Troca de pele, de Carlos Fuentes

Por Maria Antonieta Gomez



Um dos aspectos mais significativos em Troca de pele, de Carlos Fuentes é a peculiaridade em seu acesso à “cultura do signo”, própria do gênero romanesco.

É Julia Kristeva quem afirma em termos gerais que o romance denuncia a passagem do símbolo (característica da epopeia) ao signo. Nesta afirmativa, ela distingue, tanto no símbolo como no signo, duas dimensões básicas: uma vertical e outra horizontal. Por um lado, o símbolo em sua dimensão vertical possui uma função de “restrição” enquanto mostra-se como o monovalente e unívoco. E, em sua dimensão horizontal (a articulação das unidades significantes entre si), o símbolo é disjuntivo; isto é, em sua lógica se excluem mutuamente duas unidades opositivas. No campo do símbolo, na epopeia, o mal e o bem, por exemplo, são incompatíveis.

Caso contrário no ideograma do signo; em sua dimensão vertical não opera, como no caso do símbolo, uma função de restrição que acumula no unívoco ou em referência a uma realidade única e singular (os universais), mas que existe uma função polivalente que evoca um conjunto de imagens e de ideias associadas, permanecendo expressivo. E, em sua dimensão horizontal, se no símbolo existe uma função disjuntiva (oposto incompatíveis), no signo existe ao contrário uma função não-disjuntiva cuja lógica opera, neste caso, através de tese-antítese e síntese. De maneira que não existe separação ou exclusão de elementos contrários, testemunhando assim o gênero do romance como “o esforço do pensamento ocidental por aceder à dialética”.

E que, no caso de um romance como Troca de pele, de Carlos Fuentes, testemunha este mesmo esforço no âmbito Latino-americano. Agora, a função não-disjuntiva e não-restritiva própria do ideograma do signo, afeta logo, ou possibilita a peculiaridade de todos os níveis e dimensões do romance: a estrutura, o tempo, o espaço, o narrador (sujeito da enunciação, sujeito do enunciado), as personagens, a temática, a dimensão da ironia, a polifonia e a intertextualidade do romance. Para o caso da obra de Fuentes, ficaremos aqui numa primeira aproximação só em dois aspectos: a estrutura e as personagens.

Sobre a estrutura, este romance de Fuentes manifesta seu valor expressivo numa técnica alternada cuja funcionalidade reside em superpor planos de realidade diferentes, que buscam e exigem a percepção de uma visão simultânea. Existe assim uma deliberada desintegração de uma única realidade possível, em troca de uma abertura de múltiplas realidades igualmente válidas.

Um exemplo reside na possibilidade não de um só desenlace da obra, mas de múltiplos. Assim, no primeiro desenlace desta narrativa, Franz e Elizabeth morrem esmagados pelo desmoronamento que se produz nas galerias de Cholula. Javier e Isabel voltam ao hotel e este a enforca. Segundo desenlace: Jakob (vítima do sistema nazista) mata Franz, quem ajudou a promover tal regime. Terceiro: Javier mata Franz junto ao assoalho. Quarto desenlace: Jakob mata Franz (já por outros motivos do anterior) quando se encontra na noite final do restaurante de frutos do mar de Cholula.

Como conclusão, pode-se dizer que a morte de Franz adquire em cada um dos desenlaces um valor diferente, tal lembram as críticas de Liliana Befumo e Elisa Calabrese: “1. Religioso: em seu aspecto de judeu perseguido. 2. Racial como nazista perseguidor. 3. Enquanto personagem, ao morrer como realidade não sonhada pelo narrador e, 4. Ritual porque na noite final se repete o rito em meio à Festa”.

Quatro desfechos ou realidades justapostas que promovem um nível sincrônico, atemporal, onde a função não-restritiva e a função não-disjuntiva próprias do signo – tal como explicamos anteriormente – dão provas dessa busca pela polivalência, pela relatividade, pela síntese e pelo acesso à significações e sentidos mais totalizantes.

Este é apenas um exemplo estrutural dos muitos que dão forma ao romance de Fuentes. Romance que requer do leitor assimilar múltiplos pontos de vista em rápida sucessão; desta maneira, que a visão de mundo é manipula pelas simultaneidades que mudam ou promovem uma nova percepção humana, uma nova fundamentação epistemológica no acesso ao conhecimento da realidade. Nova fundamentação epistemológica, fomentada e expressada pelo gênero do romance, no quanto acede à cultura do signo, precisamente porque neste caso concreto de Troca de pele, a justaposição de elementos à primeira vista díspares, busca uma visão multidimensional necessária para a compreensão de problemas polifacetados e complexos, cujo acesso o romance em sua função não-disjuntiva, dialética, há de reconfigurar a percepção e a sensibilidade humanas. E esta é precisamente uma das funções e expressões relevantes da cultura do signo, da cultura da Idade Moderna, assinalada pelo aparecimento do gênero romanesco.

Troca de pele testemunha assim uma nova modalidade gnosiológica de apreensão da realidade, onde o antinômico, o disjuntivo, o absoluto e o unidimensional é substituído pelo dialético, o conjuntivo, o relativo e o multidimensional: o romance.

Sobre o nível da ação, a função não-disjuntiva e não-restritiva própria da cultura do signo, se manifesta neste romance de Fuentes, por preocupações básicas: a problemática do duplo, do andrógino e da máscara. De fato, praticamente cada personagem desta obra possui um duplo, está formado por duas entidades. Assim, Javier em múltiplas instancias, é o duplo de Franz, e Franz por sua vez de Jakob e de Ulrich. Assim, por exemplo, se explicita na obra: Ulrich-Franz: “... Ele ou eu: era igual. Havíamos pensado a mesma coisa, dito a mesma coisa [...] Tu e ele eram diferentes. Tu, Franz. Ele, Ulrich. O mesmo”.

E, no caso do duplo Isabel-Ligeia (ou Elizabeth), se diz: “Isabel é Ligeia... Isabel não será Ligeia... Isabel será um amor fugaz, nunca se converterá em Ligeia”. Exemplo claro de função não-disjuntiva, de síntese ambivalente de contrários. Assim, como quando se diz de Isabel: “... essa dualidade de teu rosto, metade anjo, metade demônio”.

Trata-se, assim, de promover uma concepção dialética na apreensão da realidade humana, cuja complexidade exige uma abertura da consciência para abrir-se até fundamentos mais irredutíveis e mais totalizantes do homem. Esta abertura à humanidade e mundaneidade do homem, logicamente nos leva até à problemática da mesmidade e da alteridade: o duplo, o mesmo, eu e os outros. Como apreender sua realidade sob categorias mais dinâmicas e complexas que possam captar seu sentido pletórico e sua riqueza, é o que gênero do romance nos exige, mediante um novo contexto e estrutura mental, regidos por uma nova lógica nunca concebida antes em seu rigor e no sentido profundo de sua dimensão inovadora. Encontrar o multidimensional e o contraditório, criando síntese ambivalentes na apreensão de uma mesma situação individual, é o centro mesmo da essência da cultura do signo.

Aparece assim, nesta obra de Fuentes, a figura do anão, Herr Us Von Schnepelbrucke, o artista dos grandes dualismos e das grandes sínteses. Realiza duas vezes a mesma situação e cria oposições: “As cenas mais tradicionais – uma embarcação entrando no porto, um almoço à beira do rio, os telhados de Munique, buquês de flores em vasos chineses, naturezas mortas, trigais sob o sol [...] – jaziam amontoados ao lado de telas horrivelmente deformadas, pintas em tons sombrios, nas quais a abundância de pinceladas furiosas apenas permitia distinguir, ocultas, as formas de bocas abertas e olhos presos de pavor, mãos de longas unhas, matérias fecais, cópulas indecentes com animais [...] homens pequenos levantados no ar por garras de aves enlouquecidas...”

Trata de integrar os caracteres negativos e positivos, o convencional e o obscuro, o proibido e irracional. Nos transporta ao Caos primordial. É o artista que altera ou amplia a apreensão da experiência e que abre novos horizontes ao entendimento humano. Um artista que, além disso, altera ou refaz figuras femininas de modo que todas tenham um detalhe masculino e as figuras masculinas, todas tenham algum detalhe feminino.

Isto é, trata-se do artista que, como tal, nos enfrenta com o andrógino, com seres híbridos. E, talvez o andrógino  não é seja uma categoria geral da arte ou talvez precisamente o romance por sua função não-disjuntiva que cria síntese ambivalente de contrários, o gênero que nos enfrenta por excelência com esta dimensão? De fato, este romance de Fuentes em que cada personagem possui seu duplo, configura em sua ambiguidade uma estrutura actancial andrógina. Inaugura uma androginia cujo valor expressivo permitiu nesta instância uma união de contrários que propõem um sentido de totalidade.

Aparecem, desta maneira, na obra, personagens típicas dos anos 1960, os Beatles a quem se refere afirmando-se que “eles não são nem homens nem mulheres, nem bons nem maus, nem corpo nem espírito, nem matéria nem substância, nem essência nem acidente: há só a dança e o ritual, a fusão e máscara crescendo continuamente ao redor de tudo”.

E, a nível de mitos tradicionais, já não propriamente históricos, a mesma mitologia asteca com sua simbologia pré-hispânica, possuía já um sentido de totalidade, mas que então não era propriamente busca, mas encontro perpétuo e evidente. Referimo-nos aqui a dois símbolos ou imagens aludidas nesta obra: Quetzalcóaltl e a Serpente Emplumada.

Seres sagrados presentes e onipresentes nos monumentos e pirâmides astecas, especialmente na pirâmide de Cholula, centro em torno do qual convergem todos os planos da realidade em Troca de pele. Quetzacóaltl representa justamente, entre suas múltiplas significações, a união dos contrários; seu valor é o de deus do vento, porque é ele quem aproxima e reconcilia os opostos. Em seu caso, a possibilidade de criar vida da própria morte. E, sobre a Serpente Emplumada, símbolo também de totalidade, ali concretamente, pela união de atributos do céu, terra e aguas abissais, do que voa e do que rasteja, expressado na união de contrários lograda num só ser mítico que é simultaneamente serpente e ave solar.

Parece que o pensamento mítico, neste caso asteca, já conhecia um sentido dialético, onde a dimensão teológica permitia o sentimento de totalidade. Nostalgia sempre presente na prosa romanesca de Carlos Fuentes.

E é precisamente ante estes símbolos, imagens, personagens duplas, estrutura actancial andrógina e híbrida, que proliferam ao longo de obra de Fuentes, e que expressam claramente o ideologema do signo, como se vai constituindo aí a problemática do romance, que manifesta justamente uma preocupação muito marcada pelo sentido da Totalidade.

A máscara. A personagem Isabel, diz, por exemplo: “tenho duas caras. Dois rostos. E Javier diz a Elizabeth: “não querias que amasse tua máscara amável, mas o outro, o que fosse, o que tu mesma desconhecias, outra máscara também. E se tu máscara também se transformava, teus dois gestos se refletiriam em seus dois gestos e esse amor seria mais rico”, mais profundo.

Porque, “um homem só é completo quando aceita e expõe e explode seu rosto noturno”. Enfrentamo-nos ante a problemática da identidade individual, mas também ante a problemática da identidade coletiva; neste caso, mexicana, Latino-americana: “Bom, é que primeiro já estão interpretando um papel desde que nasceram e não podem interpretar outro porque seria uma redundância. [...] E logo, o idioma é emprestado, é ressentido. É o idioma do conquistador, e os vencidos o convertem em circunlóquio, defesa, agressão, mas nunca em palavras reais, humanas”.

A Máscara individual e coletiva. A máscara leva implícita, de fato, uma pergunta pelo ser. O perguntar pelo ser (como crença, ser último e irredutível), supõe que o ser esteja escondido; a cara que apresenta a realidade é, por isso, falsa; é a cara da aparência. O ser por qual se pergunta não está presente, mas ausente e este necessário descobri-lo. O ser está encoberto, sua totalidade não é evidente nem imediatamente cognoscível.     

A Máscara, a Totalidade. Uma das constantes do romance de Fuentes. E, efetivamente, a eleição do gênero literário para apresentar sua busca, o romance é a forma por excelência que dá possibilidade, que expressa e aflige a problemática da Totalidade. Porque, não é talvez a cultura do signo a que manifesta no último termo essa nostalgia pela Totalidade?

“O romance”, afirma Lukács, “é a aventura de uma época para a qual não está já sensivelmente dada a totalidade extensiva da vida; uma época para a qual a imanência do sentido à vida se tornou problemática; mas que, sem dúvidas, preserva o espírito que busca a Totalidade, o templo de totalidade”. O romance é assim uma nostalgia, uma busca da totalidade perdida. Qual? A da relação harmônica eu-mundo e, a das relações constitutivas essência e existência no homem.

Porque se na epopeia, essência, plenitude de sentido e vida formam um todo harmônico, se o mundo e eu se separam claramente “mas apesar disso não chegam a ser dispares” é, porque, como afirma Lukács, a alma se encontra em meio do mundo como qualquer outro membro dessa rítmica; se tudo é para ela novo e, “sem dúvida, familiar; aventura e possessão; o mundo é amplo e, logo, como a casa própria”, no romance essência e existência, eu e mundo deixam de ser um todo harmônico; o mundo é amplo e alheio, é aventura e estranhamento.

O romance ser verá tomado então pela busca, um desgarrador intento por descobrir e construir a totalidade da vida. E, este romance de Carlos Fuentes, Troca de pele, testemunha tal busca; seu acesso pleno à cultura do signo está em todos os níveis da narrativa como preocupação e constitui uma constante, uma obsessão, que vai configurando a estrutura significativa e a visão de mundo deste autor.

Aqui nos aproximamos apenas do nível estrutural e actancial da obra. Poderíamos explorar ainda outras dimensão da narrativa. Deixamos assim a inquietação em torno de uma obra como Troca de pele: a inquietação sobre o ser do romance.

* Esta é versão livre de "La cultura del signo en Cambio de piel de Carlos Fuentes", publicada na Revista Universitas Humanística.

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