Dora Ferreira da Silva
Por Pedro Fernandes
Há duas coisas que como acadêmico
de Letras tenho vício, duas não, três: da biblioteca, fuçar o que me pareça
novidade, conhecer daquilo que ninguém ainda falou - pelo menos pra mim; da
internet, buscar leituras interessantes sobre literatura (diria que semelhante
atividade ao primeiro vício) e, por fim, ler - uma reunião dos dois outros
vícios.
Recentemente tenho começado
alguns incursões pelo universo poético, colocando por um instante a prosa na
estante - se bem que não funciona bem assim, há mesmo um intercalar de
prosa e poesia constante. Mas, o fato é que a metade maior do tempo tenho ido por esse
universo do poema, resultado, agora, de um minicurso que ministrarei com uma minha amiga de versos no curso de Letras. O curso sai, acredito, em setembro.
Somando-se estas duas
atividades, os vícios e o estudo da poesia para o minicurso, encontro com a
obra de uma escritora até agora uma desconhecida para mim: Dora Ferreira da Silva. Uma poeta, diria, sem dúvidas, de mão
cheia e de uma poesia deliciosa, marcada por um lirismo alimentado ora daquelas muitas camadas do nosso imemorial ora de tradições muito bem fincadas nas bases da nossa literatura.
Reproduzo abaixo, as informações biobliográficas recolhidas no site do Instituto Moreira Salles, responsável por parte importante do acervo de Dora Ferreira da Silva. O texto segue em modo de recomendação: procurem e leiam mais a obra dessa poeta brasileira.
A POESIA DE DORA FERREIRA DA
SILVA*
“Nós é que damos sentido ao
tempo, e buscamos fazer o melhor nesta fração de tempo que é a nossa vida
aqui”
(Dora Ferreira da Silva, em
entrevista a Gilberto Kujawski e Hermes Nery, em 1989)
Três vezes ganhadora do Prêmio
Jabuti por sua poesia, premiada pela Academia Brasileira de Letras por sua
Poesia Reunida, tradutora de autores como Rilke, Saint-John Perse, San Juan
de la Cruz, Hörderlin, T. S. Eliot, Valéry e Jung, admirada e elogiada por
nomes de relevo como Vilém Flusser, Carlos Drummond de Andrade, Wilson
Martins, José Paulo Paes, Ivan Junqueira, Cassiano Ricardo, Euryalo
Cannabrava, Gilberto Kujawski, Nogueira Moutinho e Gerardo Mello Mourão,
ensaísta que colaborava com diferentes jornais – essa era Dora Ferreira da
Silva.
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Nascida em Conchas, São Paulo, no
dia 1.º de julho de 1918, Dora foi casada com o filósofo Vicente Ferreira da
Silva, união muito profícua – a casa deles, na rua José Clemente, se tornou um
centro irradiador de cultura, onde muitas reuniões com intelectuais, poetas,
artistas plásticos, religiosos e professores universitários aconteceram. A
respeito destas reuniões, disse ela em entrevista a Donizete Galvão:
“Tudo era muito informal, sem
periodicidade. Juntavam-se as pessoas mais díspares e as coisas aconteciam
espontaneamente. Muitas vezes, o Vicente fazia conferências ou lia parte dos
seus escritos (...). Os poetas liam seus poemas (entre outros, Carlos Felipe
Moisés, Rodrigo de Haro, Roberto Piva e Rubens Rodrigues Torres Filho nos anos
60). Ouvíamos música (...). Passavam por ali professores vindos da Europa.”
Destes encontros nasceram duas
revistas bastante expressivas: a Diálogo, fundada por Vicente, Dora e
Milton Vargas, em 1955, que teve uma grande repercussão, com participações de
Haroldo de Campos, Mário Chamie, Heraldo Barbuy, Ruy Apocalypse, e traduções de
Dora de grandes poetas como T. S. Eliot e Novalis. Esta revista contou com 16
edições. Destacamos a edição de número 8, por ser a primeira revista brasileira
a dedicar um volume especial sobre a obra de Guimarães
Rosa, em novembro de 1957.
Já a revista Cavalo Azul,
mais voltada para a poesia e a literatura, com 12 edições, foi idealizada por
Dora dois anos após a morte precoce de Vicente, em um trágico acidente
automobilístico. Cavalo Azul – nome inspirado nos cavalos etruscos que
conduziam as almas para o mundo dos mortos – teve colaborações de Anatol
Rosenfeld, Vilém Flusser, Clarivaldo Prado Valladares, Theon Spanudis, J. C.
Ismael, Péricles Eugênio da Silva Ramos, entre outros, e serviu para Dora
divulgar sua poesia em um círculo mais amplo, assim como a de outros poetas do
mesmo período.
Outra presença constante foi a de
Agostinho da Silva, escritor português exilado no Brasil pelo governo Salazar,
com quem o casal Dora e Vicente manteve estreita amizade. Sobre ele, afirmou:
“Agostinho fundou diversas universidades no Brasil, deu aulas na Universidade
de Brasília. Era um animador cultural. Conhecia pessoas do mundo inteiro. Os
diálogos dele como Vicente começavam cedo e iam até a noite”. Agostinho foi um
grande colaborador da revista Cavalo Azul.
Afeita a uma vida mais
reservada após a viuvez, Dora Ferreira da Silva continuou com suas obras de
tradução e suas poesias. Sua tradução das Elegias de Duíno, feita quando
a poeta tinha apenas 28 anos, lhe valeu numerosos elogios da crítica. Este
livro mereceu diversas reedições, sendo a mais recente a de 2001, pela
editora Globo. Incentivada por amigos, publicou seu primeiro livro de poemas, Andanças,
que compreendia sua produção poética entre os anos de 1948 a 1970, em edição
própria. Com ele recebeu seu primeiro prêmio Jabuti. É dele o poema que segue
abaixo, um dos mais elogiados por seus críticos:
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Nascimento do poema
É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.
É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.
E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.
Em seguida vieram Uma via de
ver as coisas (1973), Menina seu mundo (1976) e Jardins/Esconderijos (1979).
Em todos, as temáticas e características que viriam marcar sua obra poética são
expostas: a musicalidade de seus versos, a predileção pelas formas livres, o
pensar poético, de que fala Dante Milano – um pensamento permeado pela emoção,
pelo espanto e pelo sentido do sagrado.
O imaginário da poeta está
intimamente imbricado com a Grécia e o Mediterrâneo, fontes inspiradoras não
só por estarem relacionadas com as origens da poeta e da própria poesia, mas
também por sua força arquetípica, descoberta por Dora ao envolver-se com a tradução
das obras de Carl Gustav Jung – psicanalista suíço que trabalha com novos
conceitos, como o de inconsciente coletivo e sincronicidade. Esta nova
influência é perceptível em suas novas obras: Talhamar (1982) –
menção honrosa do Pen Club –, Retratos da origem (1988) e Poemas
da estrangeira (1996), este último ganhador de seu segundo prêmio
Jabuti. Neles, como comenta Constança Marcondes César, na fortuna crítica que
acompanha sua Poesia completa, estão os temas recorrentes na obra de
Dora:
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“... o quotidiano e o pássaro,
a música, o jardim são, em sua poesia, metáforas da transcendência; o
feminino e os retratos do humano apontam, na sua multiplicidade, para os
arquétipos fundadores, ensinado-nos Uma via de ver as coisas; a
montanha, por sua vez, é apelo à verticalidade existencial, o espaço sagrado
por excelência, onde se dá, para a autora, a imersão na interioridade e
adesão ao cósmico”.
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Limitar a poesia de Dora Ferreira
da Silva a correntes literárias é difícil. Contemporânea de Vinicius de Moraes,
Manoel de Barros e Gerardo Mello Mourão, e enquadrada ora na geração de 45, ora
na chamada “poesia feminina”, a obra da poeta não aceita facilmente
classificações. A respeito disso, afirma Donizete Galvão:
“... penso que Dora é livre
demais para qualquer um desses rótulos. Embora muitos leiam-na desatentamente,
sua poesia não tem nada de intuitivo, de derramamento emocional ou falta de
rigor. A poesia de Dora é toda pensada já que ela pensa poeticamente. A sua
razão é a razão poética (...)”.
É em nome desta “razão poética”
que a poesia de Dora se concretiza, aproximando-se da música, irmã da poesia.
Isto fica claro em seus Poemas em fuga (1997), em que os poemas da
primeira parte do livro recebem títulos de andamentos musicais, e em que
podemos perceber uma atenção especial a Mozart. O panteísmo que permeia suas
obras adquire maior vigor em Hídrias (2004), seu último livro e
terceiro prêmio Jabuti, recebido em 2005. Neste livro, em bela edição da
Odysseus, a poeta volta a suas origens mediterrâneas, dando vazão a seu acervo
imagético e arquetípico, como aponta Luiz Alberto Machado Cabral, na
apresentação desta obra:
“Assim como Hölderlin não via os
mitos gregos como uma fonte de inspiração literária, mas como percepção
concreta do sagrado, cujo intérprete é o `vate inspirado´, para Dora Ferreira
da Silva o poeta é um visionário, um agente de forças invisíveis e
desconhecidas, que tem a possibilidade de ver aquilo que os outros não
conseguem; que sabe, no entanto, que sua arte praticamente não lhe pertence,
uma vez que depende da inspiração.”
O ano de 2000 foi muito significativo quanto à repercussão da obra de Dora: ela
conquista o Prêmio Machado de Assis de Poesia, da Academia Brasileira de
Letras, por sua Poesia Reunida, editada pela Topbooks, consolidando a
iniciativa de legar às novas gerações a obra de uma poeta que fundou em sua
casa um Centro de Estudos de Poesia e que durante mais de 50 anos dedicou-se ao
fazer poético. Também neste ano a poeta participa da série “O escritor por ele
mesmo”, produzida pelo Instituto Moreira Salles, recitando alguns de seus mais
belos poemas.
Dora Ferreira da Silva faleceu
aos 87 anos, na tarde do 6 de abril de 2006. Seu último trabalho foi publicado
postumamente pelo Instituto Moreira Salles, na edição dos Cadernos de
Literatura Brasileira dedicada a Guimarães Rosa, que freqüentou a
residência do casal, quando esteve em São Paulo, na década de 50, e com quem
manteve correspondência. O acervo pessoal de Dora encontra-se desde 2006 sob a
responsabilidade da Biblioteca, na sede do IMS, em São Paulo, onde está em
processamento técnico.
É em homenagem à obra desta
importante escritora, que nos deixou há um ano, que a Biblioteca do Instituto
Moreira Salles presta esta homenagem. Sempre fiel a suas inclinações místicas e
poéticas – José Paulo Paes a vê como um caso de hierofania, por sua poesia vir
permeada sempre pela “manifestação do sagrado” –, é assim que Dora Ferreira da
Silva define a si e a poesia:
“Acho que o papel do poeta é
parecido com o daqueles que levam a tocha na Olimpíada. Mesmo que o mundo
esteja dessacralizado, temos que acreditar que a vida é forte, transforma-se e
cria novas saídas. Penso na imagem de uma flor brotando nos interstícios de uma
pedra. Acredito nas diversas manifestações do divino, no anima mundi. Temos que
viver este não-ser, esta noite, esta dor como uma passagem. A fidelidade de
cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que se tem, ser fiel à sua voz
interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de suprir essa carência dos
deuses.”
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