Um dedo de prosa sobre a pontuação insólita em José Saramago
Por Pedro Fernandes
José Saramago. Foto: Orlando Brito (detalhe/reprodução) |
Bom, já outra postei neste blog um texto sobre a polêmica que ainda ronda a obra O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago. Ao pesquisar na web mais sobre esse escritor a quem me dedico e rabisco as minhas primeiras reflexões em torno da sua obra, encontrei dois artigos assim intitulados: o primeiro, "A insólita pontuação literária de José Saramago" e o segundo, "As intermitências da morte ou o novo romance de José Saramago" de onde destaco o item "A importância da ortografia na escrita do romance". Ambos os textos são do crítico João Ferreira.
Utilizando do livre recurso do CTRL+C-CTRL+V, sempre respeitando e dando o devido e merecido crédito aos escritos, é bem verdade, arrastei-o para minha pasta onde acomodo os artigos que na rede pesco sobre o escritor, pasta esta genuinamente denominada de material para monografia, visto que, pretendo usar a obra do escritor, não O evangelho, como objeto para minha monografia de conclusão de graduação e, todas as discussões que em torno do autor e seus textos me são interessantes.
Sobre os dois textos de João Ferreira, muitas questões me vieram à tona; apesar de não ser o foco a que pretendo discutir acerca do autor, achei, ainda assim, necessário escrever uma resposta, um comentário, qualquer coisa, porque algumas convicções postadas pelo autor me parecem petulantes e de um certo tradicionalismo desnecessário, porque se reduzem a uma preocupação sem sentido para com a literatura.
Como amante da literatura aprendi que ela é o espaço onde o previsível, o imprevisível, o possível, o impossível, o tudo pode acontecer e desses acontecimentos devemos sempre buscar compreendê-los de maneira reflexiva, sem preconceitos e/ou posicionamentos estritamente pessoais; que o objeto literário é tão rico que, não devemos nos prender às questões superficiais, como assegura mesmo o crítico literário Massaud Moisés em seu texto A Análise Literária – prosa I. Não se trata, é bem verdade, de desprezar certas determinantes estruturais e formais para a leitura crítica do texto literário, mas resumir-se a elas é castrar aquilo que de arte é a obra.
Então é a partir dessa posição (que pode até ser ingênua) que me coloco em torno da literatura do escritor português no intuito de dialogar, comentar aqui sobre esta abordagem do João Ferreira. Estas notas pretendem apontar respostas aos problemas por ele apresentados acerca da escrita do português José Saramago, no que concerne a aspectos da pontuação e da normatização da escrita do Nobel.
Entende-se que o escritor português José Saramago possua uma pontuação insólita ou mesmo heterodoxa como se afirmou constante do início ao fim de seu artigo, entendido também como marca estritamente pessoal do escritor. Acredito que sobre isso não podemos objetar, mas algumas considerações expostas por João Ferreira neste artigo merecem algumas respostas sobretudo as que concernem sobre a liberdade literária e os rumos a que tomou a escrita na contemporaneidade. Isto é, antes de ver como uma mera subversão linguística ou mesmo apreço pelo erro gramatical, esse modo insólito de escrita compreende um repensar acerca das convenções ordinárias propostas pela gramática, o regimento do universo lingüístico. Ao menos, a tarefa da literatura é de problematizar. Logo já compreendo a forma de escrita como proposital ao repensar sobre certa determinações pela via da desfeitura da ordem ou até uma remontagem pelo avesso da forma tradicional.
A partir das objeções perfiladas pelo João Ferreira, me parece que, o escritor sabe perfeitamente o que circunda os dois modos de pontuação, o seu e o formal, o do ponto de vista da gramática, como bem expôs o artigo e isso o faz sujeito inserido naquele nicho em que a Lingüística chama de “bom usuário” da língua materna. O interesse único e exclusivo dele [o escritor luso] me parece ser o fato de querer sacudir o leitor de sua posição de sujeito apático perante o objeto literário. Ao se ler um texto saramaguiano dificilmente o leitor não se perturbe com alguma coisa, ainda que com a visualidade e organização sintática do texto. No que diz respeito a isso, já foi afirmado pelo escritor português que a literatura com toda sua capacidade não tem se mostrado como um objeto de intervenção ou mesmo de reflexão em torno das cadências humanas. Isso se mostra preocupação na escrita dele na segunda fase marcada por romances do como Ensaio sobre a cegueira, Ensaio sobre a lucidez, entre outros, em que o homem e a sua construção social são postos em xeque. A desconstrução da forma tradicional da linguagem escrita entra, portanto, no interior dessas reflexões sobre as cadências humanas, afinal, é a escrita uma construção condicionada pela imaginação criadora do homem.
Ao fazer o uso de uma pontuação insólita Saramago suscita inclusive naqueles leitores mais desprovidos, acostumados ao romance barato, linearmente construído, simples, formal, a refletir em pelo menos uma coisa nas suas vidas já que nos mostramos sujeitos abobalhados, sem ação perante tudo o que nos cerca; se nada mais nos choca, se até a literatura que há pouco tempo escandalizava por oferecer algum elemento que fugia do tradicional e se na sua missão de fugir desse tradicionalismo só tem se mostrado enquanto objeto de entretenimento, a sua missão enquanto literato não é mais que justa ao fazer uso de sua escrita para refletir sobre certos formalismos estabelecidos.
O leitor que se aborrece perante aos períodos longos de sua escrita são aqueles desprovidos de maturidade lingüística; é o leitor preguiçoso, acomodado à objetividade expressa pelo tradicionalismo formal dos compêndios gramaticais. A escrita de Saramago deveria nesses indivíduos ser objeto de reflexão em torno do uso que fazem da língua materna. Sua intromissão, como afirma o autor, no formalismo tradicional apregoado nas escolas oferece sim caminhos e vantagens e oferece sim facilidades aos esquemas mentais para o ensino de língua portuguesa; talvez não de um universo infantil, mas um professor de língua portuguesa querer que uma criança leia José Saramago é sim um literaturicídio, o mesmo que muitos professores fazem ao dar um Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou uma Iracema, de José Alencar para os pequenos. A literatura saramaguiana restringe-se àqueles que possuem outro estágio diante da linguagem ou esteja mesmo apto a alcançar esse outro estágio. Também terá melhor atuação naqueles de alma crítica capazes de absorver o verdadeiro intento do objeto artístico literário na contemporaneidade que é o de refletir os espaços, refletir o homem; acredito que isso sim deva se constituir, logo, objeto de inquietação quando de posse da escrita de Saramago e não se restringir tão somente numa simples pontuação e rotulá-la de insólita.
Ao expressar-se desse modo corrido, próximo de uma oralidade como mesmo foi justificado pelo Nobel, ele consegue reunir algo que talvez tenha sido pretensão de muitos outros grandes escritores, o de marcar a oralidade na escrita. Quando digo muitos escritores lembro-me logo do Guimarães Rosa, outro escritor que li na minha graduação em Letras sob a acusação de ser difícil, mas que é autor polidor de palavras e interessado em marcar na escrita o labiríntico mundo da oralidade.
A pontuação insólita, no caso de Saramago, tem, portanto, interesse de traduzir uma continuidade específica da fala, assim como a extensa truncagem na obra de Guimarães traduz também outra especificidade da oralidade. A forma corrida de Saramago é do português de Portugal; mais que isso, é uma forma de colocar no impresso essa carga diversa de vozes a que estamos acostumados na simultaneidade do dia-a-dia. É bem verdade ser impossível dispor isso na escrita, uma vez que a letra sempre vem após outra, não se consegue fazer uma sobreposição do modo que acontece na realidade, mas a forma como que Saramago representa me parece a mais sensata e próxima de alcançá-la estruturalmente. Além de que a pontuação tradicional – os dois pontos, o travessão – marcam-se como uma artificialidade dessa representação no papel, como bem expressou o escritor luso, quando falamos, não temos necessidade de tê-los ao nosso alcance a ponto de nos fazermos entendidos.
E é com essa interferência no já-dito que o escritor suscita novas reflexões; é fazendo uso de uma pontuação dita insólita que o escritor cria o vínculo vivo que hoje está morto do leitor perante o texto literário. A pontuação insólita do Saramago requer do leitor dedicação única e exclusiva para o seu escrito; não é, sem dúvidas, uma literatura pra se ler em botequim, mas como ele mesmo expressou, para se debruçar e buscar. É na procura, no mover-se para, que o escritor quer de seu leitor com seu texto encontre algo, nem que seja esse estranhamento patético de uma pontuação.
Assim entendo que, reforçando o que já expus anteriormente, qualquer preocupação que se funde em torno da obra do escrito português ou mesmo de qualquer outra obra de cunho literário com esse sentido, de que o autor deva se guiar pelo molde do que dita convenção num sei das quantas para a normatização e/ou padronização do escrita me parece não alcançar uma reflexão mais completa sobre a natureza da literatura e finda por ser uma depreciação barata do objeto artístico em questão.
Se a questão é da escrita de nomes próprios com letras minúsculas entendo que, assim o escritor, queira expressar que as personagens por ele citadas, todas elas tidas como renome e importância no cenário histórico, se constituam em pessoas comuns, que ao sendo grafadas de minúsculas se perdem em meio ao texto, representando, por sua vez, que estas devam também se perder em meio a outras pessoas não menos importantes que estas. E isso já é manifesto pelo próprio escritor ao dar voz a personagens do povo com tamanha carga discursiva que aquelas que figuram nos livros de história; afinal de contas, o que representa, por exemplo, a figura de Blimunda no Memorial do convento, senão a marca de importância maior para a história que é o próprio povo comum?
Se, repito, sempre olharmos para a ortografia, a sintaxe etc., para os elementos que formais que compõe o texto literário corremos o risco de matar o texto no que ele tem de mais belo que é a sua essência enquanto obra de caráter crítico-reflexivo, a que se propõe a escrita de José Saramago. Ele como Nobel mais que representa e respeita o leitor, faz dele um sujeito ativo e interactante com sua escrita, choca-o, provoca-o, inquire a refletir sobre todos os aspectos sociais, a começar pelo o papel do leitor e da escrita literária.
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