Kenzaburo Oe
Kenzaburo Oe. Tóquio, 1995. |
A ambiguidade é importante para
mim, já que a realidade oculta inumeráveis significados, pode ser interpretada
de múltiplas formas. O tema determinante de minha obra se resume numa pergunta:
Como viver nosso presente? Como viveremos no século XXI?
(Kenzaburo Oe)
É o segundo trabalho da literatura é criar o mito. Mas, seu primeiro trabalho é destruí-lo.
(Kenzaburo Oe)
Kenzaburo Oe nasceu a 31 de
janeiro de 1935 num vilarejo da província de Ehime, na ilha de Shikoku. É o
terceiro de um grupo de sete irmãos. Sua família é de uma estirpe de abastados
proprietários rurais que foram perdendo patrimônio à medida que avançavam a
reforma agrária no seu país logo depois da Segunda Guerra Mundial. Aos nove
anos, Oe enfrentou a morte do pai, decorrente no front da Guerra do Pacífico,
em 1944; neste mesmo ano morreu ainda a avó com quem melhor desenvolveu proximidades,
a contadora de histórias que lhe permitiu acessar o mundo de histórias, mitos e
lendas da aldeia, um papel sempre desempenhado pelas mulheres. Eram elas que
transmitiam às várias gerações, por exemplo, os tempos do levante na Meiji.
Todo esse convívio com oralidade em
Ose, favoreceu e influenciou poderosamente a formação do imaginário de Kenzaburo
Oe e muitas das histórias retornariam entre as linhas de alguns de seus
romances. Junta-se ainda, o contato, pela mãe, fonte de sua primeira educação,
com a literatura dos escritores japoneses e ocidentais; mais tarde, ele próprio
confirmará isso ao citar o impacto sentido com a leitura de obras como As
aventuras de Huckleberry Finn ou A maravilhosa viagem de Nils Holgersson
através da Suécia.
A formação secundária foi
construída na cidade de Matsuyama e contava dezenove anos quando foi estudar
literatura francesa na Universidade de Tóquio. O convívio com esse interesse se
estabelece pela proximidade desenvolvida com o seu professor de japonês Kazuo
Watanabe – Oe precisou reaprender seu próprio idioma, devido as diferenças
linguísticas entre o interior e capital do país. Kazuo, por vez, era um
especialista na obra de François Rabelais. A literatura desse escritor,
marcadamente constituída pelo que Mikhail Bakhtin conceituou como realismo
grotesco estabeleceu laços definitivos com todo o universo ficcional apreendido
na infância e na adolescência.
Ainda estudante, publica seus
primeiros contos, fortemente influenciados pela literatura contemporânea francesa
e estadunidense; foram dois textos na revista Bungakukai. Um ano depois
conquista o Prêmio Akutagwa, por uma novela: A captura relata sob o
ponto de vista de um menino a custódia de um aviador afro-americano feito
prisioneiro durante a Segunda Guerra Mundial num pobre vilarejo do Japão depois
de sobreviver a um acidente.
Impulsionado por este
reconhecimento publica em 1958 seu primeiro romance: Arranque as sementes,
atire nas crianças (em tradução livre) trata sobre um grupo de adolescentes
de um reformatório evacuado durante a guerra para um remoto vilarejo da
montanha, onde seu líder considera a necessidade de erradicar o mal desde a
raiz. Quando se declara uma epidemia entre os habitantes do lugar, que sentem
verdadeira aversão pelos intrusos, estes são abandonados à própria sorte. Isto é,
um livro que testemunha os efeitos da loucura no idílico mundo rural. Também este
livro conseguiu alcançar boa repercussão entre a crítica, que passou a tratar o
jovem escritor como uma brilhante revelação literária, com personalidade e estilo
próprios.
Na década de 1960, Kenzaburo Oe se
torna no principal porta-voz da oposição estudantil sobre o Tratado de
Segurança assinada entre Japão e Estados Unidos, o militarismo e os rumos do
destino econômico e político de seu país. O assassinato do presidente do Partido
Socialista Japonês Asanuma Inejiro pelo jovem estudante da ultradireita Yamaguchi
Otoya, que se suicida na prisão três semanas depois, inspirou duas de suas novelas
de maior projeção: Dezessete e A morte do jovem político. As
organizações extremistas não pouparam críticas e a redação da revista que
publicou os textos recebeu ameaças de morte continuamente. Esqueciam de
entender um escritor que então denunciava a falta de adaptação e a sensação de
impotência de uma geração incapaz de encontrar saída para os seus sentimentos
de frustração. Este interesse domina toda a sua obra deste período, quando se estreitam
alguns outros laços que determinarão o curso da sua literatura, como a visita à
China de Mao, à União Soviética comunista, a França, onde conhece o filósofo do
existencialismo e do engajamento, Jean-Paul Sartre, e Hiroshima.
A visita à cidade bombardeada
pelos estadunidenses a 6 de agosto de 1945 naquele que foi um dos maiores
atentados contra a humanidade da nossa história levou Kenzaburo Oe estabelecer
contato e entrevistas com muitos dos sobreviventes repercutindo publicamente os
horrores, o sofrimento humano num longo ensaio Notas sobre Hiroshima. “Foi
a viajem mais difícil e triste da minha vida. Mas, depois de uma semana,
encontrei a chave para sair do fundo buraco neurótico e decadente onde havia
caído: a rica humanidade das pessoas. Fiquei impressionado com a coragem, a
maneira de viver e de pensar. Mesmo que pareça contraditório, saí dali animado
por elas. Senti-me impelido a examinar minha condição humana, reexaminei minhas
ideias e assumi um sentido moral da existência.” É quando publica Uma
questão pessoal (1963), seu romance mais conhecido e o primeiro que viu
traduzido para o inglês, o que permitiu ampliar suas viagens, agora, aos Estados
Unidos, Austrália e sudeste da Ásia.
Outro de seus romances mais
conhecidos é Jovens de um novo tempo, despertai! (1983). Narra a história
de K., um homem que vive com sua mulher e três filhos na cidade de Tóquio e um
deles padece de uma doença mental. É um romance que analisa as convicções, posturas
políticas e mesmo o papel do escritor na sociedade contemporânea ao tomar como
ponto de situação a própria vida e o convívio com o filho Hikari, assinalado
pela enfermidade. A narrativa recupera uma linha lançada em Uma questão
pessoal, em que Bird, um professor universitário deve enfrentar o nascimento
de seu filho com uma sequela mental e daí se decidir por aceitar ou não numa operação
que poderia custar a vida do doente.
A vida e obra de Kenzaburo Oe são
marcadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial e pelas profundas transformações
sociais e políticas vividas por um país que viu seu imperador, símbolo de
caráter divino, perder seu caráter sagrado. A sua vocação literária decorre da
necessidade de superar o desenraizamento e recuperar o que define como “a
mitologia da minha aldeia”. O autor costuma refletir em seus livros os mitos e
lendas do mundo rural, que marcaram seus primeiros anos, no marco da cultura
das grandes cidades contemporâneas.
Em sua obra se destaca a
influência de Dante, Erasmus de Rotterdam, Honoré de Balzac, Edgar Allan Poe,
William Butler Yeats, T. S. Eliot, Wystan Hugh Auden e François Rabelais e é um
leitor entusiasta de Dom Quixote. Além disso, considera que a narrativa
de Cervantes se tornou uma das referências iniciais de sua literatura. Fora
esses, interessa-se no trabalho de Milan Kundera, Albert Camus e Spinoza. Seu
complexo universo literário é caracterizado por um estilo muito pessoal e uma
linguagem agressiva repleta de imagens objetivas e violentas. Esse estilo
direto, com frases curtas e contundentes, é acompanhado por poderosas metáforas
existenciais. Temas recorrentes em seus livros são deficiências físicas,
sexualidade e marginalidade, dentro de uma prosa realista e comovente que se
afasta da tradição literária japonesa. Da mesma forma, aborda a crise
existencial, a identidade cultural e outras questões relacionadas com o
presente de seu país como o desarmamento, o pacifismo como resposta, o problema
ecológico e a ameaça nuclear.
Seu trabalho pode ser dividido em
duas tendências: livros que questionam os mitos nacionais, retratam o Japão do
pós-guerra e o choque de suas tradições com a modernidade e trabalhos focados
em seus próprios fantasmas pessoais, a figura do filho deficiente que cerca sua
narrativa e a criação literária.
Um dos caminhos trilhados por Kenzaburo
Oe, como destacado acima, foi o de leitor apaixonado, formação que remete para
desde sua infância. Nas suas viagens pelo mundo, descobriu ainda nos anos 1970,
quando foi professor de literatura no Colégio de México, os escritores
hispano-americanos e Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e Octavio Paz,
entre outros, passaram a figurar nas listas dos seus interesses de predileção. É
nesta ocasião que sua obra galga dois caminhos à frente do seu existencialismo:
pela experimentação com a ficção científica e preocupação com os temas
políticos nos países periféricos. E é quando ganha destaque no ocidente como um
dos importantes escritores da literatura japonesa do pós-guerra.
A riqueza criativa de seu trabalho
e sua forte presença política nos debates mais caros, dentro e fora do seu
país, desde o início de sua atuação lhe valeu um nobre reconhecimento. Em 1994
recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, o segundo no país a obter esse feito. O
primeiro foi Yasunari Kawabata. O galardão trouxe a certeza de findar a
carreira como escritor, anos depois desfeita, mas nunca a de importante intervencionista em várias instituições
ao redor do mundo.
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