Rememorando Auta de Souza

Por Pedro Fernandes




Que tempo estive não sei!
Do mundo inteiro distante,
O jardim naquele instante,
Foi a terra que eu amei.

(fragmento do poema Goivos, Auta de Souza)

Há 106 anos, no dia 7 de fevereiro, falecia, vítima da dama branca – assim era como chamavam a tuberculose – a poetisa potiguar Auta de Souza. Filha de Eloy Castriciano de Souza e Henriqueta Leopoldina de Souza e irmã de dois políticos intelectuais, Henrique Castriciano e Eloy de Souza, Auta nasceu em Macaíba em 12 de setembro de 1876; tinha então exatos 24 anos quando da sua morte. Falando em morte, essa foi fiel em torno de sua existência, uma vez que sua mãe morre quando ainda só tinha três anos e seu pai quando tinha cinco anos de idade, levando-a de Macaíba, sua terra natal, para morar com seus avós maternos, em Recife, sendo que, seu avô havia falecido também no mesmo ano em que o pai morrera, 1882. Ainda mais tarde outra vez ela, a morte, vem marcar-lhe sua vida e talvez essa marca ela tenha carregado consigo durante toda sua vida: seu irmão mais novo, Irineu Rodrigues de Souza, então com doze anos, foi incendiado na sua frente devido a um acidente com um candeeiro.

Estudou no Colégio Vicente de Paulo no Recife, instituição mantida por uma fundação francesa vicentina e lá ficou até os catorze anos, quando adquire tuberculose e volta para o Estado numa romaria que a leva por lugares diversos, como Angicos, Nova Cruz, Serra da Raiz (PB) etc. sempre em busca de bons ares. A educação recebida por Auta nesse colégio tem sido muitas vezes utilizada como justificativa à sua intelectualidade, quando muito se sabe é que as meninas órfãs recebiam apenas uma educação que primava pela moralização e pelo caráter religioso, ressaltando para o convívio social exigido para uma senhora burguesa; na verdade, sua formação intelectual aprimorou-se sozinha, tornou-se autodidata, não descartando, que ela teve a sorte de viver com os irmãos que desde cedo se mantinham em contato permanente com as produções literárias contemporâneas ao seu tempo.

Como poetisa norte-rio-grandense foi a que mais ficou conhecida fora do Estado. Sua poesia, de um romantismo ultrapassado para alguns críticos literários e/ou com leves traços simbolistas para outros, circulou nas rodas literárias do país despertando interesses e foi fartamente incluída em antologias e manuais de poesia das primeiras décadas. O único livro publicado, Horto, advindo do manuscrito Dhálias, data de 1901 e vem prefaciado pelo poeta Olavo Bilac; outras edições se seguiram após esta, inclusive uma edição francesa, publicada em 1910 e outra, em 1970, pela Fundação José Augusto, prefaciada por Alceu Amoroso de Lima, o Tristão de Ataíde.

Há quem diga que a obra da poetisa encontre-se contaminada pelas experiências vividas chegando a comprometer o lirismo e o valor estético de seus versos, o que não é bem assim. Em toda e qualquer obra de um poeta subjetivo, temos manifestada uma personalidade muito mais coerente e onipresente do que a da pessoa tal qual a vemos ou conhecemos em situações cotidianas; ainda, toda visão de que a arte é auto-expressão pura e simples, transcrição de sentimentos e experiências pessoais é falsa. Não diferente em Auta. Mesmo havendo uma relação entre a sua poética e a sua vida enquanto poetisa, isso não deve ser interpretado com o sentido de que sua poética é mera cópia da sua vida, ainda mais que, a obra literária só pode ser considerada pessoal metaforicamente.

Ao longo dos mais de cento e quarenta poemas que compõem a sua obra enxergamos uma poetisa submersa numa luta com as palavras e com a vida; sua linguagem poética, assim como se é de praxe ao gênero poesia, está permeada de imagens, começando e terminando com as figuras mais simples, como bem definiu Olavo Bilac, no prefácio à sua obra: “um livro de uma tão simples e ingênua sinceridade (...) o labor pertinaz de um artista, transformando as suas idéias, as suas torturas, as suas esperanças, os seus desenganos em pequeninas jóias.” A temática mais cantada em seus versos é a morte e a infância, passa e perpassa, parafraseando Alceu Amoroso no prefácio à terceira edição do Horto, uma dupla sombra, negra e branca de dor e de angelitude.

De modo convencional não podemos definir apenas e exclusivamente o fazer poético de Auta como aquele que rompe com modo convencional de perceber, de ver, de julgar, aquele no qual T. S. Eliot define como o que faz ver às pessoas, o mundo com os olhos novos ou descobrir novos aspectos deste, mas a poetisa carrega em seu universo lírico o uso da palavra semantizada por natureza, faz re-emergir da sua fonte – a vida – sensações, imagens, idéias, tudo num constante interagir com tudo, conforme nos coloca Gaston de Bachelard em sua Poética do Devaneio. E mais, a obra em si, Horto, possui, consoante Câmara Cascudo na única biografia acerca da autora, Vida breve de Auta de Souza, “um tom sonoro e de orgulho para o nosso ainda provincianismo sedento de notoriedade” da época.

Outra opinião que circula na crítica à obra da poetisa é o seu valor místico, a ponto de Auta de Souza ser colocada como espírito desencarnado na crença espírita, tendo inclusive uma obra psicografada em 1931, por Chico Xavier, Parnaso de além túmulo. Quanto ao místico em Auta de Souza, Câmara Cascudo contra-argumenta de que não há nada em sua obra que a enquadre nesse aspecto místico, uma vez que é público e notório o espírito profundamente religioso, a sua devoção e ligação à doutrina do catecismo e da imitação. Ainda mais que podemos levar em consideração o aspecto de sua educação, pautada nas orações diárias, nas comemorações religiosas, nas leituras doutrinárias e de caráter devocional.

No mais, a obra de Auta de Souza, apesar de resumida apenas num livro, carrega uma poesia do mais belo esplendor, dentro da produção literária do Estado na época. Simples e profunda, dotada de uma suavidade, de uma elegância e de uma beleza que perpassa o fio das palavras; dotada de uma musicalidade, de beleza na colagem das imagens, de uma angústia existencial além-horto e a sua busca por amparo no religioso, no sagrado visitado por uma carga de sensualidade, num eu-lírico enlevado, em êxtase, frenesi, gozo religioso; a poesia de Auta constitui num espaço contínuo de investigação psíquico-literária.

Rememorar sua poesia é necessário a fim de engrossar essa pequena e tímida espécie de coro crítico ou pelo menos recobrar a atenção para sua obra e para a Literatura do Estado que anda numa penumbra ainda. Ao deixar envolver-se por essa voz lírica de devaneio e êxtase espiritual poético recobrar a dimensão segunda em que se apóia a linguagem humana conforme Edgar Morin, simbólica, mística e mágica, isto é, é mergulhando na poesia de Auta de Souza que entenderemos o halo que ela enquanto escritora carrega em torno da palavra a fim de traduzir sua evolacidade, em verdade e subjetividade, intrinsecamente ligadas, imbricadas; é uma tentativa hostil de romper a barreira semântica que comanda o poema.

Sem dúvidas, ainda é possível explorar sua vida, bem como sua poética, buscar novas posições, novas leituras, daquela que, através de seus versos, incutiu uma essência do seu mundo e do mundo inteiro, num jardim distante, numa dimensão temporal que vai além da dor, do sofrimento, da própria morte como uma espécie de redenção em tempos não justapostos na terra que amou.


* Texto publicado no Caderno Domingo do dia 9 de dezembro de 2007. 

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