Três poemas que revelam as veias de Saramago poeta






Agora em 2008, passam-se dois anos de quando comecei a ler e a estudar a obra de José Saramago. Nesse tempo, passei por bons encontros e descobertas, encontrei-me mesmo com facetas desconhecidas da maioria, que ele, além do romancista, o cronista e contista também escreveu poesia. Sim, existe um Saramago. Um livro que se apresentou recentemente por aqui como do mesmo gênero foi O ano de 1993 (Companhia das Letras, 2007), mas neste livro, o escritor flerta com uma escrita vanguardista e pratica um texto situado entre a poesia e a prosa: a poesia pelo uso do versículo na organização do texto e a prosa pela presença da narração. 

Mas, Saramago também compôs poemas tal como conhecemos. Foi no início da sua carreira como escritor, dos períodos mais ricos, quando ele transita na busca de uma consolidação do seu lugar e do tipo de literatura que praticará. O escritor português é um exímio romancista. Não é dos melhores poetas, mas o que escreveu não não deixa dúvidas que levou muito a sério seu trânsito por essa seara.

Copio três poemas de dois livros dele que ainda não estão publicados no Brasil: os dois primeiros textos estão na obra Os poemas possíveis (1966), e último, na obra Provavelmente alegria (1970). Esses recortes, os consegui do rico Jornal de Poesia.


Retrato do poeta quando jovem

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.


Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há 
noites, manhãs e madrugadas em que não 
precisamos de morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente 
e entra em nós uma grande serenidade, 
e dizem-se as palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la 
nas mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o 
contorno, a vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz 
e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a 
alma até aos ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem 
milagres como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596