Emily Dickinson por Ana Cristina Cesar
2 de junho assinala a passagem do aniversário da poeta brasileira Ana Cristina Cesar. Abaixo, por essa ocasião, relembramos um texto crítico seu sobre a obra da poeta estadunidense Emily Dickinson mais um conjunto de poemas traduzidos pela própria Ana C. Este texto é uma cópia do que foi publicado no caderno Folhetim, de 06 de novembro de 1983.
Ao lado de Walt Whitman, Emily Dickinson é o grande nome da poesia
norte-americana do século 19. Seus nomes sugerem um contraponto que raia a
simetria dos opostos. A exuberância, o excesso, a retórica desmedida da voz de
Whitman, cujo imenso épico Leaves of
Grass canta o desejo eufórico de mapear a terra americana e jogar-se nos
braços do leitor - em oposição à tensão crítica e à secura dos poemas lacônicos
de Emily, sua voz baixa que fala da morte sem drama e da renúncia sem lamento. O
contraponto pode ser desdobrado quando se pensa nos dois personagens que a imaginação
desejaria biografar: Whitman todo exterioridade, peregrino e homem de ação,
Emily severa e reclusa a vida toda em pequeno território da Nova Inglaterra.
Derramamento de vida e palavra; reclusão e concentração de forma: uma tensão que
inaugura os caminhos da moderna poesia norte-americana.
No caso de Emily, uma inauguração que se dá de forma lenta e discreta.
Em 1862 (Emily nasceu em 30 e morreu em 86), o respeitável crítico Thonas
Higginson recebia uma carta aforismática de Emily pedindo sua opinião sobre
quatro poemas. O crítico ficou perplexo. Sem conseguir classificar os poemas,
achou-os “notáveis, mas estranhos”, e “delicados demais para publicação”.
Literato bem estabelecido, Higginson desconcertou-se com a poesia inteiramente
nova que lhe chagava às mãos. Eram versos marcados por uma “heterodoxia
melódica controlada por palavras-chave, cada parte expressando o todo, e pela alteração
da batida métrica para retardar ou acelerar o próprio tempo” - dimensões que o
crítico não estava apto a estimar, como observa o editor das obras completas de
Emily: 1775 poemas ao todo - e praticamente nada publicado durante sua vida.
Emily tomou Higginson rigorosamente como mentor, e manteve seus baús de
manuscritos inviolados. Os textos vieram a público lentamente, e só em 1955
estabeleceu-se uma edição definitiva. Os poemas traduzidos aqui revelam obsessões
temáticas de Emily (a morte, a renúncia) e mostram sua mania singular de pontuação,
que confere a seus poemas uma desaceleração afetiva e ao mesmo tempo um
sublinhado especial de certas palavras, sem no entanto aumentar-lhes o tom.
Há como que um mesmo volume, uma espécie de “monotonia” formal na
poesia de Emily (ecos da cantilena do hinário calvinista? Metrônomo? Mas
melodia, não). O efeito é surpreendente: discrição extrema de tom, sintaxe meio
telegráfica (“estenografia poética”, diria alguém, notando ainda seus monossílabos
e sua elocução intermitente) e temas de uma força que não julgaríamos passíveis
de tanta contenção. Não há celebração, choro, vela nem autopiedade alguma. E a
experiência sensível penetra obliquamente lá onde qualquer certeza metafisica
está sempre prestes a se romper.
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Fazer a Toalete - depois
Que a Morte esfria
O único Motivo de fazê-la
É difícil, e todavia -
É mais fácil que fazer
Tranças, e Corpetes apertados -
Quando olhos que afagaram
Por Decálogos são - arrebatados -
1203
O Passado é estranha Criatura
Olhá-lo de frente
É Arrebatamento
Ou Agonia -
Se a encontrares desarmado
É Bom fugir
Sua Munição tão gasta
Poderá ferir.
1026
Quem está morrendo, amor,
Precisa de tão pouco:
Um Copo d’água, o Rosto
Discreto de uma Flor,
Um Leque, talvez, uma Dor Amiga,
E a Certeza que nenhuma cor
Do Arco-Íris perceba
Quando embora for
1263
Não há Fragata igual a um livro, que daqui
Nos distancie
Nem Corcel que galope mais que um Verso
de Poesia -
Não custa Pedágio ao pobre
Essa Travessia -
Frugal é o Carro que nos leva
Nesta Via.
1272
Tão orgulhosa de morrer
Que nos envergonhamos
De tudo que amamos
E o seu desejo desconhece -
Tão satisfeita de partir
Que nós que não podemos
Subitamente - percebemos
Que à Inveja a Angústia quase cede -
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