Num sei português


Por Pedro Fernandes



Um professor de Língua Portuguesa que possui um pingo de curiosidade pergunta no primeiro dia de aula aos seus alunos o porquê de se estudar Português. As respostas dificilmente variam; alguns responderão: “Ora, para aprender a falar!” Outros, “Pra ser gente!” Ainda outros, grande minoria: “Pra aprender a escrever corretamente.”

Em seguida ele faz outra pergunta, “O que os alunos acham de estudar Língua Portuguesa?” Aqui as respostas serão quase que unânimes em torno de que Português é ruim, chato. Só perde para Matemática. “Ou não, Matemática é bem mil vezes melhor.”

Essa historieta é para que possamos refletir acerca das multicaras do ensino de Língua Materna e os mitos que ainda rondam este ensino. Podemos deduzir de imediato que a situação do ensino de Língua Materna anda de mal a pior; tem-se, inclusive, uma nação insatisfeita com a própria fonte de comunicação e, além disso, incapaz de tomar as rédeas dessa língua e “brincar” com ela, assim como quando estou escrevendo um texto destes ou fazendo inferências em relação à leitura sua. E mais preocupante ainda, são portadores de uma carga de preconceito enraizada no “gene brasileiro”; enraizadas porque opiniões como estas são ouvidas desde crianças do Ensino Fundamental a adultos dos programas de alfabetização ou analfabetos.

A falsa sensação de que a língua portuguesa brasileira deve seguir um padrão é no mínimo pretensiosa, uma vez que esse padrão loca-se na escrita e não falamos conforme escrevemos. No processo de escrita é evidente que a língua expõe-se de maneira engessada. Na maioria das vezes, na escrita, fazemos uso do arranjo, disposição, escolha das palavras, das frases; buscamos encadeamento lógico – coerência e coesão – para que nossa opinião externada constitua sentido para o leitor. Temos a oportunidade de rever, refazer a organização dessas proposições apagando, riscando, rasgando o papel, refazendo o texto; tudo o que no instante da fala não temos chance.

E ainda, está longe de existir uma homogeneidade lingüística. Isso já dizia os lingüistas, desde o precursor Ferdinand Saussure. A língua que falamos constitui-se numa verdadeira colcha de retalhos; fazem parte vocábulos aos montes doutras línguas. Como podemos uniformizá-la? Não há essa possibilidade. A língua é algo que passa por transformações constantes e sutis.

O “pra aprender a falar” ou “português é muito difícil” são marcas de um desestímulo cultural imbricado historicamente nas raízes sociais. Num país como nosso a diferença entre pobres e ricos já é alarmante. E para dispersar ainda mais ambas as classes atribui-se à língua falada “o muito difícil” no pretexto de que os ricos batam no peito capacidades maiores de torná-lo fácil e, portanto, seus verdadeiros donos; tornando os pobres cabisbaixos diante da questão. Enxergamos aqui razões que vão além do marcar diferenças sociais, são razões mesmo de poder, a título de contribuir com a perpetuação dessas diferenças, bem como de uma sociedade ignorante, cega e acomodada.

Todas estas questões deságuam noutro porto: falamos errado, não sabemos português. Ao fazer essa assertiva rememoro uma cena que a Tv exibia num programa humorístico: “Pobre é raça ruim”, dizia, “tem pobre que para falar, precisa de tradutor, porque senão a gente não entende nada!” Ou mesmo ícones do chiste “brincam” com a fala dos que não possuem certo grau de instrução. Questões desse tipo só reforçam e perpetuam mitos e preconceitos em torno do uso da língua materna e se apresentam como marcas delineadoras de classes sociais entre pobres e ricos. A Tv, monopolista maior do poder de fala, incute-se dessa guarda ao bem simbólico que é a língua, não só ela, mas como a própria escola conforme explora Pierre Bourdieu.

Entenderemos aqui o quanto que a língua é cara nossa, mas também cara do poder, fator social. Como consolo, enxergo que apenas como professores de Língua Materna, também guardiões desse bem simbólico, não devemos se restringir a apenas isso, mas somos bem capazes de rever tudo isso. Com vergonha enxergo que não demos conta dessa missão, ainda nos comportamos fiéis mantenedores disso tudo; ainda estamos presos a arcaica vigilância do código lingüístico. E parece que quando tentamos fugir, virar a mesa, um pan-óptico nos mira, nos cerca, nos cerceia e nos convence com um simples mito da andorinha só não faz verão. Há, inclusive, professores de Língua Materna que afirmam que as aulas devem ser chatas porque Português é mesmo difícil.

E enquanto isso perdura o “num sei Português”. Talvez se encaixe aqui uma raiz do grande problema social brasileiro. Como gritar por direitos se nos mantemos acuados? Como gritar por direitos se diante de um “num sei Português” não conseguimos sequer mostrar quem somos? As respostas dos alunos para as questões que introduziram este artigo é uma maquete da sociedade brasileira; uma sociedade calcada nos mitos, de facetas políticas distintas – ricos e pobres – e acovardada como medo de falar. Somos repreendidos pela fala dos que têm voz e nos calamos mesmo nos poucos momentos que poderíamos fazer uso dela. São as mazelas expostas, nua e crua, tatuada na própria língua. É a cara do Brasil!

* Texto publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato em 10 de fevereiro de 2008.

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