As mentiras de “O nome da rosa”
Por Agustí Fancelli
“Tinha vontade de envenenar um monge”. Essa foi a razão de peso que
Umberto Eco diz em suas Pós-escrita a O nome
da rosa sobre os motivos que o impulsionaram a publicar, três anos antes,
em 1980, seu grande romance histórico. Anteriormente o professor de semiótica
da Universidade de Bolonha havia escrito apenas ensaios – alguns com muito
êxito, como Obra aberta, Apocalípticos e integrados ou Lector in fabula que seus discípulos leram
com fruição.
O nome da rosa se converteu
de maneira fulgurante num Best-Seller. E de alguma maneira o admirado professor
deixou de ser patrimônio daqueles estudantes para abraçar o grande público. Não
nos surpreendeu: sabíamos de sua extensa habilidade para ir de São Tomás de
Aquino a Snoopy, do Superman a Joyce, do Beato de Liébana a Agatha Christie e
Mafalda passando por Gertrude Stein, os irmãos Marx e a música de Luciano Berio
ou John Cage. Um tipo assim estava chamado a sair dos limites da aula.
Confesso, entretanto, que nos surpreendeu depois daquele boom a escrita
das Notas. Depois de nos empapar com
seu Lector in fabula não havíamos visto
que o autor era o leitor menos adequado para falar sobre sua obra, o mais
suspeito, ao possuir uma informação inacessível ao leitor comum? Não devia o
autor morrer depois de publicar para que fora o texto, essa máquina sempre
preguiçosa, quem falasse depois de por ela interrogada fosse o leitor? Sim, havíamos
visto isso, e precisamente por isso estavam aí as Notas: para confundirmos uma vez mais e convidarmos a não acreditar
nunca no autor.
Esse opúsculo, de fato, está cheio de mentiras jocosas. Mas também contém
uma verdade que talvez interesse aos leitores. Trata-se de uma das melhores definições
que podem encontrar-se sobre o romance histórico. Eco distingue três formas de
narrar o passado. Uma é copiando o passado como mera cenografia ou pretexto
para dar forma solta à imaginação, ao modo de Tolkien. Suas personagens poderiam
fazer o mesmo em qualquer outro tempo e espaço e a narração não se abalaria.
Uma segunda maneira é utilizar personagens reais, que poderiam fazer o que
fazem embora isto seja inventado, juntamente com outras personagens fictícias que,
em troca, poderiam ter atuado como atuam em qualquer outro tempo e lugar. É o
caso de D’Artagnan e Richelieu no romance de Dumas. A terceira possibilidade é
a do romance histórico propriamente dito: não faz falta que as personagens
sejam reais, mas sim que tudo que o façam e digam seja o que haveriam dito e
feito se tivessem vivido naquela época. É sem dúvida o caso de O nome da rosa.
cena do filme adaptação de O nome de rosa |
Eco cria uma Idade Média
perfeitamente real, perfeitamente medida inclusive em detalhes como a distância
que pode haver entre o hospital e a biblioteca de sua misteriosa Abadia, cujo
nome – e situação geográfica – o autor prefere não saber. Guillermo de
Baskerville e seu bom discípulo Adso de Melk, que é quem narra a peripécia,
pertencem inteiramente, a essa época, embora a intertextualidade – e especialmente
o excelente filme de Jean-Jacques Annaud sobre o romance – nos permitam
identificar relações do primeiro com o Agente 007 do MI5 a serviço de sua
Majestade, a Rainha (que grande Sean Connery no papel!).
E por que a Idade Média? “Escusado será dizer que todos os problemas da
Europa Moderna, tal como hoje sentimos, se formam na Idade Média: desde a
democracia comum até a economia bancária, desde as monarquias nacionais até a
cidades, desde as novas tecnologias até as rebeliões dos pobres... A Idade
Média é nossa infância”, diz Umberto Eco nas Notas. Fica suficientemente claro
que Eco mente jocosamente ou pelo menos não nos conta toda a verdade quando
afirma que escreveu O nome da rosa para
um monge?
Como também mente quando nega a emoção ao protagonista Guillermo de Baskerville.
Apenas há que repassar como, depois das fabulosas sete jornadas transcorridas
na Abadia, se despede de seu discípulo dando-lhe conselhos para seus estudos
futuros e dando-lhe os óculos, para descobrir toda a nostalgia do velho
professor por uma educação distante da pressa, a titulitis e a massificação, solitário caminho moral a percorrer com
esforço e vontade. Embora, isso sim, sem esquecer nunca a ironia. As páginas dedicadas
à discussão entre franciscanos e dominicanos sobre a pobreza de Cristo e a que
deveria observar a Igreja são hilariantes em virtude dos sofismas imperfeitos e
grossos insultos: um inteligente late-show
em pleno século XIV! Nas aulas de Eco, nos seus livros sempre há um momento
em que você se desloca: o conhecimento é para ele uma festa gozosa.
A grande mentira por fim é mesmo o título do romance. A rosa está tão
carregada de significados – míticos, místicos, poéticos, estéticos, políticos e
econômicos – que finda por não querer dizer nada. É puro nome, como é no verso
de Gertrude Stein: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa...” É necessário mergulhar-se
nesse nome voluptuoso, neste grande romance, e desfrutá-lo. Vale a pena.
* Esta uma versão livre para "Las mentiras de El nombre de la rosa", publicado no jornal El país.
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