Goethe: uma figura da modernidade e do romantismo




Goethe é uma personagem que desperta paixões controvertidas ainda hoje e é um nome da cultura germânica a quem devemos as primeiras pedras da modernidade e a inauguração do sentimento romântico do culto à genialidade e inclusive, certa atitude inédita até então, que é a de ver no escritor a presença viva do Criador, o que seus contemporâneos consideraram a simples chama da vaidade. “Sempre foi tratado como um sujeito mimado e privilegiado”, dizia Eckermann, autor de Conversações com Goethe.  “Não queria me lamentar do curso de minha vida, mas na realidade não foi mais que trabalho e esforço, e posso dizer que ao longo de meus 75 anos, apenas passei quatro semanas agradáveis. De minha atividade tanto interior como exterior, se exigiu demais”.

Goethe nasceu em Frankfurt no dia 29 de agosto de 1749, no seio de uma família que, pelo lado materno, se dedicava às leis, e pelo lado paterno era de artesãos e comerciantes abastados. Realizou os estudos de advocacia em Leipzig e Estrasburgo, cidade onde começa sua atividade conscientemente literária, onde conhece Herder e se aproxima de jovens escritores separados do rococó, e na qual viverá experiências que serão a base de suas posições românticas. A catedral de Estrasburgo lhe imporá a reivindicação do gótico, considerado pelos últimos neoclássicos como excessivo, mas fundamental para os românticos, e alguns amores finalmente fracassados, com Frederike Brion, lhe inspiraram os primeiros poemas modernos da literatura alemã.

Desta época data o drama em prosa Goetz de Berlichingen, de estrutura shakespeariana, que trará a figura do cavaleiro baixo-medieval que logo servirá de moda a escritores como Walter Scott, e Egmont, antecedente de sua novela-chave, Os sofrimentos do jovem Werther, onde já a paixão amorosa rompe com as condicionantes da razão e da moral e até da própria vida. A lenda diz que o suicídio de Werther, apesar de constituir uma pedra angular do movimento romântico, abriu uma nova sentimentalidade apaixonada para o Ocidente, até o ponto de ser celebrado por uma onda de suicídios igualmente passionais e juvenis.

A atividade política de Goethe o aproxima do duque Carlos Augusto de Sajonia-Weimar, de quem será conselheiro secreto desde 1776 até sua nomeação como ministro em 1815, depois do Congresso de Viena. Sua vida está acolhida pelos termos “tranquilidade do espírito” e “pureza”, e ao amor platônico por Charlotte von Stein num primeiro momento, rompido em 1786, o que vai ser um acontecimento em sua vida: é quando faz sua viagem à Itália, dois anos preso basicamente em Roma, que considerará os mais felizes de sua vida. Viagem à Itália é o testemunho deste período.

Junto com sua atividade política, se desenvolve outra, a de agitador cultural e de cientista apaixonado pela natureza, especialmente a Botânica. Seu trabalho como diretor do Teatro de Weimar e como superintendente dos Institutos para a Arte e a Ciência de Weimar e Jena o colocou em contato com o poeta Schiller, então professor de história da Universidade de Jena. E sua paixão por Christiane Vulpius, com quem se casaria depois de um longo noivado em 1808 é, provavelmente, um dos componentes fundamentais para sua obra da maturidade.

Por fim, a grande obra de Goethe é Fausto. Fausto é, durante sessenta anos, a constante companhia de Goethe, desde o Ur-Faust de sua juventude até o terceiro Fausto terminado poucos meses antes de sua morte. A paixão do gênio e a eterna juventude, a paixão amorosa a que se entrega além da própria vida – Werther –, a eternidade, a figura diabólica como possibilidade de conhecimento definitivo, todo isso, além do desengano definitivo, está na principal obra de Goethe.

O sismógrafo

É sabido que Goethe, pouco antes de morrer, mandou abrir as cortinas para que entrasse a luz nos seus aposentos. Talvez chamasse pelas queridas luzes do século XVIII, seu século; morria numa Europa obscurecida pela restauração, em que pelejavam senhores e banqueiros, militares e cardeais, deixando de lado “a imensa república dos espíritos cultivados” que Voltaire acreditou conhecer em 1767. 

No crepúsculo, o velho Goethe pode recontar a queda de suas ilusões, apenas sustentadas ao longe, como sempre, pela França que acabava de coroar um roi citoyen: a Alemanha seguia sem existir, dividida em centenas de senhorios encabeçados por pequenos déspotas mais ou menos bonachões e preguiçosos, de baixa educação e corteses; em vão havia tratado de despertá-la do torno à veneração das ruínas góticas, as velhas sagas medievais, o Singspiel e o drama histórico.  

Napoleão havia sido derrotado pela Santa Aliança. As coroas ilustradas, varridas por uma onda de terror ante a revolução burguesa. Os românticos impunham uma arte que ele já considerava débil e enferma, embora amasse os versos de Byron e as novelas de Walter Scott, o escritor que morte o levaria naquele mesmo ano. Nesta queixa contra arte do dia, talvez Goethe se reprovava haver-lhe dado nascimento com um disparo, igual ao que acabava com a vida de Werther.

Uma corte de funcionários respeitosos e chatos

Continuava queixando-se de que a “Europa nada lhe dava”, como disse num de seus Epigramas venezianos? É certo que os perigos desfilavam por Weimar para tocar o seu pequenino Júpiter, talvez para contentar-se com vê-lo detrás do cristal de uma janela; mas este amante da vida não podia ignorar que a devoção de certos europeus se dirigia a uma dessas estatuas de gesso que gostava de colecionar, réplicas dos quentes mármores que surpreendia com facilidade em sua viagem pela Itália.

Não tinha ao seu lado amigos de juventude. Nem Schiller, nem Hegel, nem Herder, nem Lessing podiam ser seus correspondentes. Apenas permanecia uma corte de funcionários respeitosos e chatos, antes os quais lia, como numa celebração ministerial, as ocorrências professorais do segundo Fausto ou o fogo cinzento da Elegia de Marienbad. O fiel Eckermann, cujo destino parecia o de ser seu escuta final, o grande ouvido da história, lhe dava a réplica silenciosa, sem perder jamais o deslumbramento que o mestre dispensava, perto ou longe, vivo ou morto.

A multidão de leitores, sem ignorá-lo, negava seus melhores favores. Um senhor Thümmel cobrava por novelas de viagem mais que o dobro que por suas obras completas. Walter Scott ganhava em três anos de vendas o que ele ganhou em toda sua vida de escritor. A edição Goschen (1970) de seus trabalhos encontrou 602 assinantes e 503 compradores soltos. Sir Walter, entretanto, vendia 35 mil exemplares por mês e O corsário, de Lord Byron, alcançou 10 mil leitores no dia de sua publicação.

Que pauta nos serve para medir a grandeza de Goethe então? Com que direito aplicar-lhe a babilônica e turva etiqueta de “grande escritor, por favor não o toque”? Nenhuma matemática, nenhuma variável. Grande é o escritor que em pé sobre um sismo da história registra seu tremor. E nisto, Goethe foi um sismógrafo com escassos colegas.

O primeiro romance da modernidade

Se Os anos de aprendizado é o fim do romance pedagógico que narra a harmoniosa luta de um homem por sua identidade, o escondido caminho de um nome até si mesmo, se é o último romance sistemático, Os sofrimentos é o primeiro romance da modernidade, fragmentário, miscelânea dispersa, abrupta como a paisagem que lhe serve de fundo. Werther é o primeiro anti-herói moderno, a personagem cuja história termina mal, o pai de Hans Castorp e o avô de Gregor Samsa. 

Se o primeiro Fausto leva ao limite as tensões do homem clássico, dono de toda a experiência da vida, sem fronteiras preestabelecidas a seu desejo, o homem-Deus do humanismo que humaniza o mundo, o segundo Fausto repõe o animal humano nas fronteiras sem medida da ignorância, movendo-se com o tremor que produz a morte de Deus. Seu final, com a grande mãe que o recupera e o eleva, é a primeira página psicanálise, a primeira experiência moderna desse sentimento oceânico em que mãe e a amante nos dissolvem na totalidade originária que acreditávamos alcançar.

E na queima do belo instante fugaz, na fixidez intransitiva do símbolo que salva a efêmera transitoriedade das coisas, Goethe está coroando a palavra como senhora do reino poético, está sublinhando o campo do simbolismo, o alimento de toda a poética moderna.

Seu mesmo programa intelectual, a formação dessa associação dos melhores, que, nem sacerdotes nem burgueses se propõem comandar a povoação das planícies desde a altura das montanhas, esboça o domínio do mundo por uma aristocracia técnica, que é a que insensivelmente nos governa até nossos dias.

A corte de Weimar enterrou seu conselheiro secreto em 1832. Através dos anos, graças a seu fino ouvido para o deslocamento das placas tectônicas da história, o velho Goethe, nosso companheiro na aprendizagem e o vagabundo, segue dando-nos seus secretos conselhos. 


* A primeira parte do texto é uma versão livre de "Una figura de la modernidad y el romancistim", sem autor, e a segunda parte, "O sismógrafo", também, para o texto "El sismógrafo", de Blas Mataro no jornal El País.

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