Hilda Hilst, por Caio Fernando Abreu



                           
Aos 60 anos de idade, com mais de vinte livros publicados (o primeiro é de 1950) de poesia, ficção e teatro, formada em Direito sem nunca ter exercido a profissão, desde 1967 recolhida à Casa do Sol, um sítio próximo de Campinas, depois de 40 anos de literatura (e, segundo ela, silêncio sobre seu trabalho), há três meses Hilda Hilst caiu como uma bomba nos meios literários brasileiros.

Com a publicação de O Caderno Rosa de Lori Lamby, Hilda renunciou publicamente à literatura dita "séria" - que lhe conferira, por parte do crítico Leo Gilson Ribeiro, o epíteto de "o maior escritor vivo em língua portuguesa" - e decidiu publicar, daqui para a frente, apenas histórias pornográficas. Bem-sucedidas, essas histórias, já em segunda edição por Massao Ohno Editor, serão seguidas por Contos de Escárnio e Maldizer, a ser lançado em setembro, pela Siciliano, e pelo Diário de um Sedutor, a sair em 91.

Passando alguns dias em São Paulo para realizar alguns exames no coração - nada de grave, talvez o coração do poeta esteja apenas cansado -, Hilda Hilst falou com exclusividade para A-Z.

LUCIDEZ
Quanto mais você fica lúcido, mais perigosa também fica a vida. Eu cheguei num determinado momento, depois de repensar, trabalhar e meditar sobre a finitude e o descontentamento do homem, em que tudo se tornou muito terrível, fatal, desesperado.

Depois de trabalhar muitos anos nesses temas, você chega num momento perigoso. Você pode enveredar por caminhos terríveis, e há momentos em que não há mais onde chegar, onde mexer, principalmente se existe uma busca muito avassaladora dentro de você. Depois de ter escrito tudo que eu escrevi, e eu sei que escrevi lindamente, que modifiquei a prosa narrativa, eu tenho plena consciência disso, não aconteceu nada. Fiz uma revolução na língua portuguesa, enfoquei os problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se conhecer. Fiz um lindo trabalho. E não aconteceu absolutamente nada, não fui lida. Houve apenas dois homens que se detiveram em meu trabalho: Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld.

ENGODOS
Não acho que eu tenha que sair pelas ruas falando sobre meu próprio trabalho. Um escritor não tem a obrigação de falar bem, e além disso eu teria que ser uma beleza, fisicamente, porque as pessoas dizem "ih, ela está velha, ih", você viu. Nunca deu certo uma mulher medonha falar, só a Rosa de Luxemburgo, que era medonha e fazia multidões ficarem vidradas diante dela. É um desgaste pessoal enorme: além do dom da palavra, você tem de ser agradável, charmosa, aparecer com uma boa roupa. Tudo isso custa dinheiro, esforço, energia; você tem de dispender essa energia escrevendo, e não se mostrando. Tenho certeza de que, se eu aparecesse, daria certo. Mas eu considero isso um engodo.

PORNOGRAFIA
Não foi a pornografia que me atraiu: foi a leveza. Achei que, para o meu músculo mental continuar ativo, eu devia optar pela leveza. Fiquei mais feliz assim. Eu só me divirto, não sei dar nome a esse riso, não sei se é pornográfico. Escrever livros como O Caderno Rosa modificou basicamente a minha vida: está sendo uma festa para mim. Estou contente lá dentro, começo a escrever e rio muito. Claro que, se isso não me divertir mais, eu vou parar de fazer. Mas vou até onde o meu fôlego de humor permitir, porque tem sido delicioso, para mim, agora, escrever. Era uma grande dificuldade antes, eu tremia diante da página. Então, enquanto for uma coisa feliz, eu vou continuar fazendo esse tipo de literatura.

NUDEZ
Toda essa discussão sobre nudez na tevê e coisas assim parecem coisa vitoriana. E completamente tolo. Penso sempre em Theodor Schroeder, que diz que não existe um quadro ou um livro pornográfico, existe é um olhar diante daquilo. Hoje você morre de rir com O Amante de Lady Chaterley, do Lawrence. Ninguém mais fala aquele tipo de coisa que equivaleria a dizer "deixa-me oscular tua rósea orquídea". Todo mundo tem medo de nomear o corpo humano da cintura para baixo, isso é absurdo.

DROGAS
As únicas drogas que não são tão perigosas são o álcool e o cigarro, talvez a maconha. Tem coisas medonhas, a heroína, aquela coisa que se fuma, o crack. Deviam mostrar os drogados morrendo, como também deviam mostrar os aidéticos morrendo. Deviam mostrar o terror mesmo.

EDITORES
Eles são uns canalhas, os editores, a verdade é essa. Mandei uma caixa deste tamanho ao Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, com tudo que eu tinha escrito. Quando telefonei, ele foi seco. Simpático, educado e tal, mas seco. Entendi logo que ele não estava interessado. Ele, aliás, faz um tipo de coisa que já vem pronta; ele entrega o que já fez sucesso lá fora. O Caio Graco, da Brasiliense, foi a primeira pessoa a quem mandei O Caderno Rosa. Ele me disse ao telefone: "Não posso publicar, é chocante e escabroso". É um absurdo o que o editor faz com o escritor brasileiro. É ridículo, depois de 40 anos de trabalho, você receber como eu recebi por Com Meus Olhos de Cão, 30 mil cruzados em quatro anos. Eles não têm nenhuma vontade real de que o escritor apareça. É uma máfia. Parece que você tem de chupar o pau do editor, ser amante do amigo, uma loucura.

IMPRENSA
Aquela matéria na Folha de São Paulo foi desagradabilíssima. Nenhum verdadeiro escritor escreve por fama ou dinheiro. O Camarada escreve por compulsão interior; nós somos uns obsessivos. Mas, de repente, numa cólera enorme, você deve desejar fazer alguma coisa para chamar atenção - não para você, mas para seu trabalho. Por que as grandes revistas não dão nada sobre literatura brasileira? Você pode ficar pelada amanhã na Barão de Itapetininga, como um gorro vermelho, que, se for um escritor brasileiro, nem assim você sai na Veja. Outro dia saiu no Caderno 2 do Estadão uma porção de críticos falando sobre os melhores livros do mundo. Eles citaram basicamente autores estrangeiros - Joyce, Dostoievski, Stendhal -, mas nenhum deles citou a Clarice Lispector. Eu liguei para o Luiz Carlos Lisboa, no Jornal da Tarde, e falei: "Por que o JT não deu nada sobre a Lori Lamby?" Ele disse: "Hilda, São Paulo é uma cidade pudica". Muito bem, mas quando saiu a antologia de poemas eróticos organizada pelo José Carlos Paes, o Luiz Carlos Lisboa fez um artigo deste tamanho contando a história do erotismo a partir de Brahma, na Índia, e tal. E a antologia do José Paulo, por favor... erotismo é outra coisa - aquilo é pura bandalheira. Bandalheira da grossa.

PACTO
Parece que os críticos adoram escritor morto. Você tem de morrer para ser lembrado. Eu até propus à Lygia Fagundes Telles: "Você atira em mim e eu atiro em você". Pode ser que assim falem da gente.

ESCRITORA
Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem de ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir na cara. Há anos a Heloneida Studardt me disse: "Hilda, se você fosse um homem, escrevendo a prosa que você escreve, você seria conhecida no país inteiro."

OBSCENIDADE
Quando foi publicada a minha novela Kadós, o Massao Ohno, que era o editor, mandou para uma gráfica que se chamava Santa Maria não sei do quê. Quando vieram as provas, sempre que aparecia a palavra cu, eles não punham. Aparecia co, ou ca, ou ci. Cu mesmo, nunca. O que há de errado com o cu, eu me perguntava. Eles achavam absurdo, deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas Napalm. As verdadeiras obscenidades, as políticas, ninguém toca nisso.

SIMPÓSIO
Ano passado eu fui nuns debates, uma coisa para educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: "Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia? Criou-se um problema horrível. Sim, a mim angustia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso - depois disso, nada.

UNICAMP
Tenho sobrevivido nos últimos anos graças à Unicamp. A Unicamp tem sido minha mãe, com o projeto Escritor Residente. Não sei se é a única, mas sei que foi a primeira universidade brasileira que fez esse projeto. A universidade devia ajudar mais o escritor brasileiro.

INTELECTUAL DO ANO
Essa história foi muito engraçada. Acho que os membros da UBE (União Brasileira de Escritores) me escolheram pensando que não ia dar certo, claro que eu ia ter uns dois votos contra uns 300 do bispo Dom Paulo. Mas eu fui dando certo, ninguém sabe por que, e eu achando um absurdo - meu Deus, eu e o clero. Daí parece que houve alguma coisa terrível, parece que, pela Cúria, o Dom Paulo tinha de ganhar de qualquer jeito. Quando eu vi que não saía mais nada na imprensa, eu pensei 'bom, acho que ganhei, porque comigo é sempre assim, um silêncio absoluto'. Mesmo tendo perdido, agradeço a homenagem e tal, mas dá um pouco a impressão que 'intelectual do ano', é porque você ficou intelectual naquele ano, foi alfabetizada e ficou cultíssima...

ALEMÃES
Não sei bem por que, mas eu vejo o humor imediatamente nos alemães. Numa das histórias que escrevi, uma das partes mais engraçadas é um diálogo entre uma mulher e um alemão chamado Otto. Ele diz assim: 'non gostarr, senhora Eulália, do jeito que senhora chuparr o meu pau'. E ela: 'mas por que, seu Otto?'. E ele: 'Porque a senhorra fazerr cara de nojo, no gostarr'. E a mulher: "Bom, seu Otto, eu vou tentar fazer melhor e tal'. O alemão tem alguma coisa de hilário. Veja só vagina, em alemão, não lembro agora, mas é uma palavra deste tamanho, uma coisa absurda.

ANTI-AIDS
Eu acho que o livro pornográfico é uma coisa anti-Aids. Lendo literatura erótica, você pode voltar a esse hábito solitário que várias pessoas extraordinárias acharam extraordinário também. Porque tem essa coisa católica, desde criança você ouve a mãezinha falando para o filhinho 'não se masturbe, meu bem, você vai morrer'. É o contrário: acho formidável hoje você ler um livro pornô e se masturbar. Não é melhor do que pegar Aids e morrer?

CAZUZA
Acho terríveis essas declarações que o Cazuza fazia: 'A droga me abriu a cabeça', 'A Aids é contra a sacanagem', 'Não sou um aidético casto'. Se eu ficasse aidética, me poria de joelhos no deserto, tomando água e só. Eu tive contato pessoal com a Aids através do meu sobrinho, que morreu em fevereiro. É horrível a pessoa morrer de Aids; não pode ficar essa imagem engraçada, porque é uma coisa horrenda. Esses tipos de frases do Cazuza são um absurdo porque você não pode brincar com essa coisa. As pessoas não podem pensar que é brincadeira.

LITERATURA
A literatura tem de refletir o cara que está escrevendo, como ele é diante do mundo. A única forma de você passar alguma coisa real para o outro é já ter vivenciado aquilo, realmente. Você não pode mentir, quando escreve. A única coisa que não é permitida na literatura é mentir.

OUTROS ESCRITORES
Existem ótimos escritores por aí. Existe, por exemplo, o João Silvério Trevisan, que é de primeira linha.Vagas Notícias de Melinha Marchiotti é excelente. Esse ensaio dele, Devassos no Paraíso, é o melhor ensaio que já li sobre homossexualismo. Ele demorou oito anos trabalhando, e não aconteceu nada, ele é recusado pelas editoras. Por que essa moça, Ana Miranda, conseguiu ser editada? Todo mundo já falou lindamente sobre Gregório de Mattos... O que acontece é que escritor brasileiro é um coitado. Os editores não aceitam o autor pensando, o autor brasileiro não pode pensar. Aqui está cheio de escritores bons para os editores investirem.

JECA-PORNÔ
Adoro essas histórias que ando escrevendo com personagens rurais, ou que não sabem falar direito o português. É o que eu chamo de jeca-pornô, como a história daquele moço chamado Edernir, que está na Lori Lamby. Eu tenho um dicionário ótimo de palavrões, que o meu médico dermatologista me deu, dum cara chamado não sei o quê Souto Maior. É lindo, você precisa ver tudo que tem lá. Todos os sinônimos fantásticos de crica, vagina...

PORNOGRAFIA II
Ninguém chegou a uma conclusão sobre o que é pornografia. Me pergunto se seria o ultraje ao espírito do homem, seria uma coisa assim? Talvez o obsceno profundo, que seria um enfoque completamente diferente, seja aquele em que a lucidez do personagem é tão grande que a coisa fica obscena. Mas essas brincadeiras que tenho escrito, você não pode dizer que sejam obscenas ou pornográficas. E não entendo por que muita gente ficou tão ofendida com a Lori Lamby. Eu dei para Wesley Duke Lee ler, que eu julgava um homem do mundo, aberto e tudo, e ele disse: 'É horrível, Hilda. Que coisa horrorosa, é um lixo o que você escreveu'. Tenho um amigo, articulista de um grande jornal, que leu os Contos de Escárnio e Maldizer e falou: 'Não publique isso, porque é perigoso'. Não entendo, Aqueles contos da Anaïs Nin, por exemplo, são finos demais, delicados. Não são para tempos de Aids, as coisas têm de ser mais pesadas, para você ter aquele prazer que, lendo Anaïs Nin, você não tem.

LÍNGUA PORTUGUESA
Eu sei que escrevo muito melhor que muitas mulheres européias e americanas. Mas quem é que fala o português? Bem, milhões de pessoas falam, mas ninguém lê nessa língua. Lá em Goa, Guiné-Bissau, Moçambique, todo mundo deve falar na feira: quanto custa esse tomate? e essa alface? O abacate está bom? Não adianta milhões de pessoas falarem, se ninguém lê. E até no caso de você querer ler um livro erótico a dois para se masturbar com o seu parceiro, vai ser dificílimo. Naturalmente, você teria de ir para a Europa ou Estados Unidos, porque, com 70% de analfabetos por aqui, vai ser difícil encontrar não só um parceiro, mas ainda por cima que leia.


* "A Festa erótica de Hilda Hilst", copiado da revista A-Z, São Paulo, 1990, n.126

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler