As contradições de um romance
Boris Pasternak
será sempre lembrado não pela sua poesia – gênero que terá praticado com certa
maestria – mas pelo seu romance Doutor
Jivago. Do poeta, Ángel Fernández-Santos o designa como alguém “comprometido
com seu ofício, pois criou arquipélagos de luz e de serenidade em tempos
obscuros, tempestuosos e nunca obedeceu à realidade, mas criou outra mais habitável
pela a gente humana. Sem ser um revolucionário, lutou com suas armas pela
revolução enquanto esta foi quando tinha possibilidades de se realizar degolada
por Stálin. Sobreviveu a Maiakóvski e Yesenin sem convicção e hoje segue ditando
lições de ser russo”.
Doutor Jivago foi o romance que custou
ao autor a repressão do regime comunista; foi o romance transformado em panfleto
pela guerrilha estadunidense no processo de derrocada do regime; foi o romance
que lhe deu a fama que talvez nunca tivesse chegado se esperasse pela poesia;
foi o título que chamou atenção para a Academia Sueca se decidir por entregar-lhe
o Prêmio Nobel de Literatura em 1958, o qual teve de renunciar por pressão do regime
soviético.
Pasternak foi
assim um dos primeiros dissidentes literários da antiga União Soviética que
chegou até nós – seja porque seu livro famoso ganhou logo várias traduções ao
redor do mundo, seja porque ganhou as telas do cinema em 1965. Mas, logo então pouco
se entendia porque este romance leve, de tom tolstóiano, caudaloso e um pouco
confuso (a grande quantidade de personagens que entram e saem de cena requer do
leitor uma excelente memória) pode ocasionar o ódio do comando soviético; pouco
se entendeu por que o escritor merecesse o Prêmio Nobel a não ser pela enrascada
política em que esteve metido.
E mesmo a
possibilidade de que tenha sido um dos primeiros dissidentes do regime soviético
talvez não seja esta: era mais um sujeito brilhante e inteligente que achava
desumano se resignar a perder os valores individuais (“enfermos”, segundo as leis
de Moscou) em que havia nascido. Como aconteceu a Maiakóvski, este e Yesenin,
ainda que inferiores, muito mais populares porque trataram de se integrar e
integrar sua obra numa coletividade, a gênese da forma revolucionária; um e
outro, entretanto, não estiveram suditamente entregues aos mandos do poder, mas
souberam trabalhar no seu interior, ainda que acreditassem na redenção proposta
pela ideologia. No fim, os três se alinham num exercício artístico em prol da
humanidade e os três estiveram tomados pelo desencanto.
O futurismo
era fascinante aos olhos Pasternak; o escritor flertou com a vanguarda. Mas, aí vinha o
regime que sempre lhe pedia algo que nunca soube como dar, nunca soube administrar;
talvez tenha existido um bocado de arrogância e prepotência, duas características
que juntas compõem o mal do gênio. Talvez o que o regime almejasse era apenas
que o escritor pudesse ser com seus contemporâneos, entendido por todos; autor
de uma palavra plena.
Constantemente
se disse em Moscou que Pasternak chegou tarde à revolução – tinha 27 anos – e tinha
então uma “carga” muito forte de burguesia que foi produtora dessa incapacidade
de se dissociar do sentimento individualista. O escritor por sua vez denunciava
que gostaria de fugir do que detectou de maneira errônea ser um fenômeno artístico
do seu tempo: o “realismo socialista”. Essa sua definição foi pouco
convincente: “Se enfocamos uma realidade que tem sido deslocada pelo
sentimento, a arte é o que registra esse deslocamento”. Má coisa para os
censores num país onde nada devia deslocar-se.
Estávamos ante
um mesmo plano discursivo, mas com posições diferentes (ao menos no se refere à
compreensão). Mas, não foi Pasternak
quem abandonou a revolução e sim a revolução que o abandonou. Começaram por lhe
retirar o direito à publicação; era uma figura que despertava suspeitas, mas
não para ser reprimido ou castigado, como muitos foram. Durante esses anos seu
trabalho foi traduzir Shakespeare, publicar uma ou outra antologia e até apresentar-se
em alguns periódicos assinando-se “Doutor Jivago”.
Não custou
descobrirem que estava por trás dessa identidade porque foi o mesmo nome que elegeu
para a personagem central de um longo romance em que acreditava levá-lo ao
lugar de onde não devia ter saído: o de poder publicar sua obra. Tentou colocar
forma ao que defendia como realismo socialista, afinal, o romance que o sagrou
se manifesta com uma narrativa de veio realista e abarca os muitos anos de vida
da União Soviética em torno de uma figura mista de médico humanista, pequeno filósofo,
que reflete sobre os acontecimentos, a vida e às vezes se deixa lavar a alma
com a poesia.
Pasternak
enviou esse texto a revista Novy Mir
que se recusou editar o original depois de qualificá-lo como um romance cujo
tema era o “enfermo individualismo”. Mais duros foram os censores: não reconheceram
o que era um amplo panorama histórico do próprio país como o consideraram um
texto contrarrevolucionário pela maneira não-oficial como tratava os
acontecimentos, principalmente os que diziam respeito à revolução e à guerra
civil.
Mas, parece
que Pasternak nasceu para ser incompreendido. Enquanto o regime repudiava seu
trabalho, outros dissidentes mais perseguidos, e realmente mais
contrarrevolucionários, como Alexander Soljenítsin, muito mais político, acusaram-no
de ser um mimado pelo regime. O próprio escritor tinha ciência de que seu
romance não fosse ser recebido da maneira como foi pelo regime.
É quando os
editores ocidentais o descobrem a partir de um italiano; o romance saiu em 1957
e no ano seguinte veio o Prêmio Nobel, uma consagração que viu, mas não teve o
gosto de saboreá-la plenamente, assim como não alcançou outro reconhecimento
enaltecedor: o filme que Hollywood executaria com certo primor dez anos depois
da primeira edição do livro. Este sim foi mais contrarrevolucionário que o
próprio romance. Suas três horas e meia não espantou o público.
No fim, o
romance segue como um dos obras fundamentais da narrativa europeia do século
XX; obra que terá levado mais de trinta anos para entrar no mercado editorial
russo e ganhar, desde então, outra compreensão sobre o seu passado. A melhor
maneira de ler Doutor Jivago talvez
seja a de não como uma arma contrarrevolucionária que não foi, mas apenas com
um dos grandes romances de nosso tempo, com maestria autêntica e amplo talento
narrativo.
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