Gustave Flaubert por Guy de Maupassant
Digo com muita freqüência sobre o prazer de ser um rato de biblioteca. É na biblioteca que sempre fazemos as descobertas que em nenhuma vitrine ou livraria alcançaremos fazer. Algumas, talvez. Foi numa biblioteca que descobri a obra de José Saramago, embora, nesse caso, pudesse ter sido também numa livraria. Mas, para outras raridades, como a que transcrevo logo a seguir, não.
*
I
De tempos em tempos, entre os escritores que deixarão seu nome para a posteridade, acham-se alguns que conquistam um lugar especial pela perfeição e pela raridade de suas obras. Outros, paralelamente, produzem abundantemente, misturando o raro ao banal, o original ao comum, forçando o crítico e o leitor a um trabalho considerável para separar o que deve permanecer do que deve desaparecer. Mas os primeiros, por uma criação laboriosa e paciente, produzem uma obra absoluta, perfeita no conjunto e nos detalhes. E, se todas as obras desses autores não obtêm junto ao público um sucesso absolutamente igual, há sempre pelo menos um de seus livros que fica na história das letras com o rótulo de obra-prima, tal qual os quadros dos grandes mestres colocados no “Salon Carré” do Louvre.
Gustave Flaubert produziu até agora apenas quatro livros e todos eles
subsistirão. E provável que apenas um seja qualificado de obra-prima,
entretanto os outros certamente merecerão tanto quanto esse o mesmo epíteto.
Todos leram Madame Bovary, Salammbô, L’Education
Sentimentale (A Educação Sentimental) e La Tentation de Saint
Antoine (A Tentação de Santo Antônio); todos os jornais fizeram com
tal freqüência a análise dessas obras, que não tenho a intenção de recomeçá-la.
Quero falar da obra de Flaubert de uma maneira geral, e aí buscar coisas que o
público todo talvez não tenha visto até agora.
II
As pessoas que tudo julgam sem nada saber, e que, assim que aparece um livro de um gênero novo e desconhecido, apressam-se em colocar nele, como um cartaz, a tolice de seu julgamento que acreditam eterno, proclamaram em alto e bom som, quando da publicação de Madame Bovary, que Flaubert era um realista, o que, em seu espírito, significava materialista.
Em seguida, ele publicou Salammbô, um poema inspirado na antigüidade e Saint Antoine, uma quintessência das filosofias; nada mudou; jornalistas competentes o haviam batizado de materialista e materialista ele continuou para os cérebros rudimentares das pessoas bem pensantes.
Não cabe aqui relatar a história do romance moderno e explicar todas as
causas da emoção profunda provocada pela aparição do primeiro livro de
Flaubert. Ser-me-á suficiente ressaltar a mais importante delas.
Desde a origem dos tempos, o público francês bebia com deleite o meloso
xarope dos romances inverossímeis. Esse público amava os heróis, as heroínas e
as coisas que jamais se vêem na vida, pela única razão de que essas coisas são
irrealizáveis. Chamavam de idealistas os autores desses livros, simplesmente
porque se mantinham sempre a distâncias incomensuráveis das coisas possíveis,
reais, materiais. Quanto a idéias, eles as tinham talvez ainda menos que seus
leitores. Veio Balzac, e de início, mal lhe deram atenção. Era, entretanto, um
inovador singularmente poderoso e fértil e um dos mestres do futuro, escritor
imperfeito, sem dúvida, para quem a frase era um obstáculo, mas criador de
personagens imortais que ele fazia moverem-se como através de uma lente de
aumento, tornando-as por isso mesmo mais impressionantes e de certa maneira
mais verdadeiras que a realidade! Madame Bovary aparece e provoca uma
confusão geral. Por quê? Porque Flaubert é um idealista mas também e sobretudo
um artista e seu livro era além disso um verdadeiro livro; porque o leitor, sem
se dar conta, sem saber, sem compreender, sofreu a influência todo-poderosa do
estilo, a luz da arte que ilumina todas as páginas desse livro.
Com efeito, a primeira qualidade de Flaubert que para mim salta aos
olhos, assim que se abre uma de suas obras, é a forma, esta coisa tão rara nos
escritores e tão despercebida do público; digo despercebida, mas sua força
domina e penetra aqueles que menos acreditam nela, como o calor do sol aquece
um cego que entretanto não lhe vê a luz.
O público entende geralmente por “forma” uma certa sonoridade das
palavras dispostas em períodos harmoniosos, com começos de frases imponentes e
finais melodiosos. Em razão disso, esse público quase nunca duvidou da arte
imensa contida nos livros de Flaubert. Nele, a forma é a própria obra: ela é
como uma seqüência de moldes diferentes que dão contorno à idéia, esta matéria
com que são moldados os livros. Ela lhe fornece a graça, a força, a grandeza,
todas aquelas qualidades que, por assim dizer, dissimuladas no próprio
pensamento, só aparecem com o auxílio da expressão. Variável ao infinito como
as sensações, as impressões e os sentimentos diversos, ela adere a eles,
tornam-se inseparáveis. Amolda-se a todas as suas manifestações, trazendo-lhes
a palavra sempre precisa e única, a medida, o ritmo particular para cada
circunstância, para cada efeito, e cria por esta indissolúvel união o que os
literatos chamam de estilo, muito diferente daquele que se admira oficialmente.
Com efeito, chama-se geralmente estilo uma forma particular de frase
própria a cada escritor, tal qual um molde uniforme em que ele molda todas as
coisas que quer exprimir. Deste modo há o estilo de Pedro, o estilo de Paulo e
o estilo de Jacques.
Flaubert não tem seu estilo, mas tem o estilo, ou seja, as expressões e
a composição que ele emprega para formular um pensamento qualquer, são sempre
aquelas que convêm absolutamente a esse pensamento, uma vez que seu
temperamento se manifesta pela precisão e não pela singularidade da palavra.
III
“Sem estilo, não há livro”, este poderia ser seu lema. Com efeito, ele pensa que a primeira preocupação de um artista deve ser criar o belo; pois, sendo a beleza uma verdade em si mesma, o que é belo é sempre verdadeiro, enquanto que o que é verdadeiro pode nem sempre ser belo. E por belo eu não entendo o belo moral, os nobres sentimentos, mas o belo plástico, o único que os artistas conhecem. Uma coisa muito feia e repugnante pode, graças a seu intérprete, revestir-se de uma beleza independente dela própria, enquanto que o pensamento mais verdadeiro e mais belo desaparece fatalmente nas fealdades de uma frase mal feita. É preciso acrescentar que uma parte do público detesta até a palavra “forma”, como sempre se detesta aquilo que se é incapaz de compreender.
Portanto Flaubert é antes de tudo um artista, isto é, um autor
impessoal. Eu desafiaria quem quer que fosse, depois de ter lido suas obras, a
adivinhar o que ele é na vida particular, o que pensa e o que diz em suas
conversas de cada dia. Sabe-se o que devia pensar Dickens, o que devia pensar
Balzac. Eles aparecem a todo momento em seus livros; mas vocês imaginam o que
era La Bruyère, o que podia dizer o grande Cervantes? Flaubert jamais escreveu
a palavra eu. Ele nunca vem conversar em público no meio de um livro, ou saudar
esse público no final, como um ator no palco; e não escreve prefácios. É o
apresentador de marionetes humanas que devem falar por sua boca, enquanto ele
não se dá o direito de pensar por elas; e é preciso que não se percebam os
cordões ou se reconheça a voz.
Filho de Apuleio, de Rabelais, de La Bruyère, de Cervantes, irmão de
Gautier, ele tem bem menos parentesco com Balzac, apesar do que se tem dito a
esse respeito, e ainda menos com o filósofo Stendhal.
Flaubert é o escritor da arte difícil, simples e complicada ao mesmo
tempo: complicada pela composição erudita, elaborada, que dá a suas obras um
caráter impressionante de imutabilidade; simples na aparência, de tal forma
simples e natural que um burguês, com a ideia que tem de estilo, nunca poderá
exclamar ao lê-lo “Eis, com efeito, frases bem redigidas”.
Ele adivinha exatamente como Balzac, vê exatamente como Stendhal e como
muitos outros; mas se exprime com mais precisão do que eles, melhor e com mais
simplicidade: apesar das pretensões de Stendhal de mostrar uma simplicidade
que, em suma, não passa de um estilo seco, e apesar dos esforços de Balzac para
escrever bem, esforços que culminam muito freqüentemente neste exagero de
imagens falsas, de perífrases inúteis, de relativos, de “quem”, de “que”, que
culminam no embaraço de um homem que, tendo cem vezes mais materiais do que o
necessário para construir uma casa, usa tudo porque não sabe escolher, e
edifica uma obra imensa, mas menos bela e menos durável do que se tivesse sido
mais arquiteto e menos pedreiro, mais artista e menos pessoal.
A imensa diferença que há entre eles está, efetivamente, toda aí: é que
Flaubert é um grande artista e a maioria dos outros não o é. Ele permanece
impassível acima das paixões que agita. Ao invés de ficar no meio da multidão,
isola-se em uma torre para considerar o que se passa sobre a terra, e, não
tendo mais as cabeças dos homens a limitar-lhe a visão, capta melhor os
conjuntos, tem proporções mais definidas, um plano mais estável, horizontes
mais amplos.
Também constrói sua casa, mas conhece os materiais que deve empregar e
rejeita os outros sem hesitação. Eis porque sua obra é absoluta, e não se
poderia tirar dela uma parcela sem destruir a harmonia total: enquanto se pode
fazê-lo em Balzac, em Stendhal, em outros: e bem perspicaz seria aquele que percebesse
isso.
IV
Ele não pensa, como alguns, que a inteligência e a inspiração, que o acaso e o temperamento sejam suficientes para escrever um livro, que a informação seja inútil e a longa pesquisa desprezível, porque ele é da antiga estirpe das pessoas que sabiam muito. Ao invés de ignorar que o mundo existia antes de 1793, e que se sabia escrever antes de 1830, meditou como Pantagruel sobre todos os doutores de outrora. Conhece a história melhor que muitos professores, porque a aprendeu em muitos livros onde eles não a vão buscar; e, para suas obras, estudou a maioria das ciências, apenas acessíveis aos especialistas. Melhor que os velhos sábios arqueados, ele conhece a genealogia das cidades mortas e dos povos desaparecidos, com seus usos, seus costumes, os tecidos com que se vestiam e as iguarias excêntricas que preferiam. Domina a Bíblia protestante; o Corão, como um dervixe. Sabe como decorrem umas das outras as crenças, as filosofias, as religiões e as heresias. Explorou minuciosamente todas as literaturas, anotando passagens de muitos livros desconhecidos, uns porque são raros, outros porque não são lidos. Conhece os escritores de talento quase ignorados que ocasionaram a decadência dos povos, os comentaristas e os bibliógrafos, os livros profanos assim como os livros sagrados, as vidas dos santos, dos padres da Igreja e os autores que os homens pudicos não ousam nomear. Em certo dia de indignação e de cólera, organizou, para nos comunicar, um volume inteiro com os lapsos dos escritores sem estilo, os barbarismos dos gramáticos, os erros dos falsos cientistas, todas as vaidades e todo o ridículo que passaram despercebidos e com os quais ele esbofeteará o mundo.
V
Os jornalistas não conhecem seu rosto.
Ele acha que é o bastante publicar seus escritos, e sempre manteve sua
pessoa bem afastada da popularidade, desdenhando a publicidade ruidosa dos
panfletos, as propagandas oficiosas e as exibições de fotografias nas vitrinas
de tabacarias, ao lado de um criminoso famoso, de um príncipe qualquer e de uma
jovem célebre.
É acessível apenas a um pequeno grupo de amigos, literatos, pelos quais
é querido como nunca se é por um colega e como raramente se é por um parente,
porque ele suscita afeições profundas à sua volta. Mas, como não expõe sua
pessoa à curiosidade das multidões, ávidas em observar homens conhecidos como
se estivessem em vitrinas, à semelhança de um animal estranho em sua jaula,
lendas circulam em torno de sua casa, e é bem provável que, entre seus
concidadãos, alguns o acusem seriamente de ter abominado a burguesia, o que
seria, de qualquer maneira, tão verdadeiro quanto o famoso jantar de
charcutaria, na casa de Sainte-Beuve, numa Sexta-Feira Santa, jantar que, pela
pena de jornalistas bem informados, mas principalmente bem inspirados, acabou
por tornar-se uma intolerável e enfadonha “lenga-lenga”.
Enfim, para contentar as pessoas que sempre querem ter detalhes
pessoais, eu lhes direi que ele bebe, come e fuma exatamente como elas; que é
alto, e que, quando passeia com seu grande amigo Ivan Turgueniev, eles parecem
um par de gigantes.
De tempos em tempos, entre os escritores que deixarão seu nome para a posteridade, acham-se alguns que conquistam um lugar especial pela perfeição e pela raridade de suas obras. Outros, paralelamente, produzem abundantemente, misturando o raro ao banal, o original ao comum, forçando o crítico e o leitor a um trabalho considerável para separar o que deve permanecer do que deve desaparecer. Mas os primeiros, por uma criação laboriosa e paciente, produzem uma obra absoluta, perfeita no conjunto e nos detalhes. E, se todas as obras desses autores não obtêm junto ao público um sucesso absolutamente igual, há sempre pelo menos um de seus livros que fica na história das letras com o rótulo de obra-prima, tal qual os quadros dos grandes mestres colocados no “Salon Carré” do Louvre.
As pessoas que tudo julgam sem nada saber, e que, assim que aparece um livro de um gênero novo e desconhecido, apressam-se em colocar nele, como um cartaz, a tolice de seu julgamento que acreditam eterno, proclamaram em alto e bom som, quando da publicação de Madame Bovary, que Flaubert era um realista, o que, em seu espírito, significava materialista.
Em seguida, ele publicou Salammbô, um poema inspirado na antigüidade e Saint Antoine, uma quintessência das filosofias; nada mudou; jornalistas competentes o haviam batizado de materialista e materialista ele continuou para os cérebros rudimentares das pessoas bem pensantes.
“Sem estilo, não há livro”, este poderia ser seu lema. Com efeito, ele pensa que a primeira preocupação de um artista deve ser criar o belo; pois, sendo a beleza uma verdade em si mesma, o que é belo é sempre verdadeiro, enquanto que o que é verdadeiro pode nem sempre ser belo. E por belo eu não entendo o belo moral, os nobres sentimentos, mas o belo plástico, o único que os artistas conhecem. Uma coisa muito feia e repugnante pode, graças a seu intérprete, revestir-se de uma beleza independente dela própria, enquanto que o pensamento mais verdadeiro e mais belo desaparece fatalmente nas fealdades de uma frase mal feita. É preciso acrescentar que uma parte do público detesta até a palavra “forma”, como sempre se detesta aquilo que se é incapaz de compreender.
Ele não pensa, como alguns, que a inteligência e a inspiração, que o acaso e o temperamento sejam suficientes para escrever um livro, que a informação seja inútil e a longa pesquisa desprezível, porque ele é da antiga estirpe das pessoas que sabiam muito. Ao invés de ignorar que o mundo existia antes de 1793, e que se sabia escrever antes de 1830, meditou como Pantagruel sobre todos os doutores de outrora. Conhece a história melhor que muitos professores, porque a aprendeu em muitos livros onde eles não a vão buscar; e, para suas obras, estudou a maioria das ciências, apenas acessíveis aos especialistas. Melhor que os velhos sábios arqueados, ele conhece a genealogia das cidades mortas e dos povos desaparecidos, com seus usos, seus costumes, os tecidos com que se vestiam e as iguarias excêntricas que preferiam. Domina a Bíblia protestante; o Corão, como um dervixe. Sabe como decorrem umas das outras as crenças, as filosofias, as religiões e as heresias. Explorou minuciosamente todas as literaturas, anotando passagens de muitos livros desconhecidos, uns porque são raros, outros porque não são lidos. Conhece os escritores de talento quase ignorados que ocasionaram a decadência dos povos, os comentaristas e os bibliógrafos, os livros profanos assim como os livros sagrados, as vidas dos santos, dos padres da Igreja e os autores que os homens pudicos não ousam nomear. Em certo dia de indignação e de cólera, organizou, para nos comunicar, um volume inteiro com os lapsos dos escritores sem estilo, os barbarismos dos gramáticos, os erros dos falsos cientistas, todas as vaidades e todo o ridículo que passaram despercebidos e com os quais ele esbofeteará o mundo.
Os jornalistas não conhecem seu rosto.
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