Por que ler os clássicos: os livros de Italo Calvino (Parte 1)
Se uma parte
dos escritores preferem não avançar sobre o tema de quais são os seus livros
preferidos a título de não causar mal-entendidos entre os da sua comunidade,
uma pequena quantidade prefere citar os clássicos, outra esnobá-los, outra só
falar sobre o assunto quando interpelado por gente muito próxima e mais outra
que prefere não citar ninguém, mesmo tendo sua lista de preferidos, como
sabemos que todos têm.
Italo
Calvino foi um dos poucos que preferiu, não só registrar suas leituras
fundamentais no extenso trabalho de crítica literária que é exemplo para
qualquer iniciante ou reconhecido na área, como comentá-las sistematicamente ao
ponto de, naturalmente, oferecer-nos uma resposta para uma das perguntas mais
cabeludas da literatura: o que é um clássico? E todo esse itinerário de leitor
lhe forneceu algumas especulações e formulações só dadas à aproximação aos que
guardam pelos livros uma paixão fora do limite de culto ao objeto, mas pela sua
forma e o conteúdo.
Em 1981 escreveu
o texto “Por que ler os clássicos”, onde formaliza catorze tópicos ou propostas
de definição sobre a tal pergunta; foi um de seus últimos escritos e depois
logo se tornou o título de um livro em que este texto apresenta, por assim, uma
coletânea de parte dessas leituras do leitor Calvino. São romances, poemas,
ensaios de períodos diversos de sua vida, com uma característica em comum: são
os que mais contaram para ele, na sua formação.
A compilação
desses textos não foi um trabalho, é preciso ressaltar, do próprio escritor,
mas de sua companheira, conforme esclarece na nota de introdução ao livro. São trinta
e cinco livros que formam uma biblioteca essencial ou uma lista de títulos que
todos, uma vez, terão de tomar para si e fazê-la roteiro de leitura para uma
vida. Afinal, como diz o próprio escritor um clássico é um livro que nunca
termina de dizer o que tem para dizer.
Confira a primeira parte da lista e algumas das justificativas de Calvino:
1. Odisseia, de Homero: “Antes da Odisseia (incluindo-se a Ilíada), Ulisses sempre fora um herói épico,
e os heróis épicos, como Aquiles e Heitor na Ilíada, não têm aventuras fabulares daquele tipo, na base de
monstros e encantos. Mas o autor da Odisseia
deve manter Ulisses longe de casa por dez anos, desaparecido, inalcançável para
os familiares e para os ex-companheiros de armas. Para conseguir isso, deve
fazê-lo sair do mundo conhecido, entrar em outra geografia, num mundo
extra-humano, num além (não por acaso suas viagens culminam na visita aos
Infernos). Portanto, constitui a novidade
da Odisseia ter colocado um herói épico
como Ulisses às voltas ‘com bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de
homens’, isto é, em situações de um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas ‘no mundo da antiga fábula
e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas’”.
2. Anábase, de Xenofonte: “Em si mesmo, o
tema da Anábase seria adequado a um
conto picaresco ou herói-cômico: 10 mil mercenários gregos, engajados com
pretexto mentiroso por um príncipe persa, Ciro, o jovem, numa expedição ao
interior da Ásia Menor destinada na realidade a derrubar o irmão Artaxerxes II,
são derrotados na batalha de Cunaxa e se encontram sem chefes, distantes da
pátria, tendo de forçar o caminho de retorno entre populações inimigas. Só querem
voltar para casa, mas, o que quer que façam, eles constituem um perigo público:
são 10 mil, armados, famintos, aonde chegam depredam e destroem, como uma nuvem
de gafanhotos; e arrastam um enorme séquito de mulheres. Xenofonte não era do
tipo de deixar-se tentar pelo estilo heroico da epopeia nem de explorar – a não
ser raramente – os aspectos truculento-grotescos de uma situação como aquela. Escreve
o memorial técnico de um oficial, um diário de viagem com todas as distâncias e
os pontos de referência geográficos e informações sobre os recursos vegetais e
animais, e uma resenha de problemas diplomáticos, logísticos, estratégicos e
respectivas soluções”.
3. Metamorfoses, de Ovídio: “As Metamorfoses são o poema da rapidez,
tudo deve seguir-se em ritmo acelerado, impor-se à imaginação, cada imagem deve
sobrepor-se a uma outra imagem, adquirir evidência, dissolver-se. É o princípio
do cinematógrafo: cada verso como cada fotograma deve ser pleno de estímulos
visuais em movimento. O horror vacui
domina tanto o espaço quanto o tempo. Ao longo de páginas e mais páginas todos
os verbos estão no presente, tudo acontece diante de nossos olhos, os fatos
premem-se, toda distância é negada. E, quando Ovídio sente a necessidade de
mudar de ritmo, a primeira coisa que faz não é mudar o tempo dos verbos mas a
pessoa, passar da terceira para a segunda, isto é, introduzir a personagem
sobre a qual está para falar dirigindo-se a ela diretamente com o tu: ‘Tu quoque mutatum torvo, Neptune,
iuvenco...’. O presente não se encontra só no tempo verbal mas é a própria presença
da personagem que é evocada. Mesmo quando os verbos estão no passado, o
vocativo provoca uma aproximação repentina. Este procedimento é muitas vezes
usado quando vários sujeitos executam ações paralelas, para evitar a monotonia
na listagem. Se de fulano se falou na terceira pessoa, Tântalo e Sísifo entram
em ação por meio do tu e do vocativo.
Também as plantas têm direito à segunda pessoa (‘Vos quoque, flexipedes hedene,
venistis...’) e não há por que maravilhar-se, sobretudo quando são as plantas
que se movem como pessoas e acorrem ao som da cítara do viúvo Orfeu, agrupa-se
num denso viveiro de flora mediterrânea (Livro IX)”.
4. História natural, de Plínio: “Quando
falamos de Plínio, não sabemos nunca até que ponto podemos atribuir a ele as
ideias que exprime; de fato, ele faz questão de colocar o menos possível de
seu, limitando-se ao que transmitem as fontes; e isso segundo uma ideia
impessoal do saber, que exclui a originalidade individual. Para tentar
compreender qual é realmente o seu sentido da natureza, que lugar ocupa nele a
arcana majestade dos princípios e a materialidade dos elementos, devemos
ater-nos àquilo que é certamente seu, isto é, a substância expressiva da prosa”.
5. As sete princesas, de Nezami: “Nezami
(1141-1204), que nasceu e morreu em Ganjé (no Azerbaijão, que veio a integrar a
URSS; tendo vivido, portanto, num território em que se enraízam as estirpes iraniana,
curda e turca), um muçulmano sunita (naquela época, os xiitas ainda não tinham
assumido a liderança no Irã), conta nas Sete
princesas (Haft peikar,
literalmente ‘ase sete efígies’, que se
pode datar por volta de 1200, um dos cinco poemas escritos por ele) a história
de um soberano do século V, Bahram V, da dinastia sassânida. Assim, Nezami rememora
em chave de mística islâmica o passado da Pérsia zoroastriana; o seu poema
celebra tanto a vontade divina à qual o homem deve entregar-se inteiramente
quanto as várias potencialidades do mundo terrestre, com ressonâncias pagãs e
gnósticas (e também cristãs; igualmente é louvado o grande tuamaturgo Isu, ou
seja Jesus)”.
6. Tirante, o branco, de Joanot Martorell: “Desde
suas primeiras páginas, o primeiro romance de cavalaria da Espanha parece
querer advertir de que todo livro de cavalaria pressupõe um livro de cavalaria
precedente, necessário para que o herói se torne cavaleiro”.
7. Orlando furioso, de Ariosto: “Orlando furioso é um poema que se recusa
a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuação
de um outro poema, Orlando innamorato,
de Matteo Maria Boiardo, interrompido pela morte do autor. E se recusa a acabar
porque Ariosto não para nunca de trabalhar dentro de nós. Após tê-lo publicado
em sua primeira edição de 1516, em quarenta cantos, procura fazê-lo crescer,
inicialmente tentando dar-lhe uma sequência, que foi truncada (os chamados Cinque canti, publicados postumamente),
depois inserindo novos episódios nos cantos centrais, de modo que na terceira e
definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram a ser 46. Nesse meio-tempo,
houve uma edição de 1521, que testemunha outro modo de não se considerar o
poema definitivo, isto é, a limpeza, o ajuste da língua e da versificação, que
Ariosto continua a buscar. Por toda a vida, poderíamos dizer, pois para chegar
a edição de 1516, Ariosto havia trabalho doze anos e outros dezesseis sofre
para publicar a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a
partir do interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando novas
simetrias e novos contrastes, me parece que explica bem o método de construção
de Ariosto; e permanece para ele o verdadeiro modo de alargar esse poema de
estrutura policêntrica e sincrônica, cujas vicissitudes se difundem em todas as
direções e se bifurcam continuamente”.
8. O livro da minha vida, de Girolamo
Cardano: “A autobiografia (De propria vita)
que Cardano escreveu em Roma pouco antes de morrer é o livro pelo qual ele vive
para nós como personagem e como escritor. Escritor falido, pelo menos para a
literatura italiana, pois se tivesse tentado se exprimir em língua vulgar (e
certamente teria mostrado um italiano áspero e acidentado no gênero do de
Leonardo) em vez de teimar em redigir toda a sua obra em latim (acreditava ele
que esta era a condição para atingir a imortalidade), o nosso Quinhentos
literário teria tido não um clássico mas um autor bizarro a mais, tanto mais excêntrico
quanto representativo de seu século. Em vez disso, perdido nas águas magnas da
latinidade renascentista, permanece como uma leitura para eruditos: não porque
seu latim seja desengonçado, como pretendiam seus detratores (pelo contrário,
quanto mais é elíptico e temperado de idiotismo maior é o gosto de lê-lo), mas
certamente porque o coloca como detrás de um vidro espesso. (Creio que a
tradução mais recente [para o italiano]
é aquela publicada, em 1945, na ‘Universale’ Einaudi)”.
9. Diálogo sobre os dois principais sistemas
do mundo, de Galileu: “A contribuição mais nova de Galileu à metáfora livro-mundo
é a atenção ao seu alfabeto especial, aos ‘caracteres nos quais está escrito’. Pode-se
então precisar que a verdadeira relação metafórica se estabelece, mais do que
entre mundo e livro, entre mundo e alfabeto.”; “Uma das páginas mais belas e importantes
do Diálogo (primeira jornada) é o elogio
da Terra como objeto de alterações, mutações, gerações. Galileu evoca com
espanto a imagem de um Terra jaspe, de uma Terra de cristal, de uma Terra incorruptível,
como petrificada pela Medusa”.
10. História cômica dos estados e impérios da
lua, de Cyrano Bergerac: “Precursor da ficção científica, Cyrano nutre suas
fantasias com os conhecimentos científicos da época e com as tradições mágicas
renascentistas e, assim fazendo, produz antecipações que somente nós, mais de três
séculos depois, podemos apreciar como tais: os movimentos do astronauta que se
livrou da força da gravidade (ele chega a isso mediante gotas de orvalho que são
atraídas pelo Sol), os foguetes em vários estágios, os ‘livros sonoros’
(carrega-se o mecanismo, coloca-se uma agulha sobre o capítulo desejado,
ouvem-se os sons que saem de uma espécie de boca).”; “Qualidade intelectual e
qualidade poética convergem em Cyrano e fazem dele um escritor extraordinário,
no Seiscentos francês e em termos absolutos. Intelectualmente é um ‘libertino’,
um polemista envolvido na confusão que está mandando para os ares a velha concepção
de mundo: é partidário do sensualismo de Gassendi e da astronomia de Copérnico,
mas é nutrido sobretudo pela ‘filosofia natural’ do Quinhentos italiano: Cardano,
Bruno, Campanella”.
Ligações a esta post:
* Os
excertos são da tradução de Nilson Moulin, Companhia das Letras.
Comentários