso de tanto

     Caso em que terá o seu definitivo sono

     O homem que saiu de casa depois da ho-
ra de recolher não dirá por que saiu

     E os inquiridores não sabem que a verda-
de está na sexagésima resposta

     Entretanto a tortura continua até que 
o médico declare

     Não vale a pena


12

    Um dos resultados da catástrofe foi que 
de uma hora para a outra os animais domés-
ticos deixaram de o ser

     A primeira vítima de que houve notícia
foi a mulher do governador escolhido pelo 
ocupante

     Quando o macaco amestrado que a diver-
tia nas horas de aborrecimento a crucificou 
no portão do jardim enquanto as galinhas saí-
ram da capoeira para vir arrancar-lhe à bica-
da as unhas dos pés

     Muitas velhinhas inocentes foram arranha-
das por gatos castrados de estimação em me-
mória do atentado sofrido

   E numerosas crianças ficaram infeliz-
mente cegas pelos bicos agudos das aves que 
se atiravam dos ramos e das alturas como pe-
dras

    Privadas dos animais domésticos as pes-
soas dedicaram-se activamente ao cultivo de 
flores

    Destas não há que esperar mal se não for 
dada excessiva importância ao recente caso de 
uma rosa carnívora


14

     Nos quatro pontos cardeais os vigias de-
fendem o sono cansado da tribo ou rebanho 
de gente que vagueia pelos campos

    Um homem ao norte uma mulher ao sul 
outro homem a oriente e a ocidente a segun-
da mulher

    Estão sentados de pernas cruzadas atentos 
a todas as sombras e gritam quando há perigo

     Mas porque os perseguidores não gostam 
de atacar na escuridão a noite decorre mui-
tas vezes calma apenas fria

   Ao amanhecer a tribo acorda e divide-se 
em quatro grupos conforme os pontos car-
deais e vai agradecer aos vigias a vida conser-
vada

   Depois o homem do norte e a mulher do 
sul o homem do oriente e a mulher do oci-
dente juntam os sexos porque assim foi de-
cidido que deveria acontecer todas as manhãs

   Enquanto a união dura cantam em redor a única
canção feliz que não esqueceram

    O sol levanta-se sobre os quatro corpos nus 
que são a esperança inconsciente da tribo

    Entretanto acende-se a primeira foguei-
ra e o fumo azul da lenha sobe para o céu


Referências

PÉCORA, Alcir. "Saramago pré-Nobel, faz poesia ruim". Folha de São Paulo, 22 de setembro de 2007.
SARAMAGO, José. O ano de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SEIXO, Maria Alzira, O Essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1987, p. 22-25.



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