João Cabral de Melo Neto: o poeta e a poesia visual
Falar da estética poética de João Cabral é retomar a didática classificação dele enquanto poeta precursor do Movimento Concretista no Brasil. Sem dúvidas, como dissemos noutra post, a poesia cabralina é um marco para a literatura brasileira, porque sua obra desencadeia uma revolução formal das mais importantes na história da poesia em nosso país, representando a maturidade das conquistas mais radicais do século XX.
Opondo-se ao principal curso da poética nacional que sempre fora o do sentimental, retórico, ornamental, João Cabral de Melo Neto constrói uma poesia não-lírica, não-confessional, presa à realidade e dirigida ao intelecto. Apesar de pertencer cronologicamente à Geração de 45, formada por nomes como Péricles da Silva Ramos, Geraldo Vidigal, Ciro Pimentel entre outros, João Cabral não se enquadra esteticamente nesta geração. A Geração de 45 propunha um retorno às formas tradicionais do verso, como o soneto e negava o experimentalismo dos Modernistas de 22. João Cabral é tido com o único poeta da geração de 45 que influencia a forte geração posterior, formada pela vanguarda brasileira dos anos 50 e 60, sobretudo, a vanguarda concreta.
"Pode-se dizer que ele não tem antecedentes na poesia brasileira, a obra dele tem conseqüente. Porque é a poesia concreta que via manter, continuar, expandir e levar para outros caminhos essa linhagem de uma poesia não sentimental, de uma poesia objetiva, uma poesia de concretude, uma poesia crítica, como é a poesia de João."
(Augusto de Campos)
"A poesia concreta é muito mais visual do que auditiva e talvez resida aí a possível influência minha sobre ela. A poesia concreta é muito interessante e não precisava de mim pra ser o que ela é."
(João Cabral de Melo Neto)
A poesia concreta brasileira interessou a muita gente e não só ao Brasil. Em 1966, houve na Bélgica um importante festival de poesia e, segundo o próprio João Cabral que estava lá a serviço do Itamaraty, o assunto principal em discussão no festival foi a poesia concreta no Brasil.
Em 50 anos de intensa atividade literária, João Cabral de Melo Neto publicou 18 livros de poemas e 2 autos dramáticos, o conhecido Morte e vida severina e o Auto do frade.
Poeta do rigor, não existe em sua obra "o livro mais importante" mais sim um conjunto de poemas fundamentais da literatura brasileira. Em prosa, João Cabral sempre escreveu pouco; seu ensaio mais significativo foi Joan Miró sobre o pintor espanhol, publicado em Barcelona em 1950, com ilustrações do próprio Miró.
A poesia de João Cabral de Melo Neto pode ser dividida em dois módulos distintos, propostos pelo próprio poeta ao publicar o livro Duas águas (1956): uma construtiva, outra participante.
A primeira água seria formada pelos poemas experimentais, arquitetônicos, feitos para poetas e que versam sobre o próprio fazer poético.
A água participante volta-se para a problemática social do homem do nordeste e é formada por obras como O cão sem plumas e O rio que são poemas longos sobre os miseráveis habitantes dos manguezais do rio Capiberibe. Apesar do mesmo rigor estético das obras construtivistas, atingem com mais facilidade o leitor comum, pois lidam com problemas universais do ser humano: a fome, a miséria, as diferenças sociais.
"Eu acho que é reducionista e prejudica o entendimento da obra de João Cabral. O pessoal da Academia de Letras e os acadêmicos da Universidade se contentam com esta divisão e acham que ela explica tudo. Mas não é bem assim. João Cabral sustenta uma enorme crise, um debate que nunca se resolve entre a obra de arte em si e a obra de arte enquanto instrumento de melhoramento e aperfeiçoamento social. Ele mantém esta contradição constantemente, e isto impregna toda obra dele. O conflito é rico e é muito mais entranhado."
(Décio Pignatari)
"Já fostes algum dia espiar
do alto do Engenho Trapuá?
Fica na estrada de Nazaré,
antes de Tracunhaém.
Por um caminho à direita
se vai ter a uma igreja
que tem um mirante que está
bem acima dos ombros das chãs.
Com as lentes que verão
instala no ar da região
muito se pode divisar
do alto do Engenho Trapuá.
Se se olha para o oeste,
onde começa o Agreste,
se vê o algodão que exorbita
sua cabeleira encardida
...
Se se olha para o nascente,
se vê a flora diferente.
Só canaviais e suas crinas,
e as canas longilíneas
de cores claras e ácidas,
femininas, aristocráticas,
...
Porém se a flora varia
segundo o lado que se espia,
uma espécie há, sempre a mesma,
de qualquer lado que esteja.
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural.
...
Apesar do pouco que vinga,
não é uma espécie extinta
e multiplica-se até regularmente.
Mas é uma espécie de indigente,
é a planta mais franzina
no ambiente de rapina
...
(trechos de Alto do Trapuá)
A poesia de João Cabral é difícil para o grande público porque não dialoga apenas com o leitor comum mas, também com os realizadores de poesia. A primeira temática de Cabral é a reflexão do próprio fazer poético. Sua poesia é auto-explicativa e ninguém melhor do que ele mesmo, através de sua obra, se analisou.
Em sintonia com a corrente evolutiva da melhor poesia contemporânea parte da poesia de Cabral reflete uma postura crítica sobre o ato de escrever e são descrições ou mesmo reflexões, quase sempre indiretas, sobre o fazer literário de outros escritores como a americana Marianne Moore, o português Cesário Verde, os franceses Baudelaire, Paul Valéry e Mallarmé.
João Cabral de Melo Neto é um poeta construtivista, ligado por temperamento às formas visuais de expressão fato que o levou a, desde cedo, se interessar pela arquitetura e pelas artes plásticas. Ele valoriza a forma visual dos poemas, a geometrização. Propõe para a poesia um verso construído, desmistificando o ato de criar com inspiração.
Sua poesia dialogo com artistas plásticos contemporâneos, como o já citado Juan Miró ou Mondrian e tem afinidade com os cubistas. Além das influências literárias, seus poemas são inspirados nas teorias arquitetônicas de Le Corbusier e nas estruturas das artes plásticas construtivas. Seus poemas são trabalhados em blocos ou quadras-blocos que funcionam com os retângulos de um quadro de Mondrian.
Em geral os poetas só começaram a pensar na publicação de um livro após terem escrito um certo número de poemas. João Cabral procedia de maneira diferente: ele planejava seus livros antes mesmo de começar a escrever e sabia, exatamente, como queria editá-los; assim, ele determinava o formato e o número de poemas que seriam publicados em cada um de seus livros. O próprio poeta afirmava que se impunha todas essas dificuldades para que o livro e os poemas crescessem paralelamente. João Cabral costumava dizer que o livro não é um depósito de poemas e, portanto, deveria ser concebido como uma estrutura total, uma macroestrutura.
Seu livro A educação pela pedra (1966) é dividido em quatro partes: a, A, b e B. Nas partes maiúsculas os poemas são curtos e nas partes maiúsculas os poemas são longos. Os temas dos poemas também são distribuídos conforme as letras. Esta maneira de organizar os poemas pode exemplificar a preocupação do poeta com um livro cuidadosamente projetado.
O que o mar sim ensina ao canavial:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial sim ensina ao mar:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncios paralelos.
(trechos de O canavial e o mar)
Ligações a esta post:
>>> João Cabral de Melo Neto: o poeta e a poesia visual
* O texto desta post é uma adaptação livre do texto no site Alô Escola, da TV Cultura.
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