Dois livros de Kertész de uma trilogia sobre o Holocausto
Por Rafael Narbona
A chaminé de
Auschwitz se converteu no símbolo mais radical e o fio de nossa memória não cessa
de regressar a essa imagem buscando uma causa capaz de explicar a transformação
de seres humanos em colunas de fumaça. Ernst Nolte afirma que não havia nenhuma
crueldade neste procedimento. Simplesmente, se tratava de eliminar os responsáveis
por um rumo histórico indesejável.
Imre Kertész
era só um adolescente que vivia em Budapeste, quando Eichmann realizou o
milagre burocrático de enviar em alguns meses algo perto de 325 mil judeus húngaros
aos campos de concentração alemães. Kertész era judeu, mas não descobriu o que
isso significava até que sofreu a experiência da deportação.
Sua estadia
em Auschwitz foi muito breve (apenas três dias); o resto de seu cativeiro se
passou entre Buchenwald e Zeitz. Esse translado significou a passagem de um
Vernichtungslager (campo de extermínio) a um Arbeitslager (campo de trabalho).
Kertész podia ter relatado sua experiência em forma de autobiografia, imitando
os procedimentos de Primo Levi, Steinberg, Améry ou Klöger, mas preferiu criar
uma personagem fictícia para recriar sua peripécia.
As semelhanças
entre Kertész e György Köves, que é o protagonista de Sem destino (uma obra que quando publicada em 1975 passou despercebida)
são muito claras, mas a fim de preservar a distância e a ironia do relato,
construiu uma personagem “que não se parecesse com ele”. Sua intenção é
preservar a memória do que aconteceu, sem cair em sentimentalismos que falsifiquem
sua experiência. Além disso, Kertész percebe a escrita como esse trabalho que
adia a possibilidade do suicídio em que findaram Celan, Browski ou Levi.
A novidade
de Sem destino é a perspectiva, a
maneira como se relata a tragédia dos judeus húngaros. György Köves é um
adolescente que está descobrindo o amor através dos beijos clandestinos com uma
vizinha quando compreende o que significa ser judeu: não é uma diferença
natural, mas uma distinção imposta pelos outros.
Embora no
começo viva sua deportação como algo insólito e festivo, não tardará em
descobrir o sentido profundo do campo de concentração: destituir qualquer forma
de intimidade, confundir a humilhação com a justiça, apagar a identidade
individual mediante a deterioração física, transformar o tempo num contínuo homogêneo,
onde carece de sentido realizar projeções. A maquinaria do campo cumpre sua função
e György se converte num “muçulmano”, que é o nome que se utilizava no campo
para referir-se aos que já não mostram nenhum interesse em sobreviver.
Kadish por uma criança não nascida
(1990) mescla relato e reflexão. Por um lado, o protagonista relata a ruína de
seu casamento e sua decisão de não ter filhos. Por outro lado, a obra aprofunda
os ensaios reunidos em Um instante de
silêncio no muro (tradução livre, 1998) onde se fundem memória e compreensão
para explicar a existência de Auschwitz. Tal como Benjamin, Kertész opina que é
preciso recuperar o passado em suas formas de fracasso ou derrota para abrir um
espaço na utopia. O esquecimento só consolida a interpretação da história dos
vencedores. O Holocausto (um termo que horrorizava Levi e Kertész, pois Shoah,
em hebreu significa “oferenda a Deus”) não é um surto exacerbado de
antissemitismo mas uma matança que revela a verdadeira natureza do poder.
Kertész
coincide com Arendt em que o antissemitismo não é a causa do genocídio. A chave
há que buscá-la na natureza de nossa cultura. Auschwitz não é uma anomalia
histórica, algo irracional ou irrepetível, mas a essência de uma cultura baseada
num poder político que se exerce sobre o corpo e a alma. Foucault chamou este
procedimento de “biopolítica” e sublinhou sua conexão com a educação, o manicômio
e a prisão. Kertész percebe essa mesma continuidade.
Quando fala
do internato que passou seus primeiros anos escreve: “Auschwitz me pareceu uma
exacerbação das mesmas virtudes para as quais me educaram desde a infância”. O mais
trágico é que a autoridade do pai não está muito distante dessa perversão. Daí que
Kertész renuncie a paternidade como “a possibilidade de outra existência”. Trata-se
de não perpetuar uma “ordem mundial” que se apoia num “medo bem organizado”. Esta
resolução implica a exclusão e a solidão. Kertész repudia “a integração total
no existente”. Se instala nas margens da história e certifica o fracasso de uma
cultura que gira sobre a culpa, o terror e vergonha.
Giorgio
Agamben sublinha que a figura do “muçulmano” é a maior abjeção do nazismo. Trata-se
de um homem destruído, sem esperança, “sem rosto nem palavra”, que nos oferece
um testemunho privilegiado do inumano. Kertész é um dos intelectuais mais
sólidos da Europa, mas também foi um “muçulmano” um “não-homem”. Estes dois
livros certificam que há algo (Kertész fala de um “conceito puro”; Marina, mais
clássico, evoca a “dignidade”) que pode salvar o homem não já do totalitarismo,
mas da cultura que o mesmo produziu.
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