Uma lista de autobiografias indispensáveis (Parte 1)
Ampliando a
presença da literatura russa no Brasil, a Cosac Naify apresentou a tradução de
Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman para três volumes da autobiografia de
Maksim Górki. Trata-se da trilogia autobiográfica, Infância, Ganhando meu pão e
Minhas universidades, que narra a
vida do pequeno Aleksiei, órfão de pai, criado pelos avós, no final do século
XIX, na cidade russa de Níjni-Novgórod. É a primeira vez que os três livros são
publicados dessa maneira no Brasil e com respeitosa tradução. Mas, este
texto não é uma resenha, e sim uma lista de indicações de textos do gênero praticados
por outros escritores do naipe do escritor russo. Sim, muitos estiveram
seduzidos pela arte da auto-representação. Ah, isso não é um ranking. E as sinopses, grande parte,
foram copiadas dos sites das editoras responsáveis pela edição das referidas
obras no Brasil.
1. Viver para contar, de Gabriel García
Márquez: neste livro, o colombiano, autor de obras
memoráveis, faz uma síntese e uma recriação de um tempo fundamental na sua
vida: os anos de infância e juventude – entre 1927 e 1950, finalizando com a
proposta de casamento a sua companheira; são os anos em que se funda o
imaginário de suas narrativas e romances. O livro centra especialmente na
família, escola, os primeiros anos como jornalista e escritor de contos curtos,
além dos episódios de Massacre das Bananeiras, que aparece em Cem anos de solidão, alguns dos nomes
que lhe serviram de modelo para Crônica
de uma morte anunciada e a história de seus pais que lhe serviu de inspiração
para O amor nos tempos do cólera. Publicado em 2002, o projeto era o de
ser três volumes conforme anunciou o escritor.
2. Debaixo de minha pele, de Doris Lessing:
poucas
autobiografias revelam sobre a atividade criativa de seu autor. Com o interesse
de explorar as várias possibilidades de representação do discurso
autobiográfico a escritora mostra nesse primeiro volume uma mulher determinada
e inflexível ante seus interesses, uma mulher na frente da quebra de tabus e contra
as amarras que sua formação e seu ambiente tentaram lhe impor; são os trinta
primeiros anos da escritora. Este volume foi sucedido três anos depois (o livro
é de 1994) por Andando na sombra. Neste, ela parte do desembarque em
Londres em 1949, com um filho de dois anos no colo e o manuscrito de seu
primeiro romance; voltamos ao determinismo dessa mulher que irá conhecer profundamente
uma grande cidade destruída pelos horrores da Segunda Guerra Mundial. Este é o período
crucial para a formação literária de Lessing e se estende até 1962.
3. Infância, de J. M. Coetzee: tal como
Górki, o sul-africano também escreveu uma trilogia que começa por esse título. Aqui,
um narrador seco e distante conta, sempre no presente, a dura experiência de
deslocamento de um garoto da África do Sul, numa sociedade fundada na violência,
entre negros surrados por motivos banais, professores sádicos e colegas de
escola truculentos. Completa esse painel significativo a presença de um pai
falastrão e perdulário, uma mãe excessivamente bondosa para esse mundo hostil e
um sujeito de identidade familiar opaca – os Coetzee são de origem africânder,
mas falam inglês em casa. O livro é um testemunho sobre a construção de uma
personalidade fechada, herdeira e vítima da brutalidade circundante. Depois,
veio Juventude, título que narra o
dilema de Coetzee entre o curso de matemática e sua grande aspiração de se
tornar um poeta. Tal como Lessing, esse jovem abandona a terra natal e vai para
Londres a fim de concretizar esse sonho; aí dividirá o tempo com o tedioso emprego
de programador de computadores, uma ou outra namorada que nunca está a altura
das grandes paixões que ele imagina e a perquirição por construir a persona do
poeta. E, por fim, Verão, compondo
assim uma trilogia que Coetzee chamou de “Cenas da vida na província”. Aqui, o
escritor esboça outras maneiras de estruturação do relato autobiográfico: por
exemplo, quem estrutura a narrativa é um pesquisador inglês, Vincent, que
interessado na vida de Coetzee, recorre a cadernos de nota do autor,
referências autobiográficas e entrevistas com gente que o conheceu. As
ações estão reduzidas aos anos 1970, período que precede o reconhecimento
literário do escritor então com trinta anos; é o tempo de plena vigência do apartheid e Coetzee está de retorno de
uma temporada nos Estados Unidos e busca compreender sua relação com esse
universo de turbulência e convulsão social.
4. Patrimônio, de Philip Roth: uma
das questões principais neste livro é, de que maneira um homem vigoroso, que
passou décadas acreditando no trabalho duro como o método ideal de justificar a
própria existência, pode lidar com a certeza aterradora de que vive “totalmente
isolado dentro de um corpo que se tornara um terrível cercado do qual não podia
escapar”? A partir dela, o escritor estadunidense investiga os altos e baixos
de sua relação como pai numa narrativa de estilo sentimental e tom sóbrio, portanto
um autor diferente do que o leitor encontra em romances como O complexo de Portnoy. O texto é um adendo para a compreensão da
escrita das obras que o sucedem, tais como O
teatro de Sabbath e a tetralogia composta de O homem comum, Indignação,
A humilhação e Nêmesis. Além deste título, Roth escreveu The facts: a novelist’s autobiography
(Os fatos: autobiografia de um romancista, em tradução livre). Nesta obra, o
escritor inicia com uma carta a Nathan Zuckerman, o protagonista-narrador de
nove dos seus romances. O livro que inicia com uma pilhéria, “para provar que existe
um fosso importante entre o escritor autobiográfico que as pessoas pensam que
eu sou e o escritor autobiográfico que sou” percorre alguns episódios da vida
de Roth: a infância urbana e protegida, nos anos trinta e quarenta, a
preparação para a vida estadunidense numa universidade conservadora dos anos
cinquenta, o envolvimento tumultuoso, quando era jovem e ambicioso, com a
pessoa mais colérica que conheceu em toda sua vida, “a mulher dos meus sonhos”;
o choque com um influente grupo de judeus indignados com o seu Goodbye Columbus; e a descoberta, nos
excessos dos anos sessenta, de um lado inexplorado de seu talento.
5. Memórias de uma moça bem comportada, de
Simone de Beauvoir: um dos nomes mais importantes para as reflexões sobre o
papel da mulher nasceu no início do século XX no interior de uma família de
classe média parisiense. Esse primeiro título de sua autobiografia revela uma
menina que se entrega à fé religiosa e se torna exemplo de filha e estudante
dedicada; em contraponto, assiste ao nascimento da jovem que as incongruências
da religião católica e os primeiros rumos de sua posição intelectual: a adoção
da filosofia existencialista e o envolvimento em discussões muito polêmicas na
sociedade de seu tempo, tais como a defesa ao aborto. Também neste livro, o
leitor encontra a afirmação de uma leitora voraz e consequentemente sua devoção
pela literatura, além das amizades adquiridas nos anos de formação acadêmica na
Sorbonne e que irão marcar sua trajetória: André Herbaud, quem lhe deu o
apelido de Castor, Stépha e Jean-Paul Sartre. O livro posterior, A força da idade é um retrato dos anos
mais fecundos de Simone (1929-1944), tal como relata a formação de seu campo de
atuação acadêmica, literária e política. A escritora revela as motivações e inspirações
que fizeram seus primeiros livros, como A
convidada (seu romance de estreia). Mas, não finda aí: Simone oferece um
panorama muito significativo acerca do cotidiano da intelectualidade francesa da
época; é o período em que ela e Jean-Paul Sartre começam a frequentar o Café
Flore e a Closerie des Lilas, palcos emblemáticos nas discussões filosóficas e
literárias, por onde passaram nomes como Albert Camus. A trilogia autobiográfica
finaliza com A força das coisas,
livro em que Simone aborda sua experiência como intelectual já reconhecida. Fala
uma autora de estilo mais sóbrio e de escrita madura; grande parte dessa obra está
dedicada a vinda dela e Sartre ao Brasil na década de 1960 guiados por Jorge
Amado. Também o título em que mais se dedica a perscrutar as dificuldades que
as exigências impostas pela maturidade com a escrita, definida como um trabalho
árduo.
6. Confesso que vivi, de Pablo Neruda: esta é uma obra póstuma, e
levou quase toda a vida do poeta para escrevê-la. No final ganhou breves retoques
da sua companheira e veio a lume em 1974. Trata-se de um percurso pela
trajetória vital do poeta: os fumadores de ópio na Tailândia, a Birmânia
dominada pelos ingleses, suas experiências com uma quantidade diversa de mulheres
em situações igualmente diversas, a amizade com Che Guevara, as viagens ao México
ou a União Soviética, a estadia no consulado da Espanha durante a Segunda
República Espanhola, o trabalho durante a Guerra civil para salvar da prisão e
da morte republicanos, anarquistas e todos aqueles que eram oprimidos pela
Ditadura de Franco, o exílio, a profunda relação com Salvador Allende... É este
um livro interrompido. Neruda não teve tempo de revisá-lo e deixou a obra
quando se instala o golpe de Estado que retirou do poder o amigo Allende.
7. Infância, de Maksim Górki: Saturada de afeto e violência, aqui está a vida do pequeno Aleksiei, órfão de pai criado pelos avós. O livro é lido pela crítica como uma impressionante reconstituição da sensibilidade de uma criança e a descoberta precoce das palavras e do temperamento descomedido dos russos. Depois, segue-se mais outros dois títulos, Ganhando meu pão e Minhas universidades. No primeiro Górki narra seus anos de formação, os primeiros trabalhos, leituras e experiências sexuais, a vida em meio à brutalidade e à penúria de uma Rússia ainda patriarcal; no segundo, a transformação do padeiro Aleksiei Maksímovitch Piechkóv no escritor Maksim Górki na Rússia pré-revolução. A narrativa serpenteia entre o que se estende do coração do tsar até as tavernas, porões, prostíbulos e portas de fábrica, os lugares diversos onde se formou um dos mais importantes nomes da literatura russa. Dos três livros, possivelmente, para aqueles que se interessam pelo tema “formação do escritor”, este último deve ser o melhor da trilogia. Aqui, o leitor acompanha a transformação do homem comum em intelectual e escritor preocupado com as questões sociais de seu país. É quando chega à cidade de Kazan com o objetivo de estudar, que descobre que a universidade não era um lugar adequado para alguém de sua origem social; e para se tornar um escritor haveria de viver, ser um homem de experiências.
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