Vida e obra de Giosuè Carducci
Por Paul Renucci
Se há poetas cuja obra pode ser apreciada sem nenhuma referência a
fatos biográficos ou a acontecimentos históricos de sua época, Giosuà Carducci
não é um deles. Sempre solicitado pelos acontecimentos do dia ou pelo incidente pessoal, mais inclinado à polêmica do que ao recolhimento sereno, não
se esquivando, quando é o caso, de compensar a rapidez da meditação pelo
trovão da linguagem, Carducci responde bem à imagem de “eco sonoro”, de um eco
posto no centro de um século singularmente rico em acontecimentos.
Não se deveria esquecer ainda que este poeta foi um professor e não
o foi apenas de maneira acidental ou acessória como num Mallarmé; ensinou sem
interrupção durante quase meio século, antes em estabelecimentos secundários
(San Miniato al Tedesco, Pistóia) depois, desde a idade de vinte e cinco anos, na Faculdade de Letras de Bolonha, que ele não
deveria mais abandonar. Sabe-se que foi mestre ativo, ouvido, que sua produção
crítica teve repercussão pouco menor que a sua produção poética. Poucos
criadores tiveram que se interessar tão constantemente pela história de seus
antecessores e poucos poetas tanto tiveram que lidar com a poesia dos outros. E
esta exigência se revela na erudição, às vezes alusiva, de bom número de seus
poemas como ainda nas suas experiências de prosódia erudita, para não dizer do
léxico às vezes utilizado, arcaizador ou latinizante.
Desdenhoso, iconoclasta, tumultuário
Giosuè Carducci nasceu a 27 de julho de 1835 em Val di Castello,
secção da comuna de Pietrasanta (hoje Pietra-santa-Carducci) em Versília, na
Toscana de nordeste, onde viveu seus três primeiros anos.
Seu pai, médico sem fortuna, teve que mudar muitas vezes de sede de clínica.
Depois de Pietrasanta foi a vez de Bolgheri, depois Castagnetto Marittimo,
depois enfim Laiático. A mais longa permanência foi em Bolgheri, onde os
Carducci passaram nove anos. “Triste primavera” dirá mais tarde o poeta falando
de sua infância, repartida entre um lar sombreado pelo humor de um pai tão
irascível quanto melancólico, e os bosques ou as ribas semi-desertas,
insalubres, entregues às emanações da maremma.
A vida era difícil para o Dr. Carducci, sustentado por uma clientela
camponesa miserável. Além disto, suas opiniões políticas não favoreciam em nada
a conquista de uma clínica mais afortunada; opiniões difíceis de definir com
precisão. Nelas entrava, ao que parece, um pouco de espírito filosófico à
maneira do século XVIII, uma certa dose de anti-clericalismo — não de
agnosticismo, todavia — equilibrada, no testemunho de seu filho, por uma viva
admiração pelo muito católico Alessandro Manzoni, finalmente muito patriotismo, desse patriotismo sentimental e tenebroso dos homens do Risorgimento. Em
suma um “mal pensant”, antes que um revolucionário. Era contudo mais do que o
necessário para suscitar a antipatia da boa sociedade das aldeias da Toscana
onde exercia a profissão e para alienar-lhe a simpatia de um povo facilmente
irritável por atitudes não conformistas.
Os acontecimentos de 1848-1849 agravaram o clima de hostilidade em
que viviam os Carducci. Em menos de dois anos, tiveram que mudar três vezes de
residência. Em Castagnetto Marittimo, um tiro de fuzil atingira o doutor. Em Laiático
sobreveio um incidente que merece ser referido, porque descreve bastante bem o
caráter de um homem de quem o jovem Giosuè herdou as impulsões agressivas e o
gosto dos rompantes.
Estávamos em 1849: a revolução havia malogrado, na Toscana como
alhures, e a população do Laiático festejava o retorno do Grão-Duque. Levava-se
em procissão uma estátua de gesso do soberano diante da qual todos se
descobriam. O Doutor Carducci recusou-se a tirar o chapéu e, depois, mais
vigorosamente ainda, a beijar o “ídolo” como se lhe intimava. Aos protestos
pontilhados de ameaças que se elevavam, em torno dele, ele respondeu
despedaçando a estátua a bengaladas. Seguiu-se um conflito de que emergiu em
estado lastimável.
Será motivo de espanto que depois disso seu filho se haja revelado
desdenhoso, iconoclasta, tumultuário?
Obrigado, depois disso, a abandonar Laiático, a família mudou-se
para Florença. O jovem Giosuè, que atingia então os seus catorze anos e não
tinha tido até então outro mestre além de seus pais, foi posto no colégio dos
Scolopi (a palavra é uma deformação de Scuole Pie, “escolas pias”). As lições paternas, completadas por leituras abundantes, embora um pouco
desordenadas, parecem ter sido eficazes, porque três meses após a admissão aos
Scolopi, Giosuè foi aprovado com sucesso em seu primeiro exame. Recordando-se
talvez das batalhas travadas entre os moleques aldeões, em que seu filho se
distinguia por seu ardor, tanto em Bolgheri como em Castagnetto Marittimo, o
doutor pensou de início em orientar o filho para a carreira das armas,
enviando-o ao Liceo Militare, mas desistiu da ideia. Giosuè prosseguiu nos seus
estudos “civis”, fez dois anos de retórica (1849- 1851), depois frequentou um
curso de ciências (1851-1852). Brilhante aluno, recebeu nos seus últimos exames
a nota mais alta, com felicitações múltiplas, a pieni voti e pluralità di
plauso. Lia então com paixão, quase que com furor, tudo o que chegava ao seu
alcance: depois de Os Noivos de Manzoni, caro a seu pai, enfrentou as grandes
obras épicas: A Ilíada, a Eneida, a Jerusalém Libertada, depois passava aos
poemas cavaleirescos, o Orlando Amoroso de Boiardo, o Orlando Furioso de
Ariosto, finalmente estendia suas leituras a numerosos gregos, como o “fatal
Homero” e os italianos do último meio-século. Durante esta primeira fase de sua
informação literária, parece haver sido atraído principalmente pela poesia
épica e a poesia satírica.
Os primeiros sonetos aos catorze anos
Não contente de ler
abundantemente, começou a escrever versos em que se refletem preferências saídas dessas explorações
literárias. Ele se ensaia no gênero épico num poema em oitavas sobre a tomada
de Bolgheri pelo rei Ladislau de Nápoles e uma série de tercetos sobre a morte
de César (sem falar de uma tradução, em tercetos igualmente, do canto IX da
Ilíada) antes de exercer-se no epigrama e de censurar em verso alguns dos seus
mestres ou condiscípulos. Compôs igualmente com a idade de catorze anos dois
sonetos de inspiração menos guerreira ou polêmica: “A Minha Mãe” e “A Vida”.
Em abril de 1851, o pai que morava em Florença, mais dificilmente do
que nunca obteve o emprego de médico comunal (medico condotto) em Celle, secção
da comuna de San Casciano dei Bagni: foi nomeado, provisoriamente, por seis
meses, com os vencimentos mensais muito modestos de cem liras, verdade que com
a promessa de um aumento de vinte liras cada mês. Seus começos foram penosos:
vinha precedido de uma reputação de revolucionário perigoso; não tinha de resto
obtido seu posto senão pelo fato de haver sido o único a pleiteá-lo. Mas é
preciso crer que o iconoclasta de Bolgheri, de Castagnetto Marittimo e de
Laiático se havia moderado um pouco, porque desarmou rapidamente todas as
prevenções. Fez valer em seu favor testemunhos convincentes, conduziu-se com cautela,
provou sua competência profissional, sub-repticiamente posta em dúvida por
causa de suas idéias políticas e finalmente a 30 de junho de 1851 fez-se
efetivar nas funções, que lhe haviam sido confiadas a título precário. Não se
tornou rico com isso, mas esteve em condições de fazer vir a sua família de
Celle: Giosuè aí vinha encontrar nas férias a sua mãe e seus dois irmãos Dante e Valfredo.
Férias sem encanto, a acreditar-se nas alusões que iria fazer mais
tarde. Sua mãe era uma mulher apagada, resignada, que se consolava na igreja
dos acessos de mau humor de um marido desde então mais interessado no vinho que na política
(sabe-se também que Giosuè foi um honrado apreciador do Chianti). Seus irmãos
parece não lhe haverem profundamente interessado. Com pesar de seus amigos florentinos e das bibliotecas em que era muito assíduo, não chegou a aclimatar-se. O local de predileção de sua infância continuou sendo sempre Bolgheri, enquanto
ele trata Celle de asilo de serpentes e as jovens que aí encontrou de satânicas harpias: limita-se a princípio a ler, a ler sempre, isolado de
todos ou a meditar sempre sozinho sobre as encostas vizinhas. No auge do tédio,
ele reunia em sua casa as crianças da aldeia para ensiná-las a ler e a cantar
em coro hinos patrióticos.
Moço, descobre a poesia do século XVIII
Recomeça a escrever versos em que prevalece desta vez a influência
de Foscolo e, em menor grau, de Monti (cf. por exemplo “Aos Italianos” na
coletânea Juvenília). Seguindo as pegadas de seu pai, cuja acomodação política
se acompanha de um acréscimo de religiosidade, compõe poemas religiosos à
santa glória de Santa Isabel e de São João Batista. Chega a escrever uma peça
que renegará mais tarde e que foi na ocasião orgulhosamente recitada pelo
Doutor Carducci: celebra a outorga do título de “cidadão honorário de Acquapendente” ao cardeal Caterini.
Em 1853, após ter enviado ao seu professor dos Scolopi, o Padre
Barsottini, versos que acabava de compor sobre a primeira cruzada (não é demais
acrescentar que fez esses versos sob a inspiração da Jerusalém Libertada de
Tasso) foi convidado a apresentar-se ao concurso de recrutamento da Escola
Normal Superior de Pisa: aprovado, entrou na escola a 17 de outubro.
Desta época, datam certas amizades que não foram sem efeito sobre a
sua formação espiritual e moral: com seu condiscípulo florentino Nencioni, com
Ercole Scaramucci, grande amador de literatura italiana. Foi no decorrer de suas
conversações com Nencioni e mais ainda com Scaramucci que se aprofundou mais na poesia do século XVIII. Compôs então
sonetos a Parini, a Metastásio, a Goldoni, a Alfieri a Monti que se seguem no
livro III da Juvenília. Entrementes, estuda Petrarca de maneira mais escolar.
Um homem sem ponderação
Quando Scaramucci morreu prematuramente, seu jovem amigo lhe
pronunciou, chorando, o elogio fúnebre, do alto do púlpito da igreja de Celle.
O elogio vinha de um adolescente que frequentava muito pouco esta igreja,
embora o Padre Barsottini o tivesse recomendado quando do concurso de ingresso
em Pisa, como um jovem “cristãmente e civilmente bem educado”. (O padre de
Celle, mais reservado, certificou apenas que Giosuè Carducci tinha vivido até
então “retirado” e que se entregava aos estudos com ardor.) Scaramucci era ali
celebrado como um homem todo dedicado à Igreja, inimigo mortal da anarquia,
cordial com os pobres, mas “que não imergia nem por isto no lodo da populaça”,
patriota com certeza mas sem “o sinistro furor dos demagogos nem os miseráveis
devaneios dos utopistas” (expressão que visava claramente os partidários da
unidade italiana). Estranha linguagem a deste jovem estudante que reunia os
meninos da aldeia para ensinar-lhes cantos patrióticos! Será o caso de aí ver o
sinal de uma extrema indecisão de pensamento ou índice de um gosto de
retórica que não tem para marcá-lo ainda nenhuma preocupação de sinceridade?
Se o elogio não tivesse que ser pronunciado do alto de um púlpito, talvez
Carducci tivesse desenvolvido temas menos conservadores... O que surpreende um
pouco, é que tendo ele querido conformar-se com uma linguagem convencional,
o tenha feito tão claramente, sem a preocupação de descobrir um meio-termo
entre a apologia cantada da unidade italiana e a reprovação declamada do mesmo
ideal. Retenhamos esta primeira manifestação pública de seu temperamento
excessivo: outras passagens bruscas de determinada atitude para a atitude
inversa esmaltarão a sua vida, quer se trate de política, quer de religião,
quer de poesia. A ponderação não constituiu jamais seu forte. Tinham-no ouvido
pouco antes na Academia dos Filomusi, onde ele encontrava certo número de seus condiscípulos florentinos, pronunciar um discurso inaugural que passava em revista a história da Itália (a inspiração
deste discurso se encontrará nas estrofes da Canção de Legnano); dessa vez
exaltava o valor guerreiro de seus compatriotas e glorificava os
revolucionários que se tinham batido como leões e convidava imperiosamente os
jovens italianos para fugirem das seduções de um século “vil entre todos”
para se conduzirem como patriotas decididos.
O seu sucesso no concurso de ingresso na Escola Normal Superior de
Pisa constituiu uma das grandes alegrias de sua vida, como o atestam as cartas
a seu amigo Gargani e a sua noiva Elvira Menicuccio, com quem ele se casará
seis anos mais tarde. la fruir três anos de segurança material e de
independência. Mas ia baixar de tom: não que a sua segurança ou independência
fossem menores do que tivesse esperado, mas sentiu que seus professores eram
medíocres, pedantes, muito pouco a par da literatura italiana, julgada
politicamente perigosa. Não se saía quase que dos estudos dos antigos:
quanto ao resto, ele tinha que limitar-se às palestras com os amigos, junto ao
cais do Arno ou em certos cafés, e às leituras pessoais.
Dificuldades financeiras
Chegado o verão de 1854, Carducci que tinha obtido alguns meses
antes a isenção do serviço militar por suas condições de estudante, foi
passar as férias com a família. Viu que a população de Celle estava bastante excitada contra seu pai,
que, por motivos de ordem profissional, havia esbofeteado o prefeito e tinha
sido condenado pelo tribunal de Montepulciano, o que o obrigara a demitir-se
de seu emprego e a deixar a aldeia. O Doutor Carducci tinha abrandado as suas
opiniões, mas não o seu humor. Para conseguir uma situação, teve que solicitar
o posto pouco rendoso (que ele novamente conseguiu na ausência de qualquer
concorrente) de médico-cirurgião da vizinha comuna de Piancastagnaio. As condições
econômicas da família foram duramente atingidas e em junho de 1855, Giosuè viu-se desprovido de dinheiro a ponto de não poder pagar as trinta e quatro
liras de taxas de exame, exigidas para o diploma de doutorado. Felizmente
entabulou relações com Pietro Thouar que dirigia em Florença um periódico, o
Appendice e que, para tirá-lo de suas dificuldades, lhe ofereceu a soma
necessária, em pagamento de artigos publicados na sua revista.
As inclinações românticas da aurora de sua vida
Foi aparentemente por motivos financeiros que Giosuè Carducci, com a
idade apenas de vinte anos, se pôs a compor uma antologia de poesia italiana,
destinada às escolas: À Harpa do Povo, seleção de poesias religiosas,
patrióticas e morais. Essa coletânea divide-se em três partes: Deus e Religião,
o Homem, a Pátria, e vai desde a Vita Nuova de Dante até à poesia popular mais
recente, a estas coplas ou stornelli que Carducci e seu amigo Scaramucci tinham
ouvido nas paragens de Celle. A grande parte concedida às composições populares
antigas e modernas atesta uma concepção romântica da literatura: falava-se
muito da importância que reveste na história da civilização a produção
“espontânea” de obras épicas e líricas da parte do povo. Note-se ainda que o
pensamento de Herder, a sua concepção do Volksgeist teve uma fortuna mais
notável junto à segunda geração romântica italiana que junto à primeira — e é
precisamente ao nível da segunda vaga — que se elabora a antologia do jovem
Carducci. Outro sinal de seus pendores românticos nesta época de sua vida: o
acento que no prefácio da antologia punha na utilidade moral da arte, de acordo
com a recomendação de Manzoni que almejava que a literatura tivesse “o útil
por fim”. Éle apenas procurava reproduzir poemas capazes de despertar no povo “sentimentos bons e úteis”, disposto a excluir sem pena, aqueles “que entretêm a superstição e provocam o egoísmo e a indolência”. Se mais tarde ele, considerável e
violentamente se afastou do Romantismo, conservará assim mesmo no seu volume
Primavera e Flor da Literatura Italiana (1903) numerosos textos incluídos na
sua antologia de juventude. Ao mesmo tempo que a Harpa do Povo, prepara uma
antologia latina em que se compraz em revelar em notas, seja locuções que
sobrevivem no italiano moderno, seja imitações bem logradas de alguns autores
latinos por escritores italianos.
O ano de 1855 foi o do doutorado. Aprovado, Carducci dirigiu-se à
casa paterna em Piancastagnaio depois de uma parada em Florença onde reviu seus
amigos Nencioni, Gargani, Pietro Thouar. A população de Piancastagnaio não
lhe pareceu nem mais evoluída nem mais simpática do que a de Celle, mas a
situação da aldeia o consolou um pouco de seus habitantes. A amplidão do
horizonte que se descobria para o sul, no vale do Paglia, afluente do Tibre, a
frescura do lugar (quase 800 metros de altitude), a pureza dos riachos, a linha
harmoniosa das montanhas circundantes entre as quais se eleva o monte Amiata,
seduziram-no rápido. Depois de um ano de labor intenso, encontrava-se no seio de
uma natureza que lhe devolvia a força e a calma. Mas suas férias foram mais
movimentadas do que previra; uma epidemia de cólera devastou a região,
submetendo o seu pai a rude prova. Dos meados de agosto aos meados de setembro,
Giosuè dedicou-se corajosamente, noite e dia, a ajudar ao médico sobrecarregado a fiscalizar nas casas a aplicação dos regulamentos de higiene
(chegou mesmo a redigir prescrições sanitárias por encomenda da
municipalidade). A dedicação do pai e do filho granjearam-lhes as simpatias da
população até então reticente e lhes valeram felicitações oficiais, sem contar
algumas recompensas materiais que por modestas que tivessem sido, não
deixaram de ser bem-vindas.
No grupo do Appendice, defensor do classicismo
Em novembro, Giosuê volta a Pisa. Êste último ano, passado na Escola
Normal Superior, não será menos ativo que o anterior. Carducci continua a
trabalhar em sua antologia latina, prepara seu exame de ingresso no
magistério, troca numerosas cartas com Pietro Thouar, Gargani e outros amigos
como Chiarini e Targioni. Vai-se constituindo um cenáculo em torno da revista
de Thouar, o Appendice. Das cartas escritas por Carducci em 1855-1856 deduz-se
que a intenção primordial do cenáculo era defender o classicismo contra os excessos
ou os “langores” do romantismo que parece caminhar em direção de um
realismo “decadente” pouco apropriado às tarefas morais e políticas do
presente e do futuro próximo. A batalha é desencadeada em nome da italianidade,
representada em literatura, conforme quer o grupo do Appendice, por Dante,
Petrarca, Alfieri, Parini, Monti, Foscolo, Leopardi. Um membro do grupo,
particularmente ligado a Carducci, Chiarini, sustentará mesmo na revista que é
urgente banir dos currículos o francês, para dar lugar às obras-primas
italianíssimas próprias a reconduzirem a mocidade ao são classicismo e a
reaquecerem o sentimento nacional. Do cenáculo nasceu um volume, Poesias
Líricas Italianas, em que os “bons autores” são comentados, destinado às moças:
este interesse pela educação feminina é muito notável para a época.
O grupo do Appendice entendia sustentar o classicismo pelo exemplo e
não apenas pela polêmica. Carducci, de seu lado, compôs diversos poemas,
concebidos para ilustrar seu ideal clássico do momento, entre outros a canção
“A Enrico Pazzi” (Juvenília) dedicada a um escultor que trabalhava em bustos de
grandes poetas italianos. Escreveu pelo mesmo tempo: “Para a mulher de meus
pensamentos”, a “Ode a Targioni”, “Febo, Apolo”, “A Giulio Partenio”, os sonetos “A. F. T.” e “A.N.F. P.” e o “Brinde” do livro II de Juvenília. Basta lembrar as duas estrofes deste último poema para dar
uma ideia do vigor das convicções anti-românticas de Carducci nesta época:
Gema sobre o astro pálido
Lassa a enferma pupila,
A celerada, abstêmia,
Romântica família.
A nós, progênie itálica,
Riam deuses do Lácio
E mais a mãe dos Ênios
E a harmonia de Horácio.
Suas convicções patrióticas não são menos ardentes, embora não se
exprimam sempre numa linguagem que possa ser imediatamente “útil ao povo”. Que se faça o julgamento à luz dessas
duas estrofes do mesmo “Brinde” em que Carducci faz alusão à dominação
austro-húngara na Lombardia e Vêneto, à soberania do Papa sobre Roma e ao apoio que a França empresta a
essa soberania:
Quando o ginete húngaro
Calca o vale ocneano
E freme o lítuo rético
Onde Marão nasceu.
Quando a túnica levítica
Torna Roma sombria
E o guerreiro de Breno
Perlustra a sacra via...
Veio o exame de qualificação magisterial: Carducci então se
distinguiu por uma abundante lição sobre a poesia cortês e cavaleiresca. Logo
em seguida ao seu êxito, dirigiu-se a Florença e daí em busca de sua família
que havia mais uma vez mudado de residência. Descontente por não ter sido atendido numa
reivindicação de aumento de salários, o Dr. Carducci havia deixado
Piancastagnaio por Santa Maria del Monte, perto de San Miniato al Tedesco, onde
Giosuè iria fazer precisamente a sua estréia de professor de liceu com os magros vencimentos de sessenta e cinco liras por mês.
Estas férias de 1856 foram mais aprazíveis que as precedentes. O
jovem professor continuava a escrever versos e juntamente com os amigos
florentinos a travar polêmicas contra o romantismo. Gargani vinha de publicar
no Appendice, sob o título de “Tagarelice” um artigo em que protestava contra a
invasão das livrarias italianas pelos autores estrangeiros. A imprensa
florentina replicara de maneira viva. O cenáculo decidiu reagir, elaborando um
pequeno volume de contra-réplica: “O acessório do principal”. Foi Carducci que
redigiu a maior parte do panfleto; nele se mostrava mais anti-romântico do que
nunca, redobrando de severidade para com Giovanni Prati, sua bête noire
(recordemos de passagem que o soneto de tercetos duplos “A um poeta montanhês” de Juvenília era dirigido contra um professor acusado de admirar
Prati), e não poupando Manzoni de quem êle outrora lia e relia Os Noivos.
Consequências de suas atitudes provocadoras
Embora o seu emprego no Liceu de San Miniato al Tedesco não lhe
agradasse muito, preferiu-o ao cargo de preceptor de uma família rica que
Pietro Thouar lhe havia oferecido. Descreveria com verve espantosa seu
primeiro ano de ensino no texto célebre de “Recursos de San Miniato”. Mas onde
teríamos a tentação de crer que tivesse forçado a nota ou a cor, parece, afinal
de contas, que não disse tudo... Comportou-se de maneira agressiva e tão
extravagante que provocou denúncias. Uma querela num café valeu-lhe uma advertência do subprefeito. Acrescente-se às suas
maneiras provocadoras seu anticlericalismo ostensivo, que se manifestava por
atitudes irreverentes para com a Igreja e refeições de salsichas nos dias de
jejum, e compreende-se que pouco faltasse para que fosse demitido. Seu caso
foi levado ao ministro que começou por ameaçá-lo; o rigor da autoridade
atenuando-se na hora da execução, Giosuè safou-se, graças à tolerância de um
prefeito indulgente, com uma simples advertência. Havia progredido um pouco,
como se vê, desde o dia em que pronunciava em Celle aquele edificante elogio
fúnebre de Scaramucci. O incidente custou-lhe a cadeira do Liceu de Arezzo que
almejava, e a que de resto tinha direito por concurso, mas que lhe foi
recusada, parece que pela intervenção do filólogo Piero Fanfani, indignado por
sua conduta.
Perigo a que o expunha o seu “parti pris” de nacionalismo literário
Foi em parte para pagar as dívidas de moço que Carducci, cedendo a
instâncias de amigos, publicou em 1857 suas Rimas. Dedicou esta coletânea,
composta de vinte e cinco sonetos, de duas baladas e de uma laude, à memória
de Leopardi e de Pietro Giordani. Falava pouco de amor. O único que aí se
percebe é o amor da pátria ou a admiração pelos grandes modelos de que ele se
inspira, às vezes muito estreitamente. A fatura clássica dos versos contrasta
nestes poemas muitas vezes com estados de alma românticos, em que a influência
das Últimas Cartas de Jacopo Ortiz de Foscolo é muito sensível. Os críticos
que recriminaram ao poeta, nesse momento, sua falta de personalidade, tinham
por certo alguma razão. Essas “rimas” só podiam parecer relativamente
audaciosas pela insistência do poeta em exaltar a Itália, ainda dividida e em
parte escravizada, ou pela veemência de seu anti-romantismo. Mas um patriota feroz como Guerrazzi, um liberal como Terenzio Mamiani julgaram o livro
favoravelmente, sem se mostrarem todavia completamente satisfeitos. As reservas
de Guerrazzi acham-se expressas numa carta dirigida, em 1857, a Silvio
Giannini, um amigo de Carducci; o romancista do Cerco de Florença imagina que o
jovem autor das Rimas estivesse diante dele e lhe dirige os conselhos
seguintes:
“Não te cumpre ser nem latino nem grego, mas italiano, e homem de
teu tempo: porque cada literatura deve oferecer à posteridade o testemunho da
época que a produziu. Não te preocupes em sentir como Horácio ou pensar como
Píndaro: sente e pensa por ti mesmo. Qual é esta inocência que te leva a
desprezar tudo o que ignoras? A Inglaterra, a Alemanha e (coisa admirável de
dizer) a Escandinávia, a Pérsia possuem tesouros de poesia, de uma poesia tão
esplêndida de imagens e de uma sensibilidade tão requintada que em confronto
com ela empalidece tudo o quanto conheces de grego e de latim e ai de nós, até
mesmo de italiano.”
Mesmo um patriota tão determinado e irredutível como Guerrazzi
descobria em Carducci um particularismo, um parti pris de nacionalismo
literário que ameaçava tornar-se esterilizante.
Numerosos poemas das Rimas foram reproduzidos em Juvenília, que
apareceu sob forma definitiva em 1880, retocados e melhorados pelo poeta que
tinha tomado consciência de alguns dos seus defeitos ou excessos.
No outono de 1857, Carducci não voltou a San Miniato al Tedesco.
Fixou-se em Florença onde morou até o começo de 1860, sem emprego oficial. Anos
muito duros, sombreados pelo suicídio do irmão Dante (1857) e a morte do pai
(1858). Giosuè viveu e fez viverem os seus, dos trabalhos de publicação que
lhe foram confiados pelo editor Barbera por intercessão de Pietro Thouar. Em 1859 casou-se. No ano seguinte, foi
nomeado para o Liceu de Pistóia. Não demorou muito no posto, porque os
acontecimentos de 1859-1860 tinham feito de Terenzio Mamiani um personagem
ministerial e Mamiani se lembrou do jovem poeta do qual havia apreciado as
Rimas. Tendo sido oferecida ao romântico Giovanni Prati uma cadeira de
eloquência italiana e este tendo-a recusado, Mamiani foi propô-la ao pior
detrator de Prati, Carducci... e este aceitou a promoção inesperada. Foi
assim que se tornou aos vinte e cinco anos de idade professor da Faculdade de
Letras de Bolonha, posto em que continuará até a aposentadoria, em 1904,
recusando-se a aceitar em 1887 a cadeira de Estudos Dantescos que lhe seria
oferecida pela Universidade de Roma.
Sua paixão, a política, reservou-lhe mais contrariedades que
alegrias
Suas inquietudes familiares que, de acordo com o seu testemunho
tinham sido em 1859 bastante graves para impedi-lo de engajar-se em formações
patrióticas que apoiaram e prolongaram a campanha dos franco-piemonteses contra
a Áustria, viram-se diminuídas por sua nomeação para um emprego seguro e
respeitável. A partir de então a sua vida ia tornar-se menos movimentada. Ela
dividiu-se quanto ao essencial, entre sua família (teve quatro filhos: três
filhas dotadas de nomes literários — Beatrice, Laura — ou políticos —
Liberdade — e um filho de nome Dante, que morreu aos três anos de idade em
1870 quase que ao mesmo tempo que a mãe do poeta), sua atividade de professor
que foi intensa e fecunda, a poesia e a política. Na verdade, a política por
que tinha paixão lhe reservou mais contrariedades que alegrias. Em 1868 sua
atitude hostil ao governo valeu-lhe uma transferência para a Universidade de
Nápoles: se chegou a evitá-la, teve de aguentar uma suspensão de funções e
vencimentos por ter participado de um banquete republicano e assinado depois uma mensagem a Mazzini. Pouco tempo
depois, a sanção era relevada. Em 1876, foi eleito deputado republicano; mas
como a lei prescrevia um limite ao número de parlamentares professores (pois
estes foram muito favorecidos pelo corpo eleitoral), um sorteio eliminatório
excluiu-o da nova Câmara. Dois anos mais tarde, a Rainha da Itália veio em
visita oficial a Bolonha; para espanto de todos, Carducci considerado até então
como republicano indomável, celebrou a soberana numa ode não privada de certa
ênfase — alguns disseram de servilismo. (“A Rainha da Itália”, incluída nas
Odes Bárbaras). De fato era a Rainha e não a monarquia que o poeta glorificava, sem se esquecer de recordar em sua homenagem que era um homem das tempestades:
E a ti voando uma estrofe alcaica
Nascida em árduos tumultos, livre,
Gira três vezes por tua fronte
Com esta asa que sabe a procela.
Esta estrofe não deixa de marcar o começo de uma pacificação
política, amplamente confirmada depois. Em 1886, Carducci foi de novo candidato
às eleições legislativas, mas com a legenda da “oposição ministerial” e não
mais sob o rótulo de “republicano”. Derrotado, teve que contentar-se com um
lugar no conselho municipal de Bolonha, até o dia em que foi nomeado Senador da
República do Reino em vista não só de sua evolução para uma atitude mais
moderada como ainda de sua notoriedade literária (1890). Evoluiu de tal maneira
que aceita em 1981 ser o paraninfo da bandeira de um círculo monárquico.
Indignados, os estudantes republicanos organizam contra ele uma manifestação
no curso da qual é ligeiramente ferido. Quanto à sua notoriedade literária, não
temos necessidade de recordar aqui que lhe valeu, depois de numerosas
distinções menores, a alta recompensa do Prêmio Nobel de 1906, um ano antes
de sua morte.
Seus cursos entre os mais apreciados da Universidade
Ele chegara a Bolonha, pleno de entusiasmo e a memória ressoante
de leituras, mas pouco preparado para as funções de professor de
universidade. Durante cinco ou seis anos, consagrou-se quase que inteiramente à
sua própria formação. Explorou da maneira mais ampla, mais profunda e menos
parcial, como nunca o tinha feito até então, o vasto domínio da literatura
italiana. Seus cursos contaram-se logo entre os mais apreciados da
universidade. Filólogo escrupuloso e orador brilhante, exerceu uma influência
que não se limitou apenas aos que ouviam as suas aulas. Teve fiéis discípulos entre os quais o mais conhecido é Severino Ferrari a quem fez nomear
professor adjunto em 1893. Seu sentido da eloquência, que não o abandonava, nem
em prosa nem em verso, fez que amiúde o designassem como orador oficial das
cerimônias comemorativas (centenários da Universidade de Bolonha, da morte
de Petrarca e de Boccaccio, etc...). Por uma ironia da sorte, o homem que havia
escrito em “Diante de São Guido”:
Nem também sou ainda um manzoniano
A receber um quádruplo salário
recebeu em 1904, chegada a hora da aposentadoria, uma pensão anual
de doze mil liras, recompensa nacional que até então só tinha sido concedida a
um único escritor: Alessandro Manzoni...
Um sedentário
Este poeta, conhecido pela Europa inteira, não foi um grande
viajante: mal saiu da Toscana, da Emília, ou das províncias vizinhas. Não
atravessou nunca nem o mar nem os Alpes. À única cidade estrangeira que conheceu foi, em 1878,
Trieste, então austríaca. Seu conhecimento do estrangeiro e mesmo da Itália
insular ou meridional (exceção Eita da região de Nápoles) foi puramente
livresco.
Não é necessário determo-nos sobre a parte de sua vida posterior a
1860 tanto quanto a sua adolescência e sua juventude. Foi no curso dos seus
vinte e cinco primeiros anos que Carducci fez as experiências humanas e
literárias mais decisivas. Recebeu então marcas que não o abandonaram nunca
mais. Aprendeu a viver num mundo de aspirações confusas, de sonhos retóricos,
de entusiasmos impetuosos e imprecisos que tinha bem ou mal que fazer coincidir
com o mundo de suas inquietudes cotidianas, profissionais ou familiares, de
pequenas dificuldades, de minúsculos problemas. Quando se produziram os
acontecimentos em direção dos quais se sentia atraído de todo o seu coração,
sentiu-os bem menores do que havia sonhado. Certamente dedicou mais de um poema
à vitória do Piemonte sobre a Áustria em 1859, às rebeliões e às expedições do
ano seguinte que concluíram na constituição do Reino da Itália, à guerra de
1866, que acarretou a anexação de Veneza, a ocupação de Roma em 1870. Dir-se-ia, porém, que sua satisfação não iria além da metade do que se esperava que
fosse; seríamos tentados a admitir que a sua reserva relativa deve-se às suas
preferências republicanas, que os sucessos da monarquia de certo modo o
indispõem. Mas, examinando-se melhor, não podemos evitar a impressão de que ele não consegue fazer coincidir seu universo
retórico ou poético com a versão que a história está na iminência de impor às
suas esperanças. E a decepção o leva a recolher-se não sem acrimônia, para os
pequenos lados deste mundo apartado da sua expectativa: personagens de segundo
plano (cf. “Io triumphe” em “Iambos e Epodos XX”), ou incidentes menores que
excitam a sua verve ácida de desencantado. Seu instinto polêmico diminuirá
com a idade, sem que ele renuncie jamais inteiramente ao gosto da referência mordaz ou da maldição solene. Seu temperamento lhe havia
ditado um papel e este papel acabou por se lhe impor.
Ausência do “eu” em seus poemas
A produção poética de Carducci abrange bem um meio século. Foi em
maio de 1848, antes de ter atingido os treze anos, que traçou os primeiros
versos conservados (o primeiro é um soneto a Deus...) e o seu último poema
(uma quadra, “O Castelo de São Martinho”) traz a data de 10 de novembro de
1902. Levando-se em conta essa duração, a massa de sua produção poética pode
parecer muito mo- desta; ela cabe inteira nos quatro primeiros volumes da
edição nacional de suas obras que constam de trinta.
Um dos traços dominantes deste conjunto é a raridade de temas
estritamente pessoais. À presença de Carducci nos poemas só se dá muito
raramente através de sua autobiografia, de confidências, de efusões íntimas.
Mal se entrevê aqui ou acolá um homem apaixonado ou tentado pelo amor (cf. além
de versos de mocidade que não podiam passar de exercícios, “Aqui reina o
amor”, “Visão”, “Idílio na Marema” em Rimas Novas, “Ruit Hora” que faz parte de
Odes Bárbaras), e sem as indiscrições da crônica contemporânea não se
conseguiria saber a que mulher, a que ligação se referem as estrofes alcaicas
de “Na estação, uma manhã de outono”. É certo que se pode encontrar alhures um
pai aflito pela morte do filho jovem (“Pranto antigo”), mas Carducci
não pode ser incluído entre os poetas que Leconte de Lisle chamava de
“exibidores”. Sua aversão pelo romantismo, pletórico dos abusos do eu, teria
sido bastante para detê-lo do sestro de exibir aos olhos de todos o que pertencia
apenas a ele.
Diz-se que jamais se desembaraçou de sua predileção de adolescente
pela literatura italiana do século XVIII, predileção que tinha sido muito
forte, num momento de sua vida, a ponto de fazê-lo ver em Metastásio uma “alma
romana digna de viver em outros tempos” (“Pedro Metastásio” em Juvenília).
Acrescentou-se mesmo que ele continuou, de muitos pontos de vista, um árcade. À
opinião não é sem fundamento, se se consideram aspectos de seu método poético.
Autor de inumeráveis versos dedicados ou dirigidos, tanto deveras como de
maneira fictícia, às personagens mais diversas, ele guarda o instinto da poesia
de circunstância tão cara à Arcádia. Mesmo nas Odes Bárbaras que formam a este
respeito a coletânea menos característica, encontramos peças desse tipo:
“Aniversário da fundação de Roma”, “À vitória entre as ruínas do templo de
Vespasiano, em Brescia”, “Alexandria”: “A Giuseppe Regaldi” quando publicou O Egito, “A Giuseppe Garibaldi”, “A uma garrafa de Valtellina de
1848”, etc.
É sinal com certeza de que Carducci tem frequentemente necessidade
de uma ocasião, de um aniversário, de uma publicação, de um espetáculo ou de outra coisa para ser convocado
para a poesia; que é o mundo exterior que o convida a entrar em si mesmo para
depois sair, empunhando a flama. Mas apressemo-nos em dizer, é raro que a
ocasião permaneça no nível de puro pretexto: ela dita ao poema o seu tom, às
vezes sua estrutura para não dizer nada de sua conclusão; ao ponto que a
invocação inicial faz frequentemente nascer um diálogo implícito de ponta a
ponta do poema. Daremos apenas uma prova tomada ao acaso entre inúmeras: Em
“Nas Fontes do Clitumno” das Odes Bárbaras, Carducci não é apenas um poeta que
se recorda, um homem da terceira Itália, que recompõe nele a nobreza antiga a
partir de um lugar que foi venerado. Ele dialoga sem cessar, invocando o
ribeiro, saudando a Úmbria, invectivando o salgueiro chorão, apelando ao carvalho e aos ciprestes, voltando ao rio para interrogá-lo, apontando o deus indígete que
mobilizava com a voz as energias contra Aníbal invasor, dirigindo-se enfim à
Itália, à Itália Mãe.
Essa perpétua procura do diálogo ou, se preferirem, de uma parede
ideal onde se faça ecoar a inspiração, não se opõe, em princípio, à diversidade
dos temas; mas na realidade, todas as ocasiões não são boas para Carducci e é
por aí que os seus temas se sentem finalmente limitados.
A política, inspiradora da maioria de seus poemas
As ocasiões mais sugestivas foram aquelas que lhe ofereciam a atualidade
política ou literária. Política principalmente; é dela que provêm as grandes
esperanças e as grandes decepções do poeta, mesmo que suas grandes cóleras
tenham, por vezes, outros móveis. Todo o sexto livro da [Juvenilia e quase toda
a segunda parte dos Levia Gravia, os Iambos e Epodos (com a única exceção do
poema “A um Heiniano da Itália”) extraem sua matéria mais ou menos diretamente
das circunstâncias políticas dos anos 1859-1870. Não apenas o conteúdo, mas
sobretudo o tom dos poemas são estreita- mente tributários das reações que
essas circunstâncias determinavam no campo dos patriotas republicanos e
laicos: entusiasmo sem medida quando das vitórias piemontesas de 1859,
desapontamento depois do armistício de Villafranca e a cessão de Nice e da
Savóia à França, indignação quando Garibaldi foi impedido de assaltar Roma,
acolhida áspera à solução no entanto inesperada de 1855 que dava à Itália o
Vêneto, apesar dos reveses sofridos em Custozza e Lissa, novamente a irritação
depois de Mentana em 1867, cólera e desprezo depois do dia 20 de setembro de
1870 quando se tornou claro que a tomada de Roma, efetivação da unidade,
consolidava definitivamente o prestígio da monarquia. Atirou os piores
sarcasmos contra a cidade de Roma quando ela se tornou a capital da monarquia, enquanto que descrevera a Roma pontifical dos anos precedentes por uma perspectiva mais
trágica, porém menos vil.
É pelos caminhos da política, de uma política vivida dia a dia com a
alma impetuosa de um guerrilheiro, que Carducci se aproximou dos grandes
caminhos da história. Nas glórias do passado, procurou frequentemente o
contraste com o presente, assim como os exemplos para o futuro, e nas vergonhas de outrora, motivos suplementares de ressentimento contra uma atualidade
que se reproduzia ou perpetuava. Nada de mais significativo que as evocações da
antiga Roma em sua obra poética; elas são ordinariamente concebidas para frisar
a confusão do presente. Tenhamos diante dos olhos por exemplo os poemas “Io
Triumphe”, “Canto da Itália que sobe ao Capitólio”, “Diante das Termas de
Caracala”, “Nas fontes do Clitumno”, “Roma”. Assinale-se todavia uma exceção
notável, “Aniversário da fundação de Roma”, em que Carducci se esforça por romper com o seu processo habitual.
O mesmo sucede em relação à França que só aparece aqui sob dois
aspectos: a nação revolucionária de 1789-1794 e a potência protetora da Santa Sé nos tempos de Napoleão III. E
aquela só serve para abater esta:
Pois que os netos de Voltaire
São os suíços de São Pedro.
Estes dois versos do poema satírico “Ao bem-aventurado João da
Paz” (Juvenília) poderiam servir de epígrafe a uma exposição de sentimentos de
Carducci para com a França, pelo menos até o Ça ira. Em 1883, data deste último
poema, já se haviam passado dezesseis anos depois de Mentana, treze depois da
queda de Napoleão III e Carducci está em vias de acalmar-se; contentar-se-á em
opor — rapidamente, é verdade — o Terror à Noite de São Bartolomeu, e dará
livre curso à admiração que a leitura de Michelet lhe havia inspirado pela
energia dos franceses de 1792.
Outro tema de que se costuma falar na crítica carducciana é o da
“Nêmesis histórica”. Entende-se por esta expressão a ideia de uma vingança
exercida a longo prazo pela história sobre os descendentes dos que cometeram
crimes contra a liberdade dos povos. Mas se lhe exagerou por vezes a
importância. O tema aparece tardiamente na poesia de Carducci e só se aplica
finalmente a três dinastias: os Habsburgos (cf. “Miramar”, nas Odes Bárbaras,
depois do “Acalanto de Carlos Quinto” das Rimas Novas, em que o motivo da
hereditariedade não se desenvolveu ainda em Nêmesis), os Capetos (cf.
“Versalhes”, e “A Coroação de Henrique Quinto”, em Iambos e Epodos), os
Bonaparte (“Por ocasião da morte de Napoleão Eugênio” nas Odes Bárbaras). Não
significa necessariamente, como às vezes se assegurou, que para Carducci a
história vai no sentido do povo por um movimento espontâneo; corresponde menos
a uma convicção democrática que a um ressentimento de ordem nacional.
Refere-se, em todo o caso, apenas a dinastias estrangeiras, e às que constituem
obstáculos à unificação e à independência da Itália (não nos esqueçamos de
que Mentana havia apagado no coração de numerosos patriotas italianos a gratidão que poderiam ter sentido por Napoleão III, sete ou oito anos antes). Por
republicano que tivesse sido até 1878, Carducci não se lembrou nunca de brandir
a Nêmesis da história contra a casa de Savóia.
Um anticlericalismo que se converte muitas vezes em anticristianismo
Outra consideração pode ter induzido o poeta a desviar os olhos da Itália medieval. Ele pertence a uma época em que a maior
parte dos pensadores de espírito laico associam à Idade Média o primado da Igreja e do obscurantismo. Um poema
das Rimas Novas, dedicado a um dos seus colegas particularmente versado em
literatura medieval (“A Alessandro d'Ancona”), resume com brilho sua apreciação
do latim clássico e paganizante. Nada lhe falta, nem “o homem que apenas sai do
claustro para dirigir-se ao túmulo”, nem “a horrível flama das piras
funerárias” nem “a última saudação da vida ao deserto” lançada pelas flechas
das catedrais góticas. E a última estrofe dá em resumo a oposição cara a Carducci, das trevas da “idade negra” e da luz antiga:
Pobres terrores medievos, prole
Sinistra da barbárie e do mistério,
Sombras pálidas, rua! Ergue-se o Sol
E canta Homero.
O desprezo pela Idade Média é aqui à base de anticlericalismo; um
anticlericalismo de natureza complexa e em que entra um pouco de Voltaire e muito
de irritação contra o romantismo católico italiano de que alguns representantes
haviam “colonizado” a Universidade da Península. Mas não seria o caso de
reduzi-lo a um motivo polêmico saído de querelas corporativas ou a uma
simples tomada de posição em relação às tendências da historiografia de então.
Nascido de um ressentimento expandido em relação à política “separatista” da
Santa Sé, apoiado no culto da antiguidade greco-romana, intimamente
sustentado pelas inclinações de um temperamento “solar” e corroborado numa
certa época da vida de Carducci por um cientificismo de essência positivista,
esse anticlericalismo converteu-se facilmente em anticristianismo, como
bastariam para atestá-lo o famoso hino “A Satã”, em que a estrada de ferro,
símbolo do progresso da inteligência humana, anuncia a justa vingança do anjo
tombado sobre o Deus das trevas. Se as veementes apóstrofes de Carducci só se tivessem dirigido ao Papa e aos Cardeais, não seria o
caso de determo-nos em excesso neste poema, a tal ponto a irritação patriótica
contra a Santa Sé é coisa frequente na Itália depois de 1849 e mais ainda
depois de 1870. Mas o poeta das Odes Bárbaras não se dirige apenas ao Papa ou à
Igreja contemporânea: ele vai até Jesus Cristo para acusá-lo por sua raça, para
censurá-lo, cremos, por haver desnaturado a alma autêntica da Itália:
Roma sucumbe após que um galileu,
Rubra melena, foi ao Capitólio,
Jogou-lhe aos braços uma cruz e disse:
Leva-a e serve.
lemos em “Nas Fontes do Clitumno”, e o poema “Numa Igreja Gótica”
fará aparecer de novo Cristo como uma “divindade semita”.
Inseparabilidade do catolicismo e da Idade Média
Carducci levou mais tempo para reconciliar-se com a religião do que
com a monarquia piemontesa: foi só com “A Igreja de Polenta” composto em julho
de 1897 que ele parece ter aderido à fé comum de seu país ou pelo menos se
preparou para fazê-lo. Mas até neste poema, ele não abandona a sua concepção de
uma Idade Média sinistra, bárbara, pela qual o cristianismo, contribuição
exótica, é a seus olhos, como o vimos, em grande parte responsável. Ele aqui
evoca longamente os frades de sotainas pardas, de longas cabeleiras cobertas
de cinzas, prosternados diante do atroz crucificado bizantino” à sombra dos
capitéis povoados pelos “sonhos cruéis e espasmos do inumano setentrião”,
mesclados a “alucinadas degenerescências do Oriente...” De resto, dois anos
antes de compor esses versos, ele lançou ainda violentos anátemas contra a Igreja de Roma em “À Cidade de
Ferrara”:
E maldita sejas tu e maldita sempre, por onde
Gentileza floresce
e nobreza abre o voo,
Sim, sejas maldita, ó velha vaticana loba cruenta.
Mesmo quando a sua cólera política se atenua com o fato de sua
evolução em direção do regime estabelecido — um pouco também por força da
passagem dos anos — ele dificilmente chegará a separar o catolicismo da Idade
Média, época negra em que o romantismo execrável tinha ido abeberar-se. Porque foi também por classicismo que Carducci rejeitou todo o
conjunto da Igreja romana e da Idade Média. Igreja romana, digamo-lo bem,
porque ele testemunha pelos protestantes uma simpatia de rebelde a rebelde,
como se a Reforma tivesse repudiado o “Galileu ruivo” e o “deus semita” (cf. “A
Satã”, em que são celebrados Lutero, Wycleff e Huss, e “Martinho
Lutero”). Sua aversão pelos temas do romantismo resistiu mesmo à admiração
que ele acabou por testemunhar por alguns escritores alemães ou franceses.
Muito típico deste ponto de vista é o poema “Ao longo de Chiarone de
Civitavecchia” que traz em subtítulo “Lendo Marlowe” e foi escrito em maio de
1879. Aqui ainda os reflexos nacionalistas funcionaram: o romantismo é
considerado como uma teoria exótica que Carducci deplora ver importada do
setentrião para a terra sagrada do classicismo, a Itália. Neste ponto, pelo menos, ele continuou fiel às
convicções de sua adolescência e juventude.
Um vigor excessivo de linguagem
A luta contra os românticos italianos e a apologia do classicismo
inspiraram, de maneira muitas vezes imediata, uma grande parte de sua produção
poética. Donde a abundância de temas ordenados em torno de um autor, de um
gênero, ou mesmo de uma técnica literária. Mais de trinta composições são elaboradas à glória dos escritores preferidos:
Homero, Virgílio, Dante, Petrarca, Ariosto, Metastásio, Goldoni, Alfieri,
Parini, Monti, Pietro Giordano, Nicolini, Mamiani, Hugo. Alhures o louvor se
insere num poema de fundo mais ou menos histórico (por exemplo, a evocação de
Tasso em “A Cidade de Ferrara”). Quanto a simples alusões aos escritores do
passado, elas são inúmeras e revestem, por vezes, uma solenidade que lhes
realça a intenção.
Mas Carducci não teria sido Carducci se se tivesse contentado de
cantar a glória daqueles que amava e venerava. Éle simultaneamente irrompeu
contra os seus contemporâneos românticos e realistas numa linguagem que leva
por vezes o vigor até a indecência. Basta atentar ao quinto livro da Juvenília:
aqui se verá em particular o crescendo de injúrias que se desenvolve do
primeiro soneto “Aos Poetas” a um outro “Ainda aos Poetas” (soneto estirado em
dezesseis tercetos, como se Carducci não fosse capaz de deter-se) e a um
terceiro “A Musa Moderníssima” (em que o número de tercetos passa a trinta).
Tais furiate retornam periodicamente na sua carreira poética; basta citar “A
Certos Censores”, “A um Heiniano da Itália”, “Intermezzo”, “Classicismo e Romantismo”.
O lavor do poeta
Finalmente, bem diferente de tantos poetas desdenhosos do labor
técnico, ou preocupado em dissimular este labor debaixo de uma fingida
negligência, o autor de Odes Bárbaras não hesitava em fazer da arte dos versos
matéria de poesia. Quando imita determinado gênero, proclama-o alto; assim no grupo
de Rimas Novas em que ao “ Anacreonte romântico” sucedem a “Serenata”,
“Alva”... e na trilogia “Primaveras românticas”, que se decompõe em “Eólia”,
“Dórica” e “Alexandrina”. Melhor ainda, acontece-lhe tomar por assunto um
fator técnico de arte poética: assim os primeiros poemas das Rimas Novas se intitulam “A Rima”, “Ao Soneto”;
notamos ainda nas Odes Bárbaras o poema “Razões métricas”. Isto não seria muito
de surpreender da parte de um homem que se recusa a admitir, por fidelidade ao
espírito clássico, que a poesia seja pura questão de inspiração súbita, de dom
divino, de “furor sagrado”. O poeta, como diz Carducci, em “Despedida” (Rimas
Novas) não é um pobre parasita nem um ocioso, nem um “jardineiro” mas um
grande artífice que se faz à custa de músculos de aço; nem cortesão, nem
sonhador, nem palhaço, mas um operário vigoroso, cujo dever é fundir amor e
pensamento, passado e futuro, antes de moldar em grandes golpes o amálgama
para haurir dele o que pode tornar a humanidade poderosa e harmoniosa. Sob
esses golpes desdobrados nascem as clavas da liberdade, as armaduras da forca,
as coroas da vitória, os diademas da beleza. Tarefa plenamente desinteressada,
porque o poeta trabalha para o resto do mundo, não para ele; apenas se concede
ao seu trabalho o prazer de um artesanato pessoal, se nos atrevemos a dizer
assim: uma flecha de ouro que ele lança de encontro ao sol e cuja ascensão em
plena luz é a única alegria que espera e que o paga por completo.
Desta vez Carducci falha à tradição clássica para estabelecer-se
numa posição próxima do segundo romantismo. Dificilmente se irá acreditar que
não tivesse consciência do fato. O grande leitor de Victor Hugo, que ele foi,
poderia ignorar os temas da “missão do poeta” e as muito recentes cartas de
nobreza desse tema? À ideia de uma palingenesia pela poesia não é de nenhuma
maneira uma concepção nem uma implicação clássica. Fôrça é constatar que o
clima literário dentro do qual Carducci viveu entre 1860 e 1890 foi, nesta
circunstância, mais forte que sua vontade de não ceder uma polegada de terreno
ao romantismo.
O mesmo se pode dizer, mas de maneira menos chocante, quanto à
sua representação da natureza. Para ele a natureza é clássica, banhada de
sol: a outra, a romântica, é banhada apenas de bruma e lua, a ponto que toda
paisagem triste lhe parece romântica e toda paisagem risonha, clássica. Ou
melhor: num poema “Classicismo e Romantismo”, a Lua e o Sol representam unidos
as duas escolas. No entanto, ele não soube sempre conjurar o encanto das
penumbras, da melancolia dos lugares, das emoções nostálgicas. Deste ponto de
vista, “Vingança da Lua” não está livre da cor romântica, e “Na estação, uma
manhã de outono” (Odes Bárbaras) é um poema de um romantismo acabado... É o que
não deve dissimular tal outro poema das Odes Bárbaras “Ao longo de Chiarone
de Civitavecchia”, violento processo de um “clima” que Carducci denuncia tanto
por princípio como por aversão.
Os temas que acabamos de recensear brevemente não são em número
considerável: ainda, unem-se uns aos outros por fios mais ou menos aparentes.
Se se diversificam de um poema a outro, é menos sob o efeito da meditação que
pela variedade das ocasiões de que seus desenvolvimentos procedem. Sob as
múltiplas cores que lhes são emprestadas pela indignação, o desprezo ou o
entusiasmo, a sua substância em nada se modifica. E ela absorve ao fio dos
anos tudo o que a história, a pequena como a grande, traz à consciência de um
poeta mais inclinado a julgar que a julgar-se. A isto se deve que a expressão
destes temas tenha ficado tão tributária do que vem do exterior, do que era
dado, quase imposto a Carducci, sem que ele tivesse que meditar muito no âmago
de si mesmo...
O poeta das Odes Bárbaras não era mais levado a fugir do mundo que a
frear o seu temperamento. Nele poucos eram os longos pensamentos e poucos os
mitos realmente pessoais. Se ele acreditou na missão dos verdadeiros poetas,
não foi à maneira de Vigny e de seu Moisés solitário. Preferir-se-ia como
tribuno do que como confidente do Sinai. Mas se ele não obteve de maneira
duradoura a qualidade de tribuno que esperava, ninguém seria capaz de
desconhecer que foi um extraordinário artista do verso, um dos mais eruditos,
dos mais fogosos e dos mais robustos que a poesia européia conheceu de dois
séculos a esta parte.
* Este texto integra CARDUCCI, Giousuè. Giousuè Carducci. Poesias escolhidas. Tradução de Jamil Almansur Haddad. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1962.
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