Thiago de Mello



Talvez poucas pessoas neste tempo tenham mantido contato com a poesia de Thiago de Mello; claro, estamos num país de dimensões continentais e atravessado ainda por uma ignorância sobre os seus filhos, sobretudo, aqueles que, de fato, dão pulsão, dia após dia, a um projeto de nação pela palavra. Sim, um escritor tem, entre outras tarefas, essa: dizer ao seu povo o lugar do seu povo.

É essa consciência, basicamente, que é enformadora da obra poética de Thiago de Mello, autor de uma das poucas vozes engajadas do nosso tempo. O poeta que criou para si um mundo todo branco, refletido nas vestes que usa, é o que podemos chamar de uma das poucas figuras que marcam para fora o cenário da poesia brasileira contemporânea. E, talvez como nenhum outro, consegue estabelecer estreitamentos com a literatura latino-americana, descolonizando-nos da arrogância de individualidade norte-americana.

Nasceu em Barreirinhas, no Amazonas, em 1926, e desde quando se iniciou no ofício do verso dedicou-se profundamente a dizer esse lado mais fabuloso e maravilhoso do Brasil. E fez-se assim um dos poetas mais respeitados por seus versos e como uma voz que clama em proteção à Floresta Amazônica e a unificação dos povos da América Latina. Nesse trabalho, escreve o seu lugar na mesma linha de outros nomes da poesia: universalizar-se a partir de seu lugar de origem.

Se conseguirá, não é tarefa nossa dizer. Eis uma resposta que está eclipsada nas entranhas do tempo. O tempo, ante a crítica e a conservação da obra, é o grande responsável pela permanência ou esquecimento de uma obra. De Mello (como já o chamava José Lins do Rego) anuncia uma aurora, assim diz Felipe Fortuna. "Marcada pelo engajamento político, ela atravessa um momento crucial de nossa História: a expectativa das reformas sociais e, por fim, o golpe militar de 1964." Foi nesse ano que os poemas "Os estatutos do homem" e "Madrugada camponesa", dois títulos mais conhecidos de seu trabalho foram gestados. A poesia do poeta amazonense está sempre atenta aos movimentos em curso do seu tempo, não como celebração, mas como denúncia.

Apesar de alguns títulos como os citados levarem-no ao lugar do grande poeta, a crítica tem recebido sua permanência entre as linhas de intervenção, sobretudo, agora, noutra conjuntura histórico-social do país, como uma incapacidade de renovação poética, como se, ora veja, nossa indignidade tivesse sido varrida do mundo. Num campo de margaridas, o livro de 1986, foi recebido como um "mau gosto" poético e "uma poesia ingênua". Felipe Fortuna mesmo é um dos que diz ser essa a obra do declínio do poeta. "Como quem não domina seus recursos formais, Thiago de Mello se deixa embalar por composições que são, a um só tempo, cantigas melodiosas e anotações pessoais, mas, em nenhum dos casos, se trata de grande poesia". A dureza da crítica é adoçada pela pressa com que o poeta se ateve em publicar essa obra.

Sobre a relação com o contexto histórico mais fechado do Brasil, Thiago de Mello, como muitos de seu tempo, também foi preso e durante a ditadura militar precisou se exilar no Chile, país onde antes mantivera contato com o poeta Pablo Neruda de quem torna-se amigo para o resto da vida: antes do exílio, De Mello esteve no país como adido cultural. Da amizade com o poeta chileno resultaram traduções de poemas, além da escrita de ensaios acerca da sua obra. Neruda também terá retribuído os afetos e a dedicação do poeta brasileiro na mesma altura. 

No período de exílio, que durou mais de uma década, Thiago de Mello percorreu quase toda a América Latina e parte da Europa, e quando retorna do Chile, vai viver na sua cidade natal estabelecendo um contato quase primitivo com os povos das comunidades ribeirinhas. É desde então que se levanta sua consciência ambiental, sua luta derradeira num país que, motivado pelo lucro, pelo mercantilismo e pelas pulsões do espírito industrial, nunca aprendeu a respeitar com a devida vênia sua natureza.

Da sua obra o destaque são para os títulos iniciais que deram, de fato, o lugar merecido ao poeta. São obras como Silêncio e palavra, um dos seus primeiros livros, publicado em 1951, quando já está no Rio de Janeiro, vindo de Manaus, para cursar Medicina, um projeto gorado; Narciso cego (1952), Faz escuro, mas eu canto (1965, sua Magnum Opus) e o já citado Os estatutos do homem (1973). 

Também escreveu alguma prosa - A estrela da manhã (1968) e Borges na luz de Borges (1993) - e se dedicou à tradução; além de Pablo Neruda, traduziu T. S. Eliot, Ernesto Cardenal, Cesar Vallejo, Eliseo Diogo, Ruben Darío, Gabriela Mistral, entre outros. Parte destes, os poetas de língua espanhola estão numa rica antologia por ele organizada, Poetas da América de canto castelhano (2011). 

Para o crítico José Castello, a obra de Thiago de Mello ergue-se na contramão do projeto modernista. Ou seja, não se propôs às diatribes da linguagem, nem à  objetividade ou humorismo irônico. Preferiu o curso natural e já estabelecido da lírica.

Desde meados da década de noventa que não mais tem se dedicado a trabalhos mais significativos com a poesia. A aparição pública do poeta se deu quando do lançamento de um CD comemorativo aos oitenta anos: A criação do mundo traz uma antologia com poemas recitados pelo próprio poeta e outros musicados pelo irmão Gaudêncio de Mello. A partir desse silêncio fica cada vez mais evidente que, aquela inovação sonhada pela crítica nunca haverá de chegar: o seu lugar de permanência será sempre o da poesia insubmissa, no sentido de ser enfrentamento a um modelo de vida que se ergue complexo e destrutivo do próprio homem.

Quando muito esse lugar poético se deixa tomar pelas mesmas nuances do que é a poesia de Pablo Neruda: o poeta é um homem capaz de compreender seu lugar no mundo e deve nele intervir. Thiago de Mello morreu a 14 de janeiro de 2022,  em Manaus. Antes, publicou As águas sabem coisas (2020) e Acerto de contas (2015).


Fio da vida
na tarde em que as coronárias oclusas, entristecidas, me pedem para cantar, julho de 1998.

Já fiz mais do que podia
Nem sei como foi que fiz.
Muita vez nem quis a vida
a vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?
Para acender um tição
na frágua da indiferença?
Para abrir um coração

no fosso da inteligência?
Não sei, nunca vou saber.
Sei que de tanto me ter,
acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,
diz quem sabe. Pode andar,
contanto (vida é milagre)
que bem cumprido o meu fio.


A fruta aberta
Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.
Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com  tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

* Texto atualizado a 14 de janeiro de 2022.


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