De como uma escritora “maldita” findou transformada em Best-Seller

 
Por Máximo Soto

Goliarda Sapienza


 
Se uma das características da obra de arte é a quantidade de interpretações a que leva seu caráter poético, polissêmico, sem dúvida L’arte dela gioia, romance da escritora siciliana Goliarda Sapienza, alcança essa posição.
 
Descartado duas décadas, a partir de 1976, por diferentes editoras italianas, censurado como imoral, pornográfico, escandalosamente feminista e absurdamente perverso ou como um pastiche melodramático torrencial com um fundo moralista, L’arte dela gioia tornou-se um “romance maldito” que aos poucos que por ele se interessavam faziam-no por uma mórbida curiosidade sobre quão longe Goliarda Sapienza havia chegado com suas transgressões. O romance foi finalmente publicado em 1996, em uma pequena editora, logo após a morte da escritora, graças aos esforços de Angelo Pellegrino, seu último companheiro.
 
Pouco depois, acontece algo que leva um dos maiores críticos italianos a escrever “mais uma vez está provado que o mundo da cultura oficial, composto de editores e críticos, é uma camarilha de medíocres”. A afirmativa explosiva se quando L’arte dela gioia se tornava um poderoso Best-Seller na França. Foi saudado pela crítica francesa como “o romance mais importante dos últimos anos, uma obra que marca a vida do leitor, um afresco do século XX italiano que deve tanto a O Leopardo de Lampedusa quanto A religiosa de Diderot ou as Memórias de Casanova, é mágico, magnífico, comovente”.
 
Talvez conhecer a incrível Goliarda Sapienza fosse a causa que justificasse a rejeição dos editores. Atriz de culto, amada pela “esquerda requintada”, “filha louca de uma mulher louca”, uma professora de teatro excepcional e essencialmente uma “sedutora profissional”, Goliarda levou uma vida que dificilmente poderia ser melhor do que uma de suas obras literárias. E ela sabia disso; é por isso que a maioria dos livros que publicou exploravam momentos de sua vida.
 
Quando seus pais, socialistas-anarquistas, deram o nome Goliarda a quem deveria carregar o sobrenome Sapienza, marcaram seu um destino. No início, tudo acontece na mítica Sicília. Maria Giudice, a mãe de Goliarda, era uma feminista e sindicalista que dirigia o jornal Grido del popolo, onde Antonio Gramsci era redator-chefe, e chegou a se tornar secretária da Câmara de Trabalho de Turim. Depois sete filhos em “união livre” com o anarquista Carlo Civardi, Maria se casou com o aristocrata, advogado e político socialista Guiseppe Sapienza, que tinha três filhos de um casamento anterior. A primeira filha desse casal nascerá em 1924 e será Goliarda, quem, devido a ascensão de Mussolini, será proibida de ir à escola; a educação é conduzida em casa, com um espírito ateísta e libertário, à parte de qualquer ensino fascista oficial.
 
Aos 16 anos, graças a uma bolsa de estudos, Goliarda viaja para Roma para integrar a Academia de Arte Dramática. Ela se destaca como atriz por unir sua beleza com talentosa capacidade interpretativa. Seus primeiros sucessos são alcançados com as obras de Pirandello, nas quais conhece Francesco “Citto” Maselli, sobrinho do magistral dramaturgo, seis anos mais jovem, com quem viverá 18 anos e o verá se tornar um cineasta de destaque. O casal terá como amigos, entre muitos outros, Michel Morgan, Lucía Bosé, Monica Vitti, Silvana Mangano, Alida Valli, Serge Reggiani, e os diretores Visconti, De Sica, Blasetti, Antonioni, Pasolini, Bertolucci, Comencini, Camerini.
 
Quando “Citto” Maselli alcançou o sucesso com o filme I delfini (1960), o casal entrou em sucessivos conflitos e alguns anos depois se separou. Goliarda, tem já 40 anos, sofre uma tremenda crise que a leva a várias tentativas de suicídio e a uma hospitalização psiquiátrica semelhante à sofrida há uma década que confinou sua mãe, de quem teve que cuidar até morrer em 1953.
 
Como aconteceu em outros casos ― o de Guy de Mauppasant é frequentemente citado como emblemático ― a escrita é curativa, permite a recuperação, afasta-a da loucura. A bela Goliarda refugia-se na narrativa. Assim, se sucedem vários livros de natureza autobiográfica. Em Lettera aperta (1967), ele conta sobre sua infância sob o fascismo e sob uma família progressista; em Il filo di mezzogiorno (1969), os eletrochoques que sofreu após suas tentativas de suicídio; em L’università di Rebibbia (1983), como foi presa após roubar joias de uma amiga que a humilhava, como explica: “diariamente eu a via enriquecendo enquanto me empobrecia. Cada vez que pedia a ela um empréstimo para publicar meu livro ou pagar a conta de luz que havia sido cortada, ela me convidava para jantar em lugares muito caros para simplesmente me dizer não. Eu roubei dela para confirmar que ela iria me denunciar. Além disso, precisava conhecer o mundo da prisão”.
 
Nenhum desses textos saíram do circuito italiano. E quando Goliarda Sapienza morreu em setembro de 1996, foi ignorada pela crítica e pelo público em seu país. Apenas um pequeno grupo de amigos jogou rosas e terra sobre seu caixão no cemitério de Gaeta.
 
Ninguém suspeitava que no mês seguinte na França, graças a L’arte dela gioia, romance que escreveu e reescreveu durante 20 anos, passaria a ser considerada uma das grandes romancistas italianas do século XX.
 
L’arte dela gioia pode ser considerado um romance de iniciação, narrativa-rio, romance erótico, romance histórico, tem um pouco de tudo isso e muito mais. Goliarda funde dados de sua vida com outros de sua mãe, mas acima de tudo constrói uma personagem impressionante. Nas mais de setecentas páginas, onde são contados 60 anos da vida de Modesta, o leitor aprende como uma menina pobre de um povoado rural da Sicília entra nos prazeres orais graças a um amiguinho, é estuprada pelo padrasto, comete matricídio e fratricídio “acidental” (primeiro de seus “crimes não intencionais”), e é levada a um convento onde é ajudada por uma madre superiora aristocrática, cheia de tentações, que se suicida.
 
A partir daí, Modesta vai para a casa da mãe da freira, a Princesa Brandiforti. Com notável astúcia, tendo relacionamentos eróticas e amorosas com homens e mulheres, ela atinge uma irrefreável ascensão social e se torna a princesa consorte de um oligofrênico. Mas isso é apenas parte do argumento, um comentário plano, uma vez que todos esses incidentes são cercados por eventos históricos e culturais que ocorreram na Itália durante grande parte do século XX, que adicionam densidade à história.

* Este texto é a tradução livre de “De cómo una autora maldita terminó convertida en best seller”, publicado no site Ámbito.

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