Dossiê James Joyce: Ulysses, histórias de uma história
A história da publicação de Ulysses é em si mesma uma
aventura fascinante. Depois de demorar sete anos para escrevê-lo, Joyce
enfrentou complicação no processo que vai da edição à distribuição. Em parte,
houve as circunstâncias que lhe escaparam do controle, mas em parte ele se
entregou à compulsão de reescrever até o último instante antes da impressão;
não resistiu ao convite da limpeza tipográfica das provas, que revelava o
romance com um distanciamento que o manuscrito não proporcionava.
A caligrafia de Joyce nem sempre era clara, a linguagem
literária sem dúvida era incompreensível para os tipógrafos, e no vaivém o
resultado foi uma edição com erros tipográficos. Os erros permaneceram nas
edições subseqüentes. Só foram corrigidas na quarta edição da editora Odyssey
Press, em 1932, com a ajuda de Stuart Gilbert, estudioso, tradutor e amigo de
Joyce. Esta edição foi tida por muito tempo como a melhor.
Em 1977, porém, o neto e herdeiro de Joyce, Stephen Joyce,
decidiu corrigir erros que julgava ainda existirem, inclusive erros textuais, e
publicar o romance exatamente como Joyce o concebeu. Para essa tarefa (que
qualquer um concluiria ser impossível), convidou o acadêmico alemão chamado
Hans Walter Gabler. Stephen Joyce teve a sensatez de formar um conselho de especialistas
para acompanhar o trabalho, entre eles o mais importante biógrafo de Joyce, o
acadêmico norte-americano Richard Ellmann.
O conselho se mostrou duvidoso quanto à escolha de Gabler.
Primeiro porque, sendo alemão, não conhecia o inglês a fundo (e Joyce era,
claro, mais do que proficiente no idioma). Segundo, porque o método que ele
adotara parecia inadequado. Mas Gabler continuou a restaurar o romance. Entre
1981 e 1983, serviu-se da mais avançada tecnologia da informática, criou um
gigantesco banco de dados e se debruçou no cotejo de manuscritos, textos
datilografados, provas tipográficas e várias edições do romance.
Ao fim e ao cabo do dispendioso trabalho, Gabler apresentou
cerca de cinco mil alterações ao texto que o próprio Joyce se empenhara para
corrigir e não vira publicado. Boa parte das correções se refere a pontuação,
mas implica também na substituição de palavras e mudança de nomes de pessoas
reais.
Os membros do conselho se negaram a endossar o resultado do
trabalho que também foi criticado por outros acadêmicos. Stephen Joyce, porém,
dessa vez não se mostrou sensato. Transformou o projeto em livro, lançado em
1986 com divulgação internacional estrondosa. As relações foram de forte
resistência. Em 1988, o especialista norte-americano John Kidd publicou no New
York Review of Books uma das críticas mais fundamentais, denunciando as
incorreções de Gabler e defendendo as edições anteriores. Gabler ignorou todo
mundo.
Há quem afirme que essa história editorial tenha apenas uma
justificativa plausível. O objetivo de Stephen Joyce era, na posição de
herdeiro, manter os olhos nos lucros gerados pelo que se passou a se chamar de
indústria de Joyce. O estudioso inglês Bruce Arnold demonstrou no início da
década de 90 (inclusive com um documentário chamado The scandal of Ulysses) que
Stephen Joyce consentiu em publicar a edição “correta” de Gabler, ainda que
“incorreta” academicamente, com o objetivo de estender os direitos autorais
sobre o romance. Estes expirariam (como expiraram) a partir de janeiro de 1992,
com o que a obra cairia em domínio público. Em termos legais, só uma edição
radicalmente “diferente” das anteriores justificaria a renovação dos direitos.
Pode-se ver a mão de Gabler, e de Stephen Joyce, em outras
edições das obras-primas de Joyce. Mas hoje o leitor tem, ao menos a opção de
encontrar no mercado as edições que o próprio Joyce viu publicadas.
Ligações a esta post:
>>> A vida e a obra de James Joyce; acesse a primeira parte do dossiê sobre o escritor aqui.
>>> A segunda parte, aqui.
>>> E a terceira parte, aqui.
>>> Um guia para entender Ulysses, aqui.
* O texto é da Revista Entrelivros, ano 1, n. 2, p. 38
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