Fernando Pessoa e a Coca-Cola
Fernando Pessoa, Moitinho de Almeida e um casal de estrangeiros apreciadores da ideia do refrigerante estadunidense. Foto: Jornal de Letras |
Fernando Pessoa foi um homem de ideias – ninguém duvidará disso. Mas, realizá-las,
bem, realizá-las é outra história. Ganhou a vida mais como tradutor de inglês para
o português, numa época em que Portugal mantinha uma profunda dependência com a
Inglaterra. E como sujeito tido para ideias poderia, se tivesse jeito com elas
se tornado um homem de negócios?
Possivelmente. Sabe-se que foi um dos inventores da famosa revista
responsável pela consolidação do modernismo em terras portuguesas, a Orpheu; esta talvez um dos seus primeiros
empreendimentos, mas que só durou três edições, uma delas não publicada. Antes,
havia criada a editora e tipografia Íbis, instalada em 1907 no Bairro da Glória
e mal funcionou; no mesmo ramo, criou em 1921, a Editora Olisipo que só publicou
três antologias de poemas em língua inglesa, A invenção do dia claro, de Almada Negreiros, o folheto Sodoma divinizada, de Raul Leal, Canções, de António Botto (essas últimas
publicações apreendidas pela censura) e só. Planejou muitas edições traduzidas,
mas nenhuma saiu do papel.
Outro interesse do poeta foi a consolidação de um estúdio de cinema; arquitetou
desde e compra de um galpão, ao desenho de vários roteiros e o projeto de
criação da Comospolis que substituiria a Sociedade de Propaganda de Portugal.
Sonhou, sonhou e nada passou de sonhos. Ao menos de nomes para os empreendimentos
era muito criativo e talvez tenha sido por eles, que recebeu convite para que
cuidasse da propaganda da chegada da Coca-Cola em Portugal. No texto que
copiamos abaixo, L. P. Moitinho de Almeida* destrinça essa história e, para não
ser diferente das demais, o seu fiasco.
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Na página necrológica do Diário
de Notícias de 18 de Julho de 1981 vinham a Administração e os empregados
de Mc Erickson/Hora participar o falecimento do fundador da referida empresa,
Manuel Martins da Hora.
O falecido era um homem bondoso, que cheguei a ver, de saco na mão, à
porta da igreja de Nossa Senhora de Fátima, a pedir para os pobres da
Conferência de S. Vicente de Paula.
Manuel Martins da Hora, embora não fosse um intelectual, fazia parte do
“cercle” de amigos de Fernando Pessoa, que o visitavam assiduamente no
escritório comercial de meu pai, onde Pessoa então trabalhava.
Por alturas de 1927 ou 1928, andava eu nos últimos anos do liceu, como
ia com muita frequência ao escritório de meu pai, passei a notar que entre ele,
Manuel Martins da Hora e Fernando Pessoa havia ali muitos conciliábulos.
Pouco tempo depois meu pai aparece como agente da Coca-Cola em Portugal
e estou convencido de que Manuel Martins da hora que, por certo com combinada
participação, levou esse negócio para o escritório, tanto mais que, já depois
do 25 de Abril, quando a Coca-Cola assentou definitivamente arraiais em Portugal,
o nome de Manuel Martins da Hora volta a aparecer mais ou menos ligado ao produto.
Na sua qualidade de agente da Coca-Cola, meu pai fez várias encomendas
de mercadorias, que vinha então dos Estados Unidos da América em garrafões e em
garrafas, estas muito parecidas, senão iguais, àquelas em que actualmente se
serve a bebida no nosso país.
O mercado (pelo menos o de Lisboa) foi abastecido de mercadoria e eu
recordo tê-la tomado, mais de uma vez, na companhia de condiscípulos do liceu,
na esplanada da Pastelaria Versailles, que então existia na Avenida da República.
Da propaganda comercial do produto foi encarregado Fernando Pessoa, que
era, aliás, quem vazia a correspondência com a empresa americana representada.
Fernando Pessoa colaborava assiduamente na Revista de Comércio e Contabilidade, dirigida pelo seu cunhado, o então
capitão Francisco Caetano Dias. Sabia de comércio como gente grande e era
exímio em “slogans” de propaganda comercial. O seu parente e meu amigo dr. José
Jaime Neves ainda conserva algumas “plaquettes” de propaganda de artigos de
escritório de meu pai (pelo menos das tintas e vernizes Berry/Loid) onde se
pressente a linguagem inigualável de Fernando Pessoa. Tenho pena de não ter conservado
nenhuma dessas “plaquettes”.
Para anunciar a Coca-Cola, Pessoa imaginou o seguinte “slogan”: “Primeiro
estranha-se. Depois entranha-se”.
A mercadoria começou a vender-se em ritmo animador, mas o “slogan” de
Fernando Pessoa ajudou à morte da representação da Coca-Cola por meu pai.
É que nessa altura era director de Saúde de Lisboa o dr. Ricardo Jorge,
que mandou apreender o produto existente no mercado e deitá-lo ao mar. No escritório
de meu pai ainda me recordo de ter visto alguns garrafões do precioso líquido
selados pela Direcção de Saúde.
O dr. Ricardo Jorge – contava-me Fernando Pessoa – justificava o seu
entendimento argumentando: se do produto faz parte a coca, da qual é extraído um
estupefaciente, a cocaína, a mercadoria não podia ser vendida ao público, para
não intoxicar ninguém; mas se o produto não tem coca, então anunciá-lo com esse
nome para o vender burla, o que igualmente justificava que ele não fosse permitido
no mercado.
Perante o “slogan” de Fernando Pessoa, o dr. Ricardo Jorge entendia –
contava igualmente Fernando Pessoa – que ele era o próprio reconhecimento da toxicidade
do produto, pois que, se primeiro se estranhava e depois se entranhava, isso
é precisamente o que sucede aos
estupefacientes que, embora tomados a primeira com estranheza, o paciente acaba
por adquirir a sua habituação.
Escusado será referir que meu pai teve um enorme prejuízo com a
interdição da Coca-Cola e com o consequente fim da respectiva representação em
Portugal.
Já não existem os arquivos de correspondência do escritório de meu pai,
que hoje seria interessante consultar. Mas talvez ainda exista o processo da
Coca-Cola na Direcção de Saúde de Lisboa. Se assim for, a história de Fernando
Pessoa e a Coca-Cola ainda pode ser melhor contada.
* Jornal de Letras, 16 de marco de 1982
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