Uma crônica de José Saramago sobre Jorge de Sena
1. Há alguns meses cumpriu a longa travessia pelo Atlântico, não por mares mas por ares, um livro dos muitos de José Saramago que estão sem publicação no Brasil. Chama-se Folhas Políticas e recolhe textos publicados em meios diversos da mídia portuguesa entre os anos de 1976 e 1998. Apesar do título notei que os textos percorrem temas e idéias das mais variadas. E os textos são de gêneros também diversas; a grande parte é de crônicas, mas há discursos, como o que leu no recebimento do Prêmio Cidade de Lisboa, em 1981, pelo livro Levantado do chão.
2. Na segunda-feira, faz 30 anos da morte do escritor Jorge de Sena. Para quem não o conhece, o português viveu uma parte de sua vida no Brasil; fez doutorado aqui e foi professor em Araraquara. Suspeito que quase ninguém saiba disso. Se viveu aqui, aqui escreveu então boa parte de sua obra. Veio para cá perseguido pela ditadura em seu país e foi embora do Brasil pelo mesmo motivo. Passou a viver nos Estados Unidos e lá ficou o restante da vida. Foi dos nomes-prodígio da literatura portuguesa; escreveu romance, poesia, ensaio, crônica, peças de teatro, conto, crônica.
3. Juntando 1+2, na sequência copio uma crônica de José Saramago escrita para o Diário de Lisboa e publicada há trinta anos. É o texto de um escritor indignado. Refaz, como se verá, a própria condição de Jorge de Sena com o seu país, condição, aliás, que parece ser também a do próprio autor da crônica. Não podemos esquecer que mesmo Saramago tendo recebido o mais importante reconhecimento - o Nobel de Literatura - é um escritor malquisto entre alguns setores em seu país tantos anos depois. Imagine em 1978! Bom, fica o texto com a esperança de algum dia os leitores do escritor possam também ter este livro em mãos. Ah! Espero um dia conhecer essas cartas que ele fala no texto!
Jorge de Sena. Foto: Eduardo Gageiro |
Sena
Também conheci Jorge de Sena. Não muito bem (se alguém se pode gabar de tal), mas por aquela via que talvez dê para conhecer melhor: as cartas. Contadas, foram pouquíssimas as falas que trocámos. Escritas, são larguíssimas dezenas (ou centenas?) as páginas que de um lado e do outro se escreveram. Eram elas de razão editorial, mas quem alguma vez recebeu carta de Jorge de Sena, sabe que nela sempre esteve, além do motivo imediato que a justificasse, um outro motivo que em todas obsessivamente se exprimia: o autor delas. Diz-se que Jorge de Sena era vaidoso, egocêntrico, parece que mesmo megalómano. Talvez fosse tudo isso e muito mais, talvez concentrasse em si quanto de defeitos a espécie humana tem vindo a coleccionar: seria uma outra singular forma de grandeza. Mas Jorge de Sena usava o admirável impudor de não poupar precisamente as palavras que mais riscos comportassem. E, pelo que julgo saber, nunca Jorge de Sena terá sido tão franco, tão brutalmente afrontador, como nas cartas que escreveu. Se algum dia se publicar a correspondência de Sena, receio bem que metade da catedral literária portuguesa vá pelos ares. E se é de revulsivos desses que estamos a precisar, temos a medicina à mão.
Este artigo não é um necrológio, muito menos um elogio fúnebre. Há evidente indecência no habitual derramar de louvores e lamúrias, quando morre alguém que justamente foi para o outro mundo com a boca amarga de repugnância por incensadores póstumos e carpideiras. A morte de Jorge de Sena é uma vergonha para Portugal. Não foi português o cancro que o matou, mas é portuguesa a indiferença que torna as mortes mais dolorosas. Não sei que últimas palavras foram as de Jorge de Sena, se teve tempo e paciência de as ditar para a história, se não preferiu o desprezo do silêncio precisamente para calar palavras de desprezo. Se uma carta pudesse ter escrito, estou que não seria uma carta, mas um rugido. Mas Portugal é um país de surdos depois de ter sido um país de mudos.
Revejo Jorge de Sena, exactamente há um ano, acompanho na televisão o seu gosto de provocação desesperada, a imprecação lançada contra os ouvidos rolhados dos espectadores de perto e de longe, e pergunto a mim mesmo quantos Jorges de Sena precisarão ainda de morrer para que, enfim, esta terra comece a valer pelo que saiba e cultive, e não pelo que de si mesmos cuidam os atletas da mediocridade nacional que foram e desgraçadamente continuam a ser os que em nosso nome falam. Na Guarda, Jorge de Sena tocava a rebate, possesso, quase patético, algumas vezes (que importância tem isso?) roçando o ridículo para melhor insultar a corte que o ouvia. E, feito seu número, tendo dito muito mais do que se lhe pedira, tendo posto diante de um país inteiro a sua profunda ferida (sua, de ambos), foi-se ao que lhe restava de vida, um brevíssimo ano, para continuar oque sempre fizera: escrever. Se algum dos portugueses de agora encarnou dramaticamente a dignidade de ser escritor, esse foi Jorge de Sena. Isso que Jorge de Sena soube ser melhor do que ninguém, e não falando agora no que a sua obra representa, é provavelmente a grande lição que aos escritores portugueses conviria aprender. Ou não merecemos sequer o pão que comemos.
Em geral, quando morre um escritor, um artista, a benevolência colectiva acode a pedir que se esqueça o homem e se fale da obra. Vem isso da velha impregnação cristã do perdão dos pecados, e do pequenino orgulho de nos julgarmos cada um de nós senhores desse perdão, só porque continuamos vivos. No caso de Jorge de Sena prefiro não esquecer o homem que mal conheci. Prefiro reflectir sobre os seus defeitos de carácter, apurar as razões que não se dêem por satisfeitas com as banais (mesmo que rigorosas) explicações que a psicanálise dá. E ver se são defeitos. Ver se não trataria antes de uma hipertrofiada consciência do valor do homem, da acção transformadora do homem. E concluir, enfim, se este patriarcal país, se esta pastosa e desvertebrada classe intelectual (em sentido lato) que do país melhor ou pior se vai servindo, não estará antes precisando de adquirir urgentemente alguns dos defeitos de Jorge de Sena. Se não formos capazes de lhe comunicar a obra, ao menos prolonguemos o homem.
Têm agora a palavra os críticos, os historiadores, os que descompõem e recompõem. Por mim, que não chego a tanto, tirarei de Jorge de Sena o que for capaz de receber e manterei os ouvidos bem abertos à sua furiosa voz, à sua cáustica insolência, ao seu infinito gemido de ser português e desprezado.
Comentários