Uma lista de autobiografias indispensáveis (Parte 2)
Motivados
pela aparição da trilogia autobiográfica de Máksim Górki, modelamos uma lista,
extensa por sinal, de alguns livros do gênero que consideramos indispensáveis ao
leitor interessado. Na primeira parte, escrevemos livros de Gabriel García
Márquez, Doris Lessing, J. M. Coetzee, Philip Roth e Simone de Beauvoir, além, é
claro do escritor russo, nosso ponto de partida. Hoje acrescentamos a este rol
outros importantes textos de importantes escritores e com destaque para alguns
nomes da literatura brasileira, afinal se a França teve um Marcel Proust, por
aqui tivemos um Pedro Nava, não raras vezes lido como um Proust dos trópicos.
Vamos aos
títulos. E nunca é demais lembrar que este não é um ranking e não é uma lista definitiva. As sinopses, grande parte,
foram copiadas a partir dos resumos oferecidos nos sites das editoras responsáveis
pela edição das obras no Brasil.
Gertrude Stein e Alice B. Toklas |
1. Autobiografia de Alice B. Toklas, de Gertrude
Stein: publicada inicialmente de forma fragmentada – em quatro longos textos em
números seguidos da Atlantic Monthly,
o livro ganhou edição em 1933. Trata-se de uma descrição de sua vida como expatriada
em Paris, para onde se mudou acompanhada de seu irmão Leo Stein nos primeiros
anos do século XX, momento em que abandonou o curso de Medicina na Universidade
John Hopkins. A atenção particular de Stein, embora mire toda a efervescência cultural
da Paris desse tempo, é a de sua companheira Alice B. Toklas, personagem-título
e quem cuidava dos afazeres domésticos e da datilografia dos escritos de Stein.
Trata-se de um retrato divertido sobre a convivência do casal com gente como
Pablo Picasso, Henri Matisse, George Braque, F. Scott Fitzgerald e Ernest
Hemingway. O segundo volume desses relatos autobiográficos vem com o título de Autobiografia de todo mundo; aqui, a
autora conta o período que antecede sua viagem aos Estados Unidos para uma série
de palestras e o roteiro percorrido durante dois anos pelas citadas
estadunidenses ao lado de Toklas. Esse período é novamente marcado pela presença
de uma grande e diversificada quantidade de nomes da cena artística, tais como
Charles Chaplin e Bob Davis.
2. De amor e trevas, de Amós Oz: o escritor
possui uma quantidade significativa de títulos do gênero. Mas este, é
possivelmente, o mais completo. A extensa narrativa desenvolvida em mais de
seis centenas de páginas recria os caminhos percorridos pelo seu país de
origem, Israel, no século XX, da diáspora à fundação de uma nação e de uma
língua. Oz não se descuida de enfrentar um dos temas primordiais na construção de
sua obra: o sionismo e criação de Israel como necessidade histórica de um povo
confrontado com a ameaça de extinção. Tudo visto através do olhar de um menino
quem conduz o fio de uma narrativa que, sendo a história de constituição da
identidade de uma nação é também a da identidade dessa personagem.
3. Fala memória, de Vladimir Nabokov: a
invocação de uma série de lembranças sutis é o que faz desse título um dos mais
originais e marcantes da literatura contemporânea. O autor de Lolita perscruta seu despertar para o
mundo e sua relação interior com os acontecimentos à sua volta. Trata-se de uma
jornada pessoal em meio a situações históricas complexas da história do século
XX; o escritor, no entanto, tal como Amós Oz transcende o lugar da autobiografia
para intercalar tais eventos da história e o impacto que tiveram na sua formação.
Publicada pela primeira vez em 1951 com título nada agradável de Evidência conclusiva a obra passou por
uma extensa revisão até ser novamente editada em 1966 com o título que chegou até
nós.
4. As pequenas memórias, de José Saramago:
o escritor rompe a sisudez do português quando começa a escrever, depois que se
muda para Lanzarote, uma ilha do arquipélago das Canárias, em 1992 o que ficou
conhecido como Cadernos de Lanzarote.
Esses textos são diários, anotações sobre
o andamento das obras que escreveu depois daí, tal como Ensaio sobre a cegueira e
Todos os nomes, mas foi um projeto abandonado, uma vez que o escritor era
cada vez mais convidado para conferências ao redor do mundo e, claro, precisa
ocupar-se da escrita de outros romances. Mas, depois de acalentar durante muito
tempo na escrita um livro que se chamaria As
tentações, Saramago deu voz a um narrador de cunho lírico e saudosista para
compor poucas páginas do que foi o período da infância a adolescência – esta segunda
fase vivida entre Lisboa, para onde se mudam os pais e o sítio dos avós no
Alentejo.
5. Solo de clarineta, de Erico Verissimo: não
prática corriqueira entre os escritores do Brasil esse exercício para o relato
autobiográfico. Mas, ao percorrer a escassa produção literária do gênero esses
dois volumes escritos pelo mestre de O
tempo e o vento não podem ficar de fora. Descrito como uma obra sobre
ficção e a arte literária, os dois volumes de Solo de clarineta são o testemunho de um período da nossa história
e o retrato de uma família que, escrito com a maestria de Erico alcança a
natureza de um romance. Aí está Erico desde garoto, a decadência econômica da família,
a luta da mãe para manter os filhos com o trabalho de modista, as primeiras
leituras, até a consagração como um dos maiores nomes da nossa literatura. O
primeiro volume segue a infância do escritor até os anos 1950, quando Dave
Jaffe pede Clarissa, filha de Erico, em casamento. O segundo, que se inicia com
as bodas da filha segue as andanças do escritor pelos Estados Unidos e pela
Europa. Essa segunda parte não chegou a ser concluída e foi organizada por
Flávio Loureiro e publicada postumamente.
6. Baú de ossos, de Pedro Nava: a vida do
escritor foi a de reescrevê-la minuciosamente numa obra de que se inicia com este
título, em 1972 e vinda com o incompleto Cera
das almas, publicado postumamente em 2002. Nesse intervalo organiza-se Balão cativo (1973), Chão-de-ferro (1976), Beira-mar (1978), Galo das trevas (1981) e O
círio perfeito (1983). No título aqui indicado, o escritor reconstitui a
genealogia dos antepassados e os primeiros anos da infância; no segundo título
aborda principalmente a vivência carioca para onde se mudou e passou toda a
vida – é o Rio da Belle Époque em modernização, mas é também os anos de formação
na Faculdade de Medicina; depois são ainda os anos de formação, mas a sua
integração plena a roda de amigos que, entre o Bar do Ponto, a rua da Bahia, o
Café Estrela e outros lugares emblemáticos da Belo Horizonte antiga, para onde
sempre voltava no período de férias, conhece nomes como Carlos Drummond de
Andrade, Juscelino Kubitschek, Abgar Renault, Milton Campos, Aníbal Machado e
Gustavo Capanema. Já em Galo das trevas,
o leitor encontra um Nava consagrado pelo sucesso de sua saga autobiográfica;
aqui se dedica a pensar o Brasil do passado a partir de suas aventuras como
médico no interior rural. Por fim, o livro inacabado, de um projeto que visava
alcançar não seis, mas sete volumes. Em O
círio perfeito, Nava trata de sua mudança para o Rio de Janeiro.
7. Diários, de Franz Kafka: o título é
desconhecido no Brasil, mas há uma edição em língua portuguesa publicada em
Portugal. Quando começou a escrever esses diários o autor de A metamorfose trabalhava numa companhia de seguros; havia acabado muito a
contragosto o curso de Direito, mas vivia ainda com os pais e as três irmãs em
Praga. É o período de fortalecimento das amizades com Feliz Weltsch, Oskar Baum
e Max Brod, este último a quem confiaria toda sua papelada antes de morrer na
expectativa de que o amigo desse fim ao arquivo. Com este grupo encontramos
Kafka em cafés, cinemas e bordeis, além de se dedicar às primeiras publicações em
revistas e a ser reconhecido como escritor, mas num círculo muito pequeno.
Durante catorze anos, manteve o registro que acompanha suas inquietações elaboradas
de forma obsessiva durante toda uma vida: a relação conflituosa com o pai, a
violência em família, o judaísmo, as descobertas do corpo, a hesitação entre o
casamento e o celibato, a vida profissional como uma prisão. O leitor ainda
acompanha o estopim da Primeira Guerra Mundial, mas os acontecimentos
históricos passam muito longe de seus registros que se concentram na sua
vocação de escritor, entendida ora como uma resistência ora uma necessidade de
sobrevivência. Sobe os conflitos com o pai vale a leitura de Carta ao pai, texto que Kafka escreveu entre
os dias 10 e 19 de novembro de 1919, quando, insatisfeito com a fria recepção
paterna diante o anúncio de seu noivado com Julie Wohryzek. O texto de mais de
cem páginas foi escrito por um Kafka aos 36 anos e nuca foi enviado ao seu destinatário;
nele, o escritor coloca no papel toda a sua mágoa para com o autoritarismo de
um pai que ele chama de “tirano”, “regente”, “rei”, “Deus”; o livro acabou por se
tornar num rico documento sobre a influência negativa da autoridade sobre a
formação de personalidade sadia.
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