Guimarães Rosa: o sertão está em toda parte
“Eu passei dois anos num túnel, um subterrâneo, só escrevendo, só escrevendo eternamente. Foi uma experiência transpsíquica, eu me sentia um espírito sem corpo, desencarnado ― só lucidez e angústia.”
(fragmento de carta de Guimarães Rosa ao amigo Silveirinha)
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“Acordei último. Alteado só se podia nadar no sol. Aí, quase que não se passavam mais os bandos de pássaros. Mesmo perfiz: que o dia ia dever ser bonito, firme. Chegou o Cavalcânti, vindo do Cererê-Velho, com recado: nenhuma novidades. Para o Cererê-Velho recambiei aviso: nenhumas novidades minhas também. O que positivo era, e do que os meus vigiadores do rededor davam confirmação. Antes, mesmo, por mais, que eu quisesse ficar prevenido, o dia era de paz.”
(Grande Sertão: Veredas)
O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que
se estende por 760 páginas, focaliza numa nova dimensão o ambiente e a gente
rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de
extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um
período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo,
o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa.
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“Diadorim a vir ― do topo da rua, punhal em mão,
avançar ― correndo amouco... Aí eles se vinham, cometer. Os trezentos passos.
Como eu estava depravado a vivo, quedeando. Eles todos, na fúria, tão
animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem,
gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes.
Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam,
se investiram... Ao que - fechou o fim e se fizeram.”
(Grande Sertão: Veredas)
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“A experiência documentária de Guimarães Rosa, a
observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e o nome da coisa, a capacidade
de entrar na psicologia do rústico ― tudo se transformou em significado
universal graças à invenção, que subtrai o livro da matriz regional, para
fazê-lo exprimir os grandes lugares-comuns, sem os quais a arte não sobrevive:
dor, júbilo, ódio, amor, morte, para cuja órbita nos arrasta a cada instante,
mostrando que o pitoresco é acessório, e na verdade, o Sertão é o Mundo.”
(Antonio Candido)
O SERTÃO É DO TAMANHO DO MUNDO
É o regional, o verdadeiro, o autêntico regional, que se
projeta e conquista a dimensão universal, sintetizada na condição humana ― o
homem é o homem, no sertão de Minas ou em qualquer outro lugar do mundo.
“Eu estou depois das tempestades.
O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? O
Urucuia é ázigo... Vida vencida de um, caminhos de todos para trás, é história
que instrui vida do senhor algum? O senhor enche uma caderneta... O senhor vê
aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?... Tudo sai é mesmo de escuros
buracos, tirante o que vem do Céu. Eu sei.”
(Grande Sertão: Veredas)1ª edição de Grande sertão: veredas |
O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande
impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas
línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e
público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um
sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis,
do Instituto Nacional do Livro, o Carmem Dolores Barbosa, de São Paulo, e o
Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja
considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se
um “caso” nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por
Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da
terceira geração modernista brasileira.
*
“Diadorim tinha morrido ― mil-vezes-mente ― para sempre
de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.
― E a guerra?! ― eu disse.
― Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!...
Nas vozes, nos fatos, que agora todos estavam explicando:
por tanto que, assim tristonhamente, a gente vencia.” (Grande Sertão: Veredas)
“Não me envergonho em admitir que Grande Sertão Veredas
me rendeu um montão de dinheiro. A esse respeito, quero dizer uma coisa:
enquanto escrevia Grande Sertão, minha mulher sofreu muito, porque eu estava
casado com o livro. Por isso dediquei-o a ela, como sou um fanático da
sinceridade lingüística, isso significou para mim que lhe dei o livro de
presente, e portanto o dinheiro ganho com esse romance pertence a ela, somente
a ela, e pode fazer o que quiser com ele.” (Guimarães Rosa)
Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o
respeito pela obra de Guimarães Rosa só aumentavam, em relação à crítica e ao
público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis,
concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa
a ter reconhecimento no exterior.
“A inspiração é uma espécie de transe. Só escrevo
atuado, em estado de transe...” (Guimarães Rosa)
*
“Sufoquei numa estrangulação de dó. Constante o que a
Mulher disse: carecida de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como ela mesma,
embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim. Ela rezava as rezas da Bahia.
Mandou todo mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça,
consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de
propósito o corpo e disse...
Diaodorim ― nu de tudo. E ela disse:
― A Deus dada. Pobrezinha...
Diadorim era mulher como o sol não ascende a água do rio
Urucuia, como eu solucei meu desespero.”
(Grande Sertão: Veredas)Uma das edições de Primeira estórias. |
Em 1962, é lançado Primeiras Histórias, livro que reúne
21 contos pequenos. Nos textos, as pesquisas formais características do autor,
uma extrema delicadeza e o que a crítica considera “atordoante
poesia”. No ano seguinte, em maio, candidata-se pela segunda vez à
Academia Brasileira de Letras, sendo eleito por unanimidade. O ano de 1965
marca a expansão do nome e do reconhecimento de Guimarães Rosa no exterior; já
o ano de 1967 anuncia-se grandioso para Guimarães Rosa. Em abril vai ao México,
representando o Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores. Na volta
é convidado junto com Jorge Amado e Antonio Olinto a integrar o júri do II
Concurso Nacional de Romance Walmap.
No meio do ano, publica seu último livro,
também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio
literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética,
divide a crítica: uns vêem o livro como “a bomba atômica da literatura
brasileira”; outros consideram que em suas páginas encontra-se a “chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua
criação”.
Guimarães Rosa toma posse na Academia Brasileira de Letras |
O escritor decide, então, tomar posse na Academia
Brasileira de Letras, no dia 16 de novembro de 1967, dia do aniversário de João
Neves da Fontoura, seu antecessor. No dia 19, Guimarães Rosa morreu em
decorrência de um enfarte.
“O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam
encantadas” (Guimarães Rosa)
* Este texto é resultado de cópia do site Alô Escola da TV Cultura.
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