Cora Coralina, de Goiás
Por Carlos
Drummond de Andrade
Este nome
não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina.
Cora
Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois
desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona
Janaína moderna.
Cora
Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador,
as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado.
Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua
invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada.
Na estrada
que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os
miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária.
Escutemos:
“Vive dentro
de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando
pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro
gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira. Pimenta e
cebola. Quitute bem feito”. “Vive dentro de mim/ a mulher proletária. / Bem
linguaruda, / desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/ a mulher da
vida. / minha irmãzinha... / tão desprezada, / tão murmurada...”.
Todas as
vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o mesmo sentimento de quem abençoa
a vida. Ela se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção,
exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua
consciência da natureza. Tanto escreve a “Ode às Muletas” como a “Oração do
Milho”. No primeiro texto foi a experiência pessoal que a levou a meditar na
beleza intrínseca desse objeto (“Leves e verticais. Jamais sofisticadas. /
Seguras nos seus calços / de borracha escura. Nenhum enfeite ou sortilégio”).
No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as coisas atribui ao milho
estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece.
/ sou o cocho abastecido donde rumina o gado. / sou a pobreza vegetal
agradecida a vós, Senhor.”.
Assim é Cora
Coralina: um ser geral, “coração inumerável”, oferecido a estes seres que são
outros tantos motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente,
o presidiário, a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas
sobre a enxada, o pouso de boiadas, o trem de gado, os bonecos e sobrados, o
prato azul-pombinho, último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho
extinto da família. Este prato faz jus a referência especial, tamanha a sua
ligação com usos brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Às
vezes, ia de empréstimo / à casa da boa Tia Norita. / E era certo no centro da
mesa / de aniversário, com sua montanha / de empadas bem tostadas / No dia
seguinte, voltava, / conduzido por um portador/ que era sempre o Abdenago,
preto de valor, / e, melhor cheirinho / de doces e salgados. / tornava a
relíquia para o relicário...”.
Relicário é
também o sortido deposito de memórias de Cora Coralina. Remontando a infância,
não a ornamenta com flores falsas: “Éramos quatro as filhas de minha mãe.
/ Entre elas ocupei sempre o pior lugar”. Lembra-se de ter sido “triste,
nervosa e feia. / Amarela de rosto empalamado. / De pernas moles, caindo à toa”.
Perdera o pai muito novinha. Seus brinquedos eram coquilhos de palmeira,
caquinhos de louça, bonecas de pano. Não era compreendida. Tinha medo de falar.
Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a tristeza infantil
não lhe impediu, antes lhe terá preparado a percepção solidária das dores
humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma antes
artesanal do que acadêmica.
Assim é Cora
Coralina, repito: mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na sua
solidão e que pode ser contemplado em sua pureza no livro Poemas dos
Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou fazendo comercial da
editora, em época de festas. A obra foi publicada pela Universidade Federal de
Goiás. Se há livros comovedores, este é um deles. Cora Coralina, pouco
conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou recentemente pelo Rio
de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil,
como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu gostaria que a
homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos uns aos outros
sem estabelecermos critérios discriminativos ou simplesmente classificatórios.
Cora
Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesma se define: “Mulher sertaneja,
livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na Gleba. Mulher terra. Nos
meus reservatórios secretos um vago sentimento de analfabetismo”. Opõe à
morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui e
gosto de ter sido. Mulher operária”.
Cora
Coralina: gosto muito deste nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza,
como no verso de Bandeira.
* Este texto
foi publicado no Caderno B, do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
27 de dezembro de 1980, p.7.
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