João Guimarães Rosa, o feiticeiro das palavras



Guimarães Rosa

“― Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram e briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente ― depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães é questão de opiniães... O sertão está em toda parte.”

Este belíssimo fragmento de Grande Sertão: Veredas, obra-prima do mestre da Literatura Brasileira Guimarães Rosa, é apenas um recorte que justifica a riqueza literária e o seu trabalho com a escrita. Para se deleitar ainda mais, é preciso que se leia a obra; alguém já disse, e não custa repetir que todo brasileiro deveria ler esse romance. Ninguém melhor que Guimarães Rosa universalizou o sertão e o tema do sertanejo.

“Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa.

Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens.

Às vezes, quase acredito que eu mesmo, João, seja um conto contado por mim.

Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numérico. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura.”

Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu, em 19 de novembro de 1967, Guimarães Rosa tinha 59 anos. Tinha se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da Literatura Brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. Depois desse volume, escreveria apenas outros quatro livros. Realização, no entanto, que o levou à glória, como poucos escritores nacionais. Guimarães Rosa, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.

“A beleza aqui é como se a gente a bebesse em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão.”

Três dias antes da morte, Guimarães Rosa decidiu, depois de quatro anos de adiamento assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Homem de temperamento emotivo e sensível, foi traído pela emoção. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse, “a gente morre é provar que viveu.”

Joãozito, como era chamado pela família, nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidade mineira próxima a Curvelo e Sete Lagoas, área de fazenda e engorda de gado. Viveu lá durante dez anos. João era filho de Floduardo Pinto Rosa e de Francisca Guimarães Rosa. O casal teve outros cinco filhos, todos depois de João.

Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Manuel Bandeira

“Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.”

Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, Les Femmes qui aiment. Aos dez anos vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond de Andrade, o futuro amigo.

“Ficamos sem saber o que era João e se João existiu de se pegar”
(Carlos Drummond de Andrade)

Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para freqüentar a Biblioteca da Cidade de Belo Horizonte, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos Esportes. Em 1930, formado, o médico vai exercer a profissão em Itaguara, onde fica por dois anos. Rosa revela-se um profissional dedicado, respeitado, famoso pela precisão dos seus diagnósticos. O período em Itaguara influi decisivamente em sua carreira literária. Para chegar aos pacientes desloca-se a cavalo. Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do cotidiano, Guimarães inicia suas anotações, colecionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas histórias que já escreve.

*

“Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago... ― foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde em extenso ia.”
(Grande Sertão: Veredas)

Nos tempos da faculdade, Guimarães Rosa dedica-se também à literatura. Levado pela necessidade financeira, escreve contos para a revista O Cruzeiro. Concorre quatro vezes, em todas sendo premiado com cem mil réis. Na época, escreve friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Em 19332, ano da Revolução Constitucionalista, o médico escritor volta a Belo Horizonte, servindo como voluntário da Força Pública. A partir de 1934, atua como oficial médico em Barbacena. Paralelamente, escreve. Antes que os anos trinta terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de Viator, concorre ao Prêmio Humberto de Campos, com o volume intitulado Contos, que em 1946, após uma revisão do autor, se transforma em Sagarana, obra que rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra os regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.

*

“Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; portanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida.”
(Grande Sertão: Veredas)

“Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte.”

Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma ele passava horas estudando, queria aprender rapidamente a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordante de sua emotividade impediram que prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi seu forte, nem a diplomacia, atividade que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Rosa tinha o conhecimento profundo de húngaro, russo e chinês, além de falar alemão, inglês, francês, romeno e italiano, entre outras línguas. O conhecimento de línguas estrangeiras seria um aliado do escritor, especialmente no que diz respeito à tradução da sua obra, já que o escritor mineiro se notabilizou pela invenção de vocábulos, além do registro da linguagem sertaneja brasileira, inacessível aos tradutores estrangeiros.

Guimarães Rosa do tempo em que foi cônsul na Alemanha.

Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 1942. Durante a II Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava os curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar. Seguindo a missão diplomática, Guimarães Rosa serve, em 1942, em Baden Baden; de lá vai para Bogotá, onde fica até 1944. O contato com o Brasil, no entanto, era freqüente. Em 1954, vai ao interior de Minas, rever as paisagens da infância. Três anos depois, é transferido para Paris.

“Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço”. (1946)

*

“O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender ― e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: ― Que você em sua vida toda por diante, tem de ficar para mim Riobaldo, pegado em mim sempre!...― que era como se Diadorim estivesse dizendo.”
(Grande Sertão: Veredas)

Aracy e Guimarães Rosa na Itália

Entre outubro e novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística à Itália. No ano seguinte, nos meses de setembro e outubro, o casal refaz o roteiro visitando as mesmas cidades. Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objetivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado para o seu trabalho, documentando, armazenando idéias, exercitando-se no manejo da língua.

*

“Arco íris próximo! Parece andar com o trem. Seu verde é belo ― bórico ― vê-se o roxo anil. Não tem raízes, não encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d'água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro como o trem divide o mundo”
(Grande Sertão: Veredas)

Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética, Com o vaqueiro Mariano. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas Corpo de Baile, onde continua a experiência iniciada com Sagarana. A partir de Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa ― autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro ― adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 1956. Na abertura do livro intitulada Campo Geral, Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguilim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens influenciados pelos astros.

“Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe nunca tinha avistado o mar, suspirava. Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?”
(Campo Geral)


* Este texto é resultado de cópia do site Alô Escola da TV Cultura.

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