A poesia de Antonio Cicero

Por Pedro Fernandes



Antonio Cicero, um dos nomes mais proeminentes da poesia brasileira do século XX, dedicou-se a várias frentes da escrita, além do gênero no qual se destacou; foi letrista e ensaísta. Dessas várias faces, ficou mais conhecido pelas suas letras que tomaram forma e ritmo na voz de alguns dos mais expressivos intérpretes da nossa rica cena musical; produção que se deu desde jovem, mas só se torna popular por sua irmã, a cantora, compositora e também escritora Marina Lima.

A formação de Antonio Cicero é na área da filosofia, curso iniciado na Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) depois de cumprir o ensino médio em Washington, nos Estados Unidos, onde morou quando o pai, o economista Ewaldo Correia, foi nomeado para um cargo no recém-fundado Banco Interamericano de Desenvolvimento e a família precisou deixar o Brasil. 

O curso superior só foi concluído na Universidade de Londres. Como muitos de sua geração, Cicero também se viu obrigado a deixar o Brasil depois da ditadura militar; sua ligação com o movimento estudantil fez com que fosse detido duas vezes pelo regime. Temeroso pelo destino do filho, Ewaldo Correia interviu na sua saída do país. A passagem pela capital inglesa findou por levá-lo ao encontro com vários outros exilados, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. 

Depois de concluir o curso superior, retornou aos Estados Unidos para continuar os estudos na Universidade de Georgetown. No regresso ao Brasil, perto do final dos anos 1970, passou a lecionar na sua área em vários cursos superiores no Rio de Janeiro. 

E foi na década seguinte que algumas das letras feitas para composições da irmã começaram a ganhar o público: eram canções como “Fullgás”, “Para começar” e “À francesa” — esta última com mão também de Cláudio Zoli. A parceria com Marina Lima, ampliou seus contatos musicais com compositores como Waly Salomão, João Bosco, Orlando Moraes, Adriana Calcanhotto e Lulu Santos. 

A década de 1990 foi prolífica para o autor, incluindo a sua aproximação com outros escritores e intelectuais, reavivando pelo convívio um feito paterno que o próprio Cicero acompanhou desde pequeno: passavam pela casa da família, à companhia de Ewaldo, muitos dos intelectuais ou gente interessada no pensamento, na arte e no universo da palavra.

Uma dessas portas abriu-se em 1993. Em colaboração com o também poeta Waly Salomão e com o patrocínio do Banco Nacional, o  projeto Banco Nacional de Ideias promoveu vários ciclos de conferências e de discussões centradas nas obras de autores como João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos, Caetano Veloso, Tzvetan Todorov, Darcy Ribeiro, Hans Magnus Enzensberger, João Ubaldo Ribeiro, Zuenir Ventura, Cacá Diegues, entre outros. O resultado, além das trocas de saberes, de convívios, foi a publicação de O relativismo enquanto visão do mundo, reunindo os textos apresentados durante o projeto.

Dois anos adiante, Cicero publicou o seu primeiro livro O mundo desde o fim, um ensaio filosófico com o qual logo recebeu o Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira. Neste mesmo gênero, escreveu também Finalidades sem fim (2005, finalista no Prêmio Jabuti), Poesia e filosofia (2012) e A poesia e a crítica (2017). Neste último, apresenta suas considerações acerca de vários poetas de sua predileção, como Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar e Armando Freitas Filho.

A estreia como poeta aconteceu em 1996 com Guardar, livro que abre com um poema de mesmo título e que foi integrado à lista dos Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século XX. O segredo guardado neste texto é a revelação da poesia como matéria a que devemos cuidá-la a fim de não perecer, isto é, um apelo tornado prática, como é possível encontrar na trajetória de Cicero pelo universo das palavras. 

A cidade e os livros (2002) reafirmou a solidez do projeto poético bem-acolhido quase uma década antes: uma poesia de aparente dicção classicista e interessada na captura do agora — coisas, pessoas, acontecimentos íntimos, vozes. Se buscarmos as próprias palavras de Antonio Cicero, sua poesia é estabelecida num dos planos da modernidade: o da agoralidade. “Este instante”, escreve em O mundo desde o fim, consiste numa expressão dêitica, isto é, tal que seu significado se determina mediante referência à instância de enunciação do discurso.”

Essa, uma qualidade possível de mapear no seu laboratório filosófico, foi também aprendida do convívio com a poesia de língua inglesa, gosto formado, sem dúvidas, das primeiras leituras por despertar o interesse literário feitas ainda nos Estados Unidos, quando entrou em contato com obras de clássicos naquele idioma. 

No mesmo ano em que publicou Poesia e filosofia, saiu o terceiro volume de poemas: Porventura. Este livro deu ao poeta o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, instituição que o recebeu na cadeira 27. Nos poemas reunidos depois de mais de uma década do livro anterior, conjugam-se o reconhecido diálogo entre o clássico e o comum, a literatura e a filosofia.

Diagnosticado com Alzheimer e já no estágio em que a doença começa a dar baixa ao campo mais sensível das memórias, Cicero tomou a decisão pela eutanásia e morreu no dia 23 de outubro de 2024, na Suíça. “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, escreveu no que foram suas últimas palavras na carta de despedida aos amigos. 

Abaixo, alguns poemas de Antonio Cicero.¹


Canção da alma caiada²

Aprendi desde criança
Que é melhor me calar
E dançar conforme a dança
Do que jamais ousar

Mas às vezes pressinto
Que não me enquadro na lei:
Minto sobre o que sinto
E esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar,
Sem me poder vencer:
Tento afogar no mar
O fogo em que quero arder.

De dia caio minh'alma
Só à noite caio em mim
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.


Simbiose

Sou seu poeta só
Só em você descubro a poesia
Que era minha já
Mas eu não via.

Só eu sou seu poeta
Só eu revelo a poesia sua
e à noite indiscreta
você de lua.


Inverno

                   a Suzana Morais

No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir

de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?

Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar


Guardar

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por 
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.²


Notas:
1 Todos os textos aqui copiados são do primeiro livro Guardar, que reuniu poemas e letras de Antonio Cicero.

2 Esta é a primeira letra que Marina Lima musicou, feita por Antonio Cicero nos Estados Unidos. Maria Bethânia chegou a gravar a música em 1977, mas foi censurada. Anos depois, Zizi Possi fez nova gravação.


* Esta publicação foi atualizada em 23 de outubro de 2024.

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