A primeira vez que o Ulisses, de James Joyce, ganhou as telas
Paul Cadmus. Jerry, 1931. Óleo sobre tela. Museu de Arte de Toledo / reprodução. |
Hoje é comum encontrar registros
das artes plásticas que possam incluir o valioso romance de James Joyce, em
edições das mais variadas. Mas agora o ano era 1931. Ulisses, publicado
pela Shakespeare & Co. nove anos antes, em Paris, continuava censurada em vários países,
incluindo os Estados Unidos e o Reino Unido.
Nessa década imediatamente a
prodigiosa anterior, Paul Cadmus e Jared French já se conheciam intimamente. Os
amantes fizeram um périplo que resultou na concepção e feitura da tela Jerry,
finalizada quando Cadmus chega a Europa em 1931. Esse trabalho é significativo
no quadro criativo do artista estadunidense porque concentra a técnica e o
estilo que o fará reconhecido. Ele próprio considera a pintura como seu
primeiro trabalho da maturidade.
O que chama atenção, além do moço
French no fulgor da sua beleza e a maneira como olha para fora do enquadramento
da arte, é o registro na parte inferior direita da tela: entre lençóis, o rapaz
segura marcando a página, uma edição de 1922 do Ulisses, de James Joyce.
Já voltamos a este detalhe. Primeiro falemos mais sobre esses primeiros
detalhes aqui evidenciados.
Se o moço olha para fora da tela,
olha primeiro para quem o pinta. E a prova está na cumplicidade assumida entre o
olhar do retratado e o de quem o retrata. O olhar de Jerry é intimidador,
o de quem conhece os segredos interiores do outro; é também sedutor e
desafiador. Essas qualidades, nota-se, universalizam-se. Porque agora, essa
personagem nos olha. Nada cobra de nós, mas nos coloca como testemunhas da
troca íntima assumida entre as duas figuras reais implicadas no campo da representação. Jerry nu entre lençóis de uma cama desfeita é um vigoroso testemunho do recém-passado que se lê nesse olhar.
Ora, e o que faz o Ulisses,
nesse campo de mediações dos amantes? Assim como o amor entre os dois homens
era então proibido — crime na época —, a primeira leitura possível da presença do
livro é exatamente a de símbolo do interdito. O livro é feito símbolo, o ponto nodal da tela. Isto é, Cadmus emprega um elemento ilícito óbvio (o
romance de Joyce condenado pelo conteúdo libidinoso) para significar outro: “o amor que não ousa dizer seu nome”,
para recordar os termos do poema “Dois amantes” de Lorde Alfred Douglas, escrito
em setembro de 1892 e publicado na revista de Oxford The Chameleon de
dezembro de 1894 tornados em eufemismo por Oscar Wilde, seu amante, para
designar seu crime pelo qual foi condenado.
Paul Cadmus, sem data. Foto: George Platt Lynes. |
A tela de Paul Cadmus está incorporada ao Museu de
Arte de Toledo, que assim a descreve no seu catálogo:
“Jerry não inclui o
comentário social ou político ou a sátira presente em outras pinturas de
Cadmus; em vez disso, e muito incomum para o artista, revela uma
intimidade e profundidade emocional que pode parecer surpreendente em sua
franqueza inequívoca. Embora a pintura possa carecer de comentários
sociais abertos, a decisão de retratar French segurando uma cópia de Ulisses de
James Joyce não foi inocente. Desde a sua publicação em 1922, o livro foi
controverso, incitando o escrutínio desde os primeiros julgamentos por
obscenidade a longas batalhas textuais. Hoje considerada uma das obras
mais importantes da literatura modernista, em 1931 o livro teria simbolizado
tudo o que esses jovens expatriados estadunidenses consideravam desejavelmente
europeu e de vanguarda.”
Explicitamente — qual a liberdade de criar, imperativa na nova arte — a
liberdade de amar. Essa liberdade em Paul Cadmus é experimentada também pelo hiper-realismo que combina em seu interior elementos de homoerotismo.
Jared foi modelo recorrente do artista. Embora complexa, os dois mantiveram proximidade
mesmo depois do casamento dele com Margaret Hoening, uma amiga em comum.
Além do evidente enlace proibido,
talvez seja válido considerar o extenso labirinto interior desabrochado no
romance de Joyce que nos coloca diante do impasse entre o que somos e o que
mostramos, o privado e o público. A trajetória de Cadmus e French, além de
revelação da liberdade possível para seu amor, foi o de contato com essa dimensão
outra deles mesmos. Ou seja, a matriz do romance também se manifesta na matriz
da própria tela. Ou seja, a arte — sempre ela —
continua a dizer melhor de nós sempre e porque nos instiga a pensar sobre quem
somos é o espaço ideal para repensar nossas próprias limitações.
Jared French, 1938. Foto: George Platt Lynes |
A arte de Jared French especializa-se também no realismo. Mas, ao invés do hiper-realismo, flerta melhor com os componentes do fantástico, sem desconsiderar o interesse de Cadmus pelo nu masculino, ainda que no caso dele, o homoerótico pareça recoberto por certa a-sexualidade das suas figuras. Isso pouco importa. French com os outros dois artistas comentados nesta post padeceram o mesmo calvário nas garras do puritanismo.
Ulisses, para voltar outra vez ao romance e findar as notas aqui apresentadas, aparece em trechos na revista literária dirigida por Ezra Pound, Little Review, em 1918; o poeta que se tornou um célebre propagandista do romance de James Joyce praticou ele próprio alguma censura temendo os olhos da águia; nada adiantou. A coisa só começa a mudar de figura no caso estadunidense com a briga comprada por Bennett Cerf; foi ele quem comprou os direitos no seu país para publicação do romance e instaura uma campanha jurídica pelo fim da censura.
O advogado contratado por Cerf a partir da contrapartida nos direitos autorais do livro caso a liberação se concretizasse, Morris Ernst, montou uma encenação curiosa: a defesa começa a montagem de uma edição especial de Ulisses de tiragem de um exemplar que reunia textos de figuras como Edmund Wilson, Ezra Pound e Ford Madox Ford. Remetida de fora dos Estados Unidos, a ideia era que esse livro fosse contrabandeado e confiscado pela alfândega do país, permitindo, assim, a abertura de uma ação contra o material.
Os planos se fizeram e dois anos depois, passando pelos tribunais, Ulisses pode, enfim ser publicado nas terras do Tio Sam. Esse périplo judicial, é claro, foi a melhor propaganda de divulgação da obra que, espalhada por pontos variados do comércio, chegou a vender logo de cara 5 mil exemplares.
Tudo isso só existiu anos depois de Paul Cadmus realizar o seu Jerry. Mas, toda essa história se faz também de outro relacionamento: o do amor à liberdade e aos livros. Findou-se sendo uma cruzada capitalista, como tudo que cai nas mãos estadunidenses, mas ficamos com a parte melhor dos acontecimentos.
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