Dossiê James Joyce: peças para um retrato do artista (II)
Viúvo a quase um ano, Joyce, por puro acaso, conheceu uma moça de vinte anos, filha de um pedreiro beberrão separado da mulher, que se mudara para Dublin. Nora Barnacle estava longe de Joyce em termos de formação, abandonara os estudos ainda aos treze anos. Ainda assim, nasce entre os dois um relacionamento que duraria para todo o resto da vida. Três meses depois de se conhecerem, ambos decidiram sair da Irlanda, fixaram-se em Pola (Croácia hoje) e depois em Trieste (Itália hoje), cidades estas que faziam parte da Áustria-Hungria.
James Joyce e Nora Barnacle. |
Instalados em Trieste, Joyce passa a trabalhar numa escola como professor de inglês. Já por aí, Nora engravidara. Perdida, por está num país em que não tinha noção nenhuma do idioma e ainda com o hábito de beberrão de Joyce, Nora teve de se resignar. Estado que alivia quando da chegada de George Joyce, em 1905, que apesar das alegrias, trouxe mais complicações financeiras. Na esperança de arranjar alguma estabilidade, o casal inicia a uma verdadeira peregrinação pelo continente europeu e a primeira parada foi em Roma, em 1906, onde Joyce trabalhou num banco por nove meses. No ano seguinte voltaria a Trieste. Por essa mesma época, Nora engravidara de novo. Nasce Lucia Joyce.
Nora e os dois filhos. |
Dobram-se as necessidades e Joyce passa a lecionar para um número maior de alunos, ao mesmo tempo em que procura brechas de tempo para escrever; em 1907 publica o livro de poemas Música de câmara e, só depois, conclui a reunião de contos sobre a qual nos referimos na parte 1 deste dossiê: Dublinenses. Em seguida começou a escrever Stephen Hero, transformado mais tarde em Um retrato...
Em 1913, Joyce recebe uma carta inesperada. Esta carta seria a que lhe abriria muitas portas para um homem que pretendia viver da literatura. Era a carta do poeta estadunidense Ezra Pound que estava em Londres e pedia a Joyce autorização para publicar um poema de Música de Câmara numa antologia de poetas imagistas. Nessa época Pound era líder de um grupo de poetas que professava um poesia de imagens cristalinas com base numa linguagem cotidiana. Joyce, parecia já buscar, ainda que vagamente, algo semelhante, autorizou.
Da esquerda para a direita: James Joyce, Ezra Pound, Ford Maddox Ford e John Quinn. Foto: Pound's Paris Studio, 1924 |
Dessa autorização nascia o incentivo e a proteção de Pound que era bastante influente, obtendo, inclusive, em 1914, do governo britânico um subsídio anual para Joyce, que mais tarde chegou a admitir que o poeta o tirara da sarjeta. Assim Joyce conseguiu concluir Um Retrato... e Pound o publica sob forma de folhetim no periódico londrino The Egoist entre 1914 e 1915. É esta a obra de importância para literatura joyciana, não apenas por ser o primeiro romance do escritor, mas porque antecipa uma gama de elementos que comporiam mais tarde a obra-prima Ulysses.
Um retrato do artista quando jovem relata a evolução da vida do artista Stephen Dedalus, da infância aos anos de estudos e formação universitária até a partida inevitável da Irlanda. Uma história aparentemente banal se não se espelhasse na vida do próprio escritor. Em cinco capítulos, equilibra uma narrativa convencional naturalista com episódios sem seqüências reunidos de maneira clara permitindo ao leitor o "acesso" ao imaginário de Stephen, resultando numa revelação do processo mental pelo qual o personagem aspira se desvencilhar das restrições impostas pela família católica e pelo movimento político nacionalista.
São estes temas ― o da religião e da política ― que Joyce usa para tingir sua escrita, usando de todas as suas experiências pessoais para demolir, ao menos no interior de Stephen, as instituições. Ressaltem-se os personagens, o bondoso padre Conmee e o sadista padre Dolan, como uma crítica bem ponderada ao jesuitismo.
Acompanhando a libertação do artista, Joyce cuida de construir sua própria estética. Na conclusão sobre as três principais formas literárias ― a lírica, a dramática e a épica ―, Stephen afirma que todas elas se inter-relacionam e no fim o artista, como o Deus da criação, permanece dentro, atrás, além ou acima de sua obra, invisível, refinado, fora da existência, indiferente, aparando as unhas". Ou como Stephen diz, "bem-vinda, ó vida!", antes de partir para Paris a fim de "moldar a forja de minha alma a incriada consciência de minha raça".
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