Uma entrevista raríssima com Cora Coralina
Conta um pouco da tua história...
Quando cheguei na idade de casamento, de aspiração de um casamento, tive muito medo de ficar moça velha sem casar. Era o que havia nessa cidade, e eu me apeguei com Santo Antonio e Santo Antonio me mandou um paulista aqui, 22 anos mais velho do que, e eu me casei com ele. Casei-me em 1910, em 1911 ele quis voltar para São Paulo, eu fui com ele. E no Estado de São Paulo, eu vivi 45 anos da minha vida, encaixados, sem voltar a Goiás. E depois de 45 anos, de ter criado filhos e batizado netos, quis voltar para minha terra para viver a minha vida, e a minha vida é muito boa.
Eu era uma jovem bobinha, criada entre 8 mulheres e quando me achei em São Paulo, sozinha ao lado dele, ele passou a ser para mim pai, irmão, tio e marido, porque afinal era 22 anos mais velho do que eu e eu uma bobinha, criada entre mulheres, e ele era homem lido e corrido.
Casei-me. Sonhei uma coisa e saiu a realidade muito diferente.
O que você sonhou e o que foi na realidade?
Sonhei um príncipe encantado, sonhei um homem todo delicadeza, todo mimos comigo, eu adorada, querida, respeitada, conceituada e mãe de família. E saiu um homem ciumento, hoje eu avalio, o ciúmes dele era uma tara. Ele tinha ciúmes de dia e de noite, acordado e dormindo. Era um ciúme mau, um ciúme venenoso, um ciúme de visões de coisas que não tinham se passado. Mas eu era uma criatura feliz com a minha gravidez, feliz em ver meus filhos pequeninos na cama ou num berço ao meu lado, feliz em dar banhos em criança, lavar fraldas de criança, ver criança sorrir, ver bater as mãozinhas e as perninhas, tudo isso me compensava da parte que meu marido me negava.
Meu marido quando morreu me deixou numa grande dificuldade. Porque me deixou pobre e com os filhos para criar e casar. Quatro filhos, homens e mulheres. E depois, devagar, devagar fui solucionando os meus problemas. Se você me perguntar como foi que eu resolvi meus problemas eu não sei dizer. Só posso dizer a você que Deus teve dó de mim e me ajudou. Olha a minha casa, paz e pobreza, a paz da pobreza sem escândalo. E depois, passaram-se os anos, eu em 56 resolvi os problemas que me ligavam a São Paulo e voltei para minha terra para viver a minha vida. Compensadas todas as negativas do passado, compensadas todas as contradições do passado, não tenho queixas.
Diz que na sua juventude era considerada feminista, que vários homens se apaixonaram mas não tinha coragem de chegar...
Não é nada disso. Era alguma coisa disso. Minha mãe obstava o meu casamento. Só ajudava casamento a casa onde tinha pai e mãe. Onde tinha mãe só não ajudava não. Não ajudava porque não tinha condições para fazer esse casamento, dar o mínimo de enxoval, atender a um mínimo das conveniências de um casamento. Essa que foi a verdade e como eu era meio atirada mesmo, eu defendia pontos de vista que não eram aceitos no tempo, me chamavam - a família, a sociedade não - a família me marcava como "détraquée". Eu era uma détraquée.
E o que queria dizer "detráquée"?
Doida, amalucada, não doida de jogar pedra, mas doida quer dizer fora do rebanho, fora da média, fora do estatuto que se considerava equilibrado para todas. Eu era diferente. Eu queria ter a minha personalidade. As outras todas aceitavam. Eram os carneiros. E eu não era carneiro para andar aí pastorado. Eu tinha opinião própria. Eu queria ter uma vida própria. Eu queria me casar, mas queria casar e ter filhos. Nesse ponto, nunca fui contra o casamento, nem contra filhos, porque eu tinha muita maternidade e gostava de ter muitos filhos, porque cada filho me renovava o prazer da vida.
O que representou o casamento? Foi a busca da liberdade?
O casamento representava a fuga e ao mesmo tempo correspondia a uma aspiração, aspiração do marido, aspiração dos filhos e aspiração da família. Porque uma moça pobre casada valia muito mais que uma moça pobre solteira. A mulher casada tem um valor que a solteira não tem. Ontem, hoje e amanhã acredito que amanhã. O homem empresta um valor à mulher, o homem realça o valor da mulher, o homem valoriza a mulher.
Se nada está certo, é o que existe. E não adiante dizer "não está certo". Eu aceito. Eu procurei no casamento não adianta dizer "Não está certo". Porque eu fui criada ao lado de oito mulheres. Minha mãe teve quatro filhos, nenhum filho, nunca tive um irmão e eu via as moças casadas que era muito valorizadas, muito mais que as solteiras. A solteira é uma busca, a moça solteira está numa busca incessante, e essa busca é o homem, através naturalmente, de uma forma legal, da forma do casamento. Naquele tempo, quando o moço aparecia para fazer o noivado, havia um sofá na sala com três lugares, de palhinha, no meio sentava o rapaz, de um lado sentava a irmã mais velha, de outro lado a mãe ou a tia, uma pessoa mais idosa da casa, e a noiva ficava nos quartos de dentro, espiando o noivo pelo buraco da fechadura, risonha, alegre e até feliz, palpitante. E quem fazia a sala, como se fazia, era uma tia velha e uma mana mais antiga, mais velha.
Foi assim o seu noivado?
Foi, mas no dia seguinte ao casamento, eu tinha me vingado de todas elas.
Fale um pouco do seu trabalho...
Meu trabalho, minha menina, o trabalho principal de minha vida, eu fui dona de sítio, eu criei porcos, eu tive vacas de leite, eu tive lavouras, eu tive paiol de milho, eu tive tuia cheia de arroz. Eu colhi e vendi algodão, colhi e vendi feijão, engordei porcos e vendi porcos e ninguém teve porcos mais bonitos e mais bem tratados que os meus. Isso no tempo que eu vivi em São Paulo e depois de viúva. Os filhos já tinham todos se casado, tive sítio, tive chácara, sempre fui independente, nunca fui dependente de filho. Tanto, que hoje meus filhos moram todos em São Paulo e eu aqui. Nem eu tenho vontade de ir para perto deles, nem tenho vontade que eles venham para perto de mim. Porque acho bom assim. Não quero mais limitação na minha vida. Fui limitada na primeira infância, fui limitada de menina, fui limitada de adolescente e não quero ser limitada depois de velha.
Você se sente livre hoje?
Oooooooh... Absolutamente livre. Não me sinto livre, me sinto liberta. Não há nada que valha para mim a minha libertação. Libertação de sentimentalismo, de necessidade de viver perto de filho, libertação de medos de viver sozinha, libertação de qualquer coisa, libertação de medo de cair, libertação de assalto com a minha porta aberta, libertação da minha casa que eu durmo com a minha janela aberta para o lado do rio, não há nada que valha para mim a minha libertação do medo. O medo é a escravidão maior da criatura, e hoje eu não tenho medo e tenho noventa e quatro anos de idade, nasci em 1889, tem vinte e sete anos que eu voltei para Goiás e deixei filhos e netos, noras e genro, e todo mundo me quer bem e me respeita, não tenho queixas de nenhum deles.
E quando você começou a fazer poemas?
Aos catorze anos de idade. Mas com a idade de catorze anos eu só tinha feito na vida um curso primário e muito incompleto. Eu na vida só tive uma professora - mestra, como se dizia no passado. Nunca tive duas, minha professora foi uma só e sozinha na sua sala de aula. E era era cinquenta anos mais velha do que eu, e já tinha ensinado à geração de minha mãe. Abriu uma escolinha primária, ela era aposentada e a aposentadoria muito pequena, muito insuficiente para a vida modesta dela, e ela abriu uma escolinha primária e suas ex-alunas matriculavam lá os filhos, como minha mãe, outras mães que foram alunas dela. E o nome dela, quando eu falo, representa hoje para mim uma pauta musical - Silvinha Ermelinda Xavier de Brito.
Ela foi a única recordação feliz e grata da minha vida. Eu era uma criatura obtusa, na minha escola não havia carteiras, havia bancos, bancos das adiantadas, banco das médias e banco dos refugos, e eu durante anos pertenci ao banco das mais atrasadas. Não aprendia, era obtusa, fechada, eu queria aprender e não conseguia, não conseguia, as meninas açoavam de mim, eu mastigava a beirada do livro, a capa era dura, não era mole como é agora, babava tudo aquilo, babava o babado do destino, mastigando e babando, tinha todas as características duma criança tarada, marcada, idiota, minha mãe não acreditava que eu aprendesse a ler. E a casa dizia, isso porque ela é filha de velho doente. Porque meu pai quando casou-se com a minha mãe já era idoso e coincidiu que a gravidez dela, da minha pessoa, coincidisse com a doença de meu pai. E com isso justificavam tudo o que eu sentia e ninguém me dava um remédio. Até um dia que eu fui com as minhas queixas para a minha bisavó, e ela disse: Ah, minha filha, toma chá de fedegoso, se você tomar chá de fedegoso você fica corada, bonita - eu era amarela, empalamada, minhas irmãs me chamavam "essa empalamada", tinha boqueira, e falavam, "isso é filha de velho doente", tinha dor na perna, "que é que está chorando menina?", "estou com dor na perna", "ah isso é porque é filha de velho doente", tudo que me ocorria era porque eu era filha de velho doente.
Tinha muito medo nessa época?
De ficar moça velha sem casar. Esse era o meu medo. Sempre. Falavam que eu era feia, eu chorava, falavam que eu não casava, eu chorava. Eu não sabia bem o que era, mas chateava porque era uma marca em cima de mim. E chorava. Eu era uma criatura mal amada e mal alimentada. Devo à minha mestra ter me aberto a capacidade de compreensão, devo à didática dela, à paciência, até mesmo à caridade dela para comigo. E hoje, transformei todas as ocorrências em lições de vida, e delas me sirvo, a vida me ensinou.
E o que você acha das mulheres hoje?
Acho que elas estão procurando o que elas nem sabem o que é. E que elas ainda não encontraram aquilo que devem procurar realizar e encontrar: um partido, um grande partido político feminino. Enquanto elas não se juntarem, não se organizarem num partido político feminino, isso de nomeação para repartição não a elas prestígio, não.
E como seria um partido feminino?
Um partido, não tem um partido masculino? Um partido feminino que possa arregimentar a grande maioria das mulheres que se interessam por isso que se chama libertação. Fora disso, minha filha, tudo é perder tempo, mas perder tempo é também ganhar tempo, elas estão se exercitando e eu dou para elas dezessete anos para a formação deste partido.
Elas têm que se valorizarem politicamente como mulheres, têm que eleger e serem eleitas, para defenderem seus propósitos. Não querem uma libertação? Elas só terão essa libertação com um partido político feminino que tivesse peso de decisão.
Então é isso, enquanto isso eu vou escrevendo os meus livros, publicando, vendendo os meus livros, o que para mim é importante. A política é importante não para mim, mas para a mulher como um todo. Importante para vocês que são moças, são jovens, podem atuar num partido político. Mas a mulher tem que se preparar também culturalmente para isso. Porque o Lula perdeu a eleição? Porque ele quis antecipar o tempo. Eu mandei um recado para ele, que eu fazia votos que ele perdesse a eleição. Que eu tinha muita vontade de conversa com ele, mas não sendo possível, que a escritora de Goiás, Cora Coralina faz votos para que ele perca das eleições porque ele não está preparado para ser um chefe de governo. Ele tem cultura? Não tem. Ele procurou ter cultura? Talvez esteja procurando agora porque compreendeu a grande falta. Talvez. Da mesma forma as mulheres também precisam, pelo menos este grupo que vai liderar. A mulher tem que criar a sua liderança, ter o seu grupo político em todos os Estados do Brasil. Em cada Estado ter uma líder política, arregimentando grupos, e ainda vai sobrar muita mulher para votar nos homens.
Acho interessante, só não sei se a forma é um partido, se não deveria ser uma organização independente de um novo tipo.
Interessante, e eu dou dezessete anos para isso, tempo para se adquirir experiência. Mas se não se formar um partido, o que se forma? Uma associação para que? Qual o valor de uma associação perante o valor de um partido? Um partido enfrenta um partido de homens, um partido de mulheres enfrenta, tem voz, fala e é ouvido. Um grupo, uma associação de mulheres vale? Uma é levada a votar no marido, outra para votar no filho, outra para votar no irmão, no cunhado, no compadre e fica tudo disperso. Só um partido político é que aglutina, aglutina até os homens, quanto mais as mulheres. Política é uma coisa muito forte, minha filha, agora as mulheres não estão acostumadas a fazer política, estão acostumadas a viver atreladas à política do marido. Elas fazem a política do marido, e não a política delas.
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Minha infância (freudiana)Entre elas ocupei sempre o pior lugar.
Duas me precederam - eram lindas, mimadas.
Devia ser a última, no entanto,
veio outra que ficou sendo a caçula.
Quando nasci, meu velho Pai agonizava,
logo após morria.
Cresci filha sem pai,
secundária na turma das irmãs.
Eu era triste, nervosa e feia.
Amarela, de rosto empalamado.
De pernas moles, caindo à toda.
Os que assim me viam - diziam:
"- Essa menina é o retrato vivo
do velho pai doente".
Tinha medo das estórias
que ouvia, então contar:
assombração, lobisomem, mula-sem-cabeça.
Almas penadas do outro mundo e do capeta.
Tinha as pernas moles
e os joelhos machucados,
feridos, esfolados.
De tanto que caía.
Caía à toa.
Caía nos degraus.
Chorava, importunava.
De dentro a casa comandava:
"- Levanta, moleirona".
Minhas pernas moles desajudavam.
Gritava, gemia
De dentro a casa respondia:
"- Levanta, pandorga".
Caía à toa...
nos degraus da escada,
no lajeado do terreiro.
Chorava. Chamava. Reclamava.
De dentro a casa se impacientava:
"-Levanta, perna-mole..."
E a moleirona, pandorga, perna-mole
se levantava com seu próprio esforço.
Meus brinquedos...
Coquilhos de palmeira.
Bonecas de pano.
Caquinhos de louça.
Cavalinhos de forquilha.
Viagens infindáveis...
Meu mundo imaginário
mesclado à realidade.
E a casa cortava: "menina inzoneira!"
Companhia indesejável - sempre pronta
a sair com minhas irmãs,
era de ver as arrelias
e as tramas que faziam
para saírem juntas
e me deixarem sozinha,
sempre em casa.
A rua... a rua!
(Atração lúdica, anseio vivo da criança,
mundo sugestivo de maravilhosas descobertas)
- proibida às meninas do meu tempo.
Rígidos preconceitos familiares,
normas abusivas de educação
- emparedavam.
A rua. A ponte. Gente que passava,
o rio mesmo, correndo debaixo da janela,
eu via por um vidro quebrado, da vidraça
empanada.
Na quietude sepulcral da casa,
era proibida, incomodava, a fala alta,
a risada franca, o grito espontâneo,
a turbulência ativa das crianças.
Contenção... motivação... Comportamento estreito,
limitando, estreitando exuberâncias,
pisando sensibilidades.
A gesta dentro de mim...
Um mundo heroico, sublimado,
superposto, insuspeitado,
misturado à realidade.
E a casa alheada, sem pressentir a gestação,
acriminosa repisava:
"- Menina inzoneira!"
O sinapismo do ablativo
queimava.
Intimidade, diminuída. Incompreendida.
Atitudes impostas, falsas, contrafeitas.
Repreeensãoes ferinas, humilhantes.
E o medo de falar...
E a certeza de estar sempre errando...
Aprender a ficar calada.
Menina abobada, ouvindo sem responder.
Daí, no fim da minha vida,
esta cinza que me cobre...
Este desejo obscuro, amargo, anárquico
de me esconder,
mudar o ser, não ser,
sumir, desaprecer,
e reaparecer
numa anônima criatura
sem compromissos de classe, de família.
Eu era triste, nervosa e feia.
Chorona.
Amarela de rosto empalamado,
de pernas moles, caindo à toda
Um velho tio que assim me via
- dizia:
"- Esta filha de minha sobrinha é idiota
Melhor fora não ter nascido!"
Melhor fora não ter nascido...
Feia, medrosa e triste.
Criada à moda antiga,
- ralhos e castigos.
Espezinhada, domada.
Que trabalho imenso dei à casa
para me torcer, retorcer,
medir e desmedir.
E me fazer tão outra,
diferente,
do que eu deveria ser.
Triste, nervosa e feia.
Amarela de rosto empapuçado.
De pernas moles, caindo à toa.
Retrato vivo de um velho doente.
Indesejável entre as irmãs.
Sem carinho de Mãe.
Sem proteção de Pai...
- melhor fora não ter nascido.
* Revista Mulherio, maio / junho de 1984.
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