Manual de pintura de caligrafia, de José Saramago

Uma das capas para uma edição brasileira de Manual de pintura
e caligrafia. 


Manual de pintura e caligrafia é o primeiro romance de José Saramago; pelo menos até enquanto o escritor português não admitiu publicamente que aquele A viúva, publicado em 1947, com outro nome, Terra do pecado era um romance que estaria na sua tábua bibliográfica. Até meados dos anos noventa, ele relutou que o livro publicado quando era um moço de vinte e poucos anos merecesse a permanência entre os seus trabalhos posteriores. Nesse périplo difícil de estabelecimento do escritor, sabe-se que além de textos de variada espécie (crítica literária, crônica, artigos de opinião, poesia e o romance fracassado) também existiu a decepção pelo esquecimento de um datiloscrito que até agora permanece inédito: A Clarabóia.

Falemos alguma coisa sobre o romance de 1977, publicado pela Moraes Editora com o paratexto de "Ensaio de romance", como se apontasse uma tentativa tímida do escritor tratado com desdém pela crítica aquando de sua estreia. Trata-se de uma obra que traz, desde seu título, uma marca na escrita saramaguiana: a de revisão das terminologias e, logo, de conceitos, dados às formas literárias. Chamar um romance de manual tem toda uma diversidade de sentidos: um deles, perseguido mas não confirmado pelo romancista, é a noção de um texto que guarda interesse de oferecer uma relação de instruções para o manuseio de determinado objeto - neste caso a pintura e a caligrafia. O curioso é que a textualidade foge dessa primeira ideia - o tom geralmente descritivo e prescritivo do manual - é exatamente o negado pela obra, visto que, mesmo a noção mais ou menos estabilizada de um modelo de romance, por exemplo, não vigora. E nem o seu narrador se propõe a um tratado, por assim dizer, sobre a pintura e a caligrafia.

Lido pela crítica como um romance cujas margens são povoadas por ecos de uma biografia do próprio autor - sendo, portanto, (e o próprio José Saramago atesta isso nos diálogos que manteve com o Professor Carlos Reis) o mais autobiográfico dos seus trabalhos. Entendendo que a crítica às vezes fala tanto que beira a linha do indevido e que muitas vezes o ponto de vista do escritor é determinado pela repetição do que esta mesma crítica repete (o que no caso saramaguiano parece ser justamente o contrário, i.e., a crítica repete o que repetiu o escritor) prefiro ver que a materialidade deste texto apenas pelos interstícios da ficção, afinal todo trabalho com a escrita do tipo é mantido pela imaginação, produto da criatividade e da vivência do escritor. E é ela o que interessa ao leitor e ao crítico. No dia que qualquer obra ficcional se constituir apenas em espaço para demarcações biográficas (e já existiu certo tempo), parem tudo! Para qual lugar entregaríamos o ofício do escritor? Como justificaríamos sua importância. Aliás, o Manual pode muito bem ser lido como essa alternativa de fuga do escritor a um imposição do lugar de verdade do autor na ficção. Sabemos de alguma opinião sua a esse respeito, principalmente na complexa indistinção entre o autor e narrador, mas, em momento algum é de uma transposição pura e simples de uma instância para a outra o que se defende.

O protagonista do enredo de Manual de pintura e caligrafia é H. - de inicial assim, maiúscula, mas sem nome próprio, como K. personagem de Franz Kafka ou a G. H. de Clarice Lispector. Aliás, esta figura saramaguiana muito tem do protagonista de O processo. Os dois se constituem do mesmo limbo desidentificador que povoa a sociedade contemporânea. H. é um pintor, um medíocre pintor de retratos, numa época em que a profissão há muito vendo sendo substituída pela fotografia. E sua mediocridade não se justifica pela profissão, mas pela incapacidade que padece de conseguir se reinventar. Também perdura qualquer coisa da G. H., se percebemos seu itinerário como o de descoberta de uma posição no mundo, compreensão que passa por um despertar epifânico dado aqui pela palavra ou pela transição entre o código pictural para o verbal; mas também a formação de um lugar de si no ambiente necrosado por sua condição num mundo burocrático. 

Tudo muda quando, um dia quando H. se dispõe a escrever sobre pintura usando de um gênero híbrido - entre a crônica autobiográfica e a precisão da crítica em torno de obras clássicas do circuito italiano; essa atitude é tomada num gesto que prova uma reviravolta na sua vida profissional: largar, por um motivo daqueles que não se explicam, o ofício. Quer dizer, essa descoberta de si no mundo é dada por uma variedade de outras modificações: como a da profissão. Ou a do amor. No decorrer do romance haverá de conhecer M., figura que conduzirá outros rumos à mesmice a que H. estava fadado. Eis aqui outro tema muito recorrente na literatura consolidada (no sentido de reconhecida) de José Saramago. Tem lugar aqui, além de uma noção de revolução pelo amor, o tratamento do feminino enquanto força propulsora, ou reinventora dos modos de existir que, afinal, o Manual é isto, um romance que, sem quaisquer características de autoajuda, é sobre a possibilidade de reinvenção do eu frente a vida.

Falamos sobre revolução. E esta também participa nesse processo de modificação do homem saramaguiano (sim, H. pode muito bem ser uma abreviação disso mesmo, homem, assim como M., de mulher). O fato histórico do 25 de Abril, o dia levantado e principal na história portuguesa, é ponto-limite da narrativa. Isto é, nenhuma modificação parece se manter - ou ser autêntica - se não implicar o aparecimento de outra consciência política. Poderá parecer clichê para alguns, mas parece ser a maneira mais coerente de uma compreensão sobre o eu: não desprezar uma emancipação política. É esta, inclusive, que permite ao homem se descobrir não ente isolado, preso à sua classe (refazendo o eco drummondiano que será caro também para o Saramago de Todos os nomes), fixado a uma vida unitária, amorfa, mas força motriz numa ordem coletiva - que pode ser a história, mas é, principalmente, das dimensões sociais. 

Parece interessante, então, percebermos que nada em Manual de pintura e caligrafia está - como esperado dos manuais - fora de lugar. Ou seja, mesmo a ordem de sentido deste gênero texto transmudado para título de romance reinventado, há qualquer coisa do sentido original à medida que descobrimos este romance como um espaço de reflexão da / pela arte mimética (seu questionamento) do mundo - as questões contextuais, a própria escrita, as artimanhas da palavra, da linguagem como elemento de constituição da realidade e o trabalho belíssimo de relação entre a escrita e a pintura, tema bastante caro nas reflexões construídas por José Saramago em toda sua obra.  

Outro sentido importante que o termo manual aponta e que podemos intuir por derivação do primeiro é a de tratamento manual, i.e., a de uma artesania construída pelas mãos. É notável que o ofício do pintor é o de reengendrar uma verdade figura pela pintura; da mesma maneira que o trabalho de urdidura do escritor. O romance também parece, assim. celebrar uma autenticidade das relações do homem com um ofício. Se acreditamos que sua condição de alheado socialmente passa pela imposição de um modelo econômico e cultural centrado na produção excessiva (o homem de fábrica de Charlie Chaplin), a manufatura restabelece qualquer coisa (ainda que pareça idílica) da renovação autêntica do homem. Não podemos deixar de reparar que a transição de H. da pintura para a caligrafia é não apenas produto de um artista em crise, em busca de lugar, mas uma crise da arte. 

Só digo: o Manual de pintura e caligrafia é um daqueles textos indispensáveis para a leitor de língua portuguesa. Toda obra romanesca de Saramago  - e sou suspeito - é. Entre nós, o livro chegou em 1992, mas no ano passado, a Companhia das Letras publicou uma nova edição no âmbito dessa bonita coleção ilustrada pelo belo trabalho (manual) de Arthur Luiz Piza.


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