João Cabral de Melo Neto: o poeta, a história, a paisagem e a poesia



Descendente de tradicionais famílias de Pernambuco e da Paraíba, João Cabral de Melo Neto foi o segundo dos seis filhos de Luiz Antonio Cabral de Melo e de Carmem Leão Cabral Melo. Nasceu no Recife (PE), no dia 9 de janeiro de 1920, mas passou parte de sua infância e adolescência em engenhos de açúcar, haja vista que seu pai era senhor de engenho. Primeiro no Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata e, depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no município de Moreno. A vida no campo marcou profundamente o poeta e se a escrita literária sofre influências do meio de onde ela emerge, pode-se dizer então que em João Cabral de Melo Neto nasce enquanto poeta dessas "influências".

Apesar da vivência nos grandes centros urbanos, João Cabral nunca se adaptou à cidade grande e à agitação desse mundo, sempre sentiu-se um homem do interior. Na infância feliz seu tempo era dividido entre as brincadeiras na casa grande com Virgínio, seu irmão mais velho e a quem era muito unido e os passeios pelo canavial. João era uma criança sensível e, desde pequeno, demonstrava preocupação com o ser humano, numa atitude muito singular para sua pouca idade.

Por volta dos oito anos de idade, ele morava com a família no Recife e ia para o engenho no tempo das férias. Seu irmão Virgínio lembrou que, aos domingos, o administrador do engenho ia à feira fazer as compras de mantimentos para a casa. Nestas ocasiões João Cabral dava-lhe dinheiro e encomendava a compra de folhetos de cordel - seu primeiro contato de verdade com o universo literário - mesmo que o cordel, nessa época ainda longe estivesse de se enquadrar pelo menos enquanto literatura popular. Contam então, que à tarde ele ia para a moita do engenho e, com os empregados todos ao redor de si, lia três, quatro folhetins para o pessoal do engenho.

O contato com os trabalhadores da usina seria a experiência fundamental para o poeta, pois, mais tarde, na vida adulta, viajando pelo mundo como diplomata, João Cabral teria o necessário para ver melhor com preocupação e pungência, a verdadeira realidade do nordeste e retratá-la em sua obra.

"Ele tem um lado popular que se chama João Cabral e tem o lado aristocrático que se chama Melo Neto. Então, ele é, um pouco, todo este universo conflituado e passou quarenta anos tentando resolver esse conflito." (Décio Pignatari)


Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.

É anônimo o canavial
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel branco de escrita.

(trecho do poema O vento no canavial)


Em 1930, ano da Revolução, terminava a Primeira República e começava a Era Vargas. Por complicações políticas com o presidente Getúlio Vargas, seu pai foi obrigado a abandonar o engenho. No Recife, um novo mundo menos acolhedor e tranqüilo se apresentava ao poeta e, apesar das brincadeiras nos trilhos de trem e dos alegres acompanhamentos no corso em época de carnaval, a vida já não era tão feliz.

Matriculado no Colégio Marista onde cursou até o secundário, Cabral sofria profundamente com a severidade do estabelecimento. Criança tímida, embora avessa a tudo aquilo, não conseguia se rebelar, desenvolvendo uma personalidade introspectiva, séria e profundamente angustiada. Apesar de toda racionalidade com que sempre enxergou a vida, manteve, para sempre, um terrível medo do inferno com suas labaredas, caldeirões e todo aquele mundo tenebroso e o de culpa e pecado com os padres costumavam ameaçá-lo.

No Recife, a visão dos retirantes fugitivos da seca, dos miseráveis habitante dos manguezais, o contraste entre os casarões e os mocambos construídos dentro da lama, também afetariam o poeta. Uma realidade que mais tarde se transformaria num outro elemento importante a sua poesia participante.




"Nenhum nordestino é indiferente ao meio em que vive, em que se criou."
(João Cabral de Melo Neto)

O universo poético de João Cabral de Melo Neto é, principalmente, o da zona da mata e o do sertão nordestino. Sua poesia remete o leitor constantemente às cidades de Olinda e Recife com seus casarões antigos, seus mares e rios importantes como o Beberibe e o Capiberibe, e aos canaviais da zona da mata pernambucana. Mas também remete para a vegetação escassa da caatinga e a dor do agreste brasileiro. Por isso mesmo, dois de seus livros, Pedra do sono (1942) e A educação pela pedra (1966) trazem no título a idéia de pedra, símbolo de secura sertaneja e do solo pedregoso da região.

"A obra de poetas como João Cabral de Melo Neto exerce um papel na formação e na manutenção da identidade nacional. A obra de João Cabral está indissoluvelmente ligada a esta identidade profunda e verdadeira do nosso país e do nosso povo." (Ariano Suassuna)

Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.

Um cão porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
Choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.

...

Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de
[secretas
e íntimas formigas.

E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra
ao parir
suas ilhas negras de terra.

...

Espesso
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia,
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).

(trechos O cão sem plumas - discurso do Capiberibe)


Por temperamento, apesar de ter vivido em meio a exuberância sonora dos ritmos pernambucanos, João Cabral de Melo Neto foi um poeta não-musical, avesso principalmente à melodia e à musicalidade do verso. Através de rigoroso trabalho de linguagem e construção, a dura poesia de Cabral, feita de "pedras" e "palo seco", como gostava de dizer, inspira-se na aridez geográfica e humana do sertão para se tornar, também ela, uma poesia seca e exterior.


Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

...

A palo seco existem
situações e objetos
Graciliano Ramos
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

Eis os poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.

(trechos A palo seco)


Personalidade sensível, obsessiva, angustiada e fascinante, o poeta João Cabral de Melo Neto recebeu inúmeros prêmios literários importantes como o New Stadium Internacional Prize, em 1992, nos Estados Unidos e na Espanha, em 1994, o Prêmio Rainha Sofia de Poesia pelo conjunto de sua obra. Além disso, João Cabral foi, durante vários anos, um dos fortes candidatos ao Nobel de Literatura, mas estes fatos não abalaram ou comoveram o escritor que não acreditava em vitórias literárias.

Coerente com suas idéias, João Cabral não gostava de dar entrevistas e receber homenagens. Em 1968, quando sua original poesia ainda provocava impacto nos meios literários, o sempre polêmico Cabral, num depoimento para o disco Cabral por ele mesmo chegou a afirmar que se considerava um marginal da poesia luso-brasileira ao definir-se como poeta.

Nos últimos anos de sua vida ele estava quase cego (o que o impedia de ler e escrever) e enfrentava muitos problemas de saúde. Mesmo assim o poeta continuava com grande vitalidade intelectual. Exigente e corajoso, nunca se sentia plenamente satisfeito como criador. Considerava que sua obra estava ainda em processo.

...

É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.

São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.

É mineral
a linha do horizonte,
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras.

É mineral , por fim,
qualquer livro:
que é mineral a palavra
escrita, a fria natureza

da palavra escrita.

...

(trecho A psicologia da composição)

Ligações a esta post:
>>> João Cabral de Melo Neto: o poeta, a história, a paisagem e a poesia


* O texto desta post é uma adaptação livre do texto no site Alô Escola, da TV Cultura.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596