David Mourão-Ferreira: o homem e a obra
Por Teresa
Martins Marques
David Mourão-Ferreira. Foto: Nuno Calvet |
David
Mourão-Ferreira nasceu em Lisboa, em 24 de Fevereiro de 1927, tendo falecido
nesta mesma cidade, em 16 de Junho de 1996. Personalidade multifacetada, foi
poeta, ficcionista, tradutor, dramaturgo, ensaísta, cronista, crítico
literário, conferencista, professor. Licenciou-se em Filologia Românica (1951)
com a tese «Três Coordenadas na Poesia de Sá de Miranda», pela Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. Integrou os corpos redactoriais das revistas Seara Nova e Graal (1956-1957). Teve a seu cargo a rubrica de crítica de poesia
no Diário Popular (1954-1957). A
partir deste ano exerceu funções docentes na Faculdade de Letras como
assistente, tendo desenvolvido um excepcional trabalho de organização e
regência da recém criada cadeira de Teoria da Literatura, onde desenvolve
estudos pioneiros em Portugal, sobre o new
criticism. Em 1963 o seu contrato foi rescindido, vindo a ser novamente
reconduzido a partir de 1970, leccionando Literatura Portuguesa e Francesa,
tendo-lhe sido concedido, nos últimos anos de vida, o estatuto de Professor
Catedrático Convidado. O seu magistério marcou sucessivas gerações de
estudantes, muitos dos quais se contam hoje entre as mais prestigiadas figuras
da universidade portuguesa e do ensaísmo literário.
Desempenhou
ainda as funções de Secretário Geral da Sociedade Portuguesa de Autores
(1965-1974), dirigiu o diário A Capital
(1974- 1975). Exerceu em três governos o cargo de Secretário de Estado da
Cultura (1976-1979), foi vice-presidente da Association Internationale des
Critiques Littéraires (1984-1992), presidente da Associação Portuguesa de
Escritores (1984-1986) e do Pen Club Português (1991). Foi também director do
Serviço de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundação Calouste Gulbenkian
(1981-1996), bem como da revista Coló-
quio-Letras (1984-1996), propriedade da mesma instituição. Sócio efectivo
da Academia das Ciências de Lisboa e sócio-correspondente da Academia
Brasileira de Letras. Membro titular da Académie Européenne de Paris, viria
também a ser agraciado com as mais importantes condecorações de Portugal, do
Brasil e da França. O nome de David Mourão-Ferreira ficaria também ligado ao de
Amália Rodrigues, que interpretou cerca de duas dezenas dos seus poemas.
Como autor,
D. M-F. publica os seus primeiros artigos em 1942 (cf. MARQUES, 1999b), no
jornal Gente Moça, órgão dos
estudantes do Colégio Moderno. As primeiras poesias viriam à luz nas
prestigiadas páginas da Seara Nova,
em 1945. Todavia, é pelo teatro que o seu nome começa a aparecer com alguma
regularidade nos jornais, tendo colaborado como autor e actor entre 1948 e
1951, sob a direcção de Gino Saviotti, no Teatro-Estúdio do Salitre, o qual
constituiu, sob a bandeira do “essencialismo”, o mais inovador movimento de
Teatro Experimental dos Anos Quarenta. Aí foram encenadas duas das suas obras:
o poema dramático Isolda e a comédia Contrabando, respectivamente em 1948 e
1950. Ainda neste ano, funda com António Manuel Couto Viana e Luís de Macedo,
as folhas de poesia Távola Redonda,
em cujas edições daria à estampa o seu primeiro livro de poesia – A Secreta Viagem.
D. M.-F. foi
um dos mais fecundos teorizadores da Távola
Redonda (MARTINHO, 1996) defendendo o equilíbrio, a coerência e a proporção
entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas, procurando conciliar
os valores da tradição e da modernidade, revalorizando o lirismo, recusando a
imediatez da inspiração e o aproveitamento da poesia para fins utilitaristas,
demarcando-se do neorealismo. Este ideário ver-se-ia plasmado na sua futura
Obra, a qual, do ponto de vista técnico, representa a feliz aliança da força
criadora e da construção rigorosa, sendo geralmente considerado como detentor
da melhor oficina poética da sua geração.
Até à
publicação de Um Amor Feliz, em 1986,
D. M.-F. insistia em dizer que tinha consciência de que a sua Obra não teria um
vasto público, mas que, em contrapartida, possuía leitores fiéis. Este romance
viria aumentar-lhe o número desses leitores, continuando a ser objecto de
sucessivas reedições. No dia seguinte à conclusão do romance, escreve num
caderno de bolso: “Um Amor Feliz: um
cântico de amor e de paixão erótica; uma sátira política a certa nova sociedade
portuguesa; um romance do romance em que se vêem acareados o narrador e o
autor; um ajuste de contas comigo mesmo.” Se pensarmos que desde os dezoito
anos deixara de lado sucessivos romances inconclusos, entenderemos que contas
seriam aquelas, que assim ajustou. Artur Ramos realizou a partir deste romance
uma série televisiva de quatro episódios, apresentada pela RTP em 1990. Anteriormente,
de duas das quatro narrativas de Gaivotas
em Terra tinham sido extraídas duas longas metragens: Fado Corrido (1964) por Jorge Brum do Canto e Sem Sombra de Pecado (1983) por José Fonseca e Costa.
Atentando
nas sucessivas reedições da sua poesia, verificaremos que os volumes constituem
organismos vivos, coerentes, nos quais os diversos textos se inter-respondem,
contando “histórias” diferentes, consoante as seriações que o autor lhes
conferiu, em diversas edições, nomeadamente nas recolhas poéticas, obedecendo a
criteriosas reordenações poemáticas em círculos (Lira de Bolso, As Lições do
Fogo), ou em ciclos (Sonetos do
Cativo), jogando com a simbologia dos números quatro, sete e nove, de clara
reminiscência pitagórica, cabalística ou dantesca. O ritmo, a musicalidade, a
mestria das rimas assonantes, o superior domínio da metáfora e da aliteração,
coadjuvadas pela antítese, ou mesmo pelo paradoxismo conferem uma personalidade
singular à poesia davidiana, de perfeito recorte clássico, obedecendo, todavia,
a princípios sui generis nomeadamente
ao nível da metrificação, fazendo de D. M.-F. porventura, o mais clássico dos
nossos poetas modernos.
A obra
davidiana edifica-se sobre um complexo sistema de vasos comunicantes,
orquestrados pela memória interna da obra, em contraponto de harmonizações
sinfónicas ou diafónicas. Com efeito, os elementos itinerantes (COELHO, 1974)
constituem um dos aspectos mais interessantes da implícita ou explícita rede
comunicante, como é, nomeadamente, o caso das obras poética e ficcional Os Quatro Cantos do Tempo e As Quatro Estações, ou do poema
intitulado «Romance das Mulheres de Lisboa no Regresso das Praias», cujo
primeiro verso – “Em terra, tantas gaivotas!” – inverte e subverte o título do
seu primeiro volume de ficção narrativa, considerado como de novelas, mas que
resultou de um trabalho de reconstrução de um anterior romance, razão por que
certas personagens transitam de umas narrativas para as outras, em completa
subversão da linearidade temporal do primitivo texto.
O onirismo
d’Os Amantes e Outros Contos encontra-se
inscrito em embrião n’A Recordação de
Panflakaio (MARQUES, 1997). “Sonho que sonho o que sonho” é um verso da
poesia “Argumento”, inserta em Os Ramos
Os Remos, a qual traduz precisamente a situação onírica que sustenta a
arquitectura do conto “Os Amantes”. Conquanto seja o erotismo o filão mais
reconhecido na Obra de D. M.- F., esta está longe de se reduzir àquela temática.
Outras linhas se entrecruzam na memória, na meditação sobre a morte, no culto
dos lugares, não apenas como sagradas relíquias do tempo, mas ainda como
espaços de reflexão do sujeito, em processo de perda.
*
E por vezes
as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
*
Parafraseando
um conhecido poema, de Matura Idade –
“E por Vezes” – (justamente seleccionado como símbolo davidiano para a
antologia Rosa do Mundo –2001 Poemas
para o Futuro), a angústia torna-se obsidiante imagem de fundo, que traz para o
primeiro plano um sujeito que se vê através do olhar feminino e que, por vezes,
se encontra e que, por vezes, se perde. Tântalo que não sacia a sede – destino
que um deus lhe segredou. Fulguração do instante, revolta pelo fogo que se
extingue, que não dura, mas que resiste, sendo apenas o que resta do desejo de
eternidade. Na poesia davidiana o sujeito não ama porque existe, mas para que
exista. E existe para sentir, por vezes, o prazer de se dissolver e ciclicamente
renascer. As formas de diluição no mar – água primordial, por vezes metáfora da
mãe e memória do tempo antes do tempo, ou as formas de diluição em terra –
evasão, viagem, mudança – serão ainda uma outra forma de perdição e
renascimento de quem se procura procurando, por vezes ganhando e, por vezes,
perdendo ao jogo da vida. Condição trágica de quem ironicamente fica preso à
busca da liberdade, como um Ícaro condenado aos trabalhos de Sísifo: ”há-de
tudo prender-se aereamente solto”, lemos na “Ars Poetica”, inserta em Do Tempo ao Coração. Os Ramos Os Remos inscrevem, a partir do
título, a fixidez e a flutuação. Ramos da árvore que prende, remos do barco que
deriva.
De uma outra
forma, mais directa, de acordo com o registo escolhido, o sujeito assumirá a
condição de errância na autobiografia fragmentária acoplada a um livro de
aforismos sobre a sedução que muito oportunamente intitulou Jogo de Espelhos: “Sente-se, desde
sempre, mais estável no movente que no fixo” (fragmento II). David deixa em
“Testamento” (Órfico Ofício) a fluidez
do verbo, a instabilidade do sentido, o calor da lava e o frio da cinza. O nada
transmutado em tudo, o nada retomando a cor do infinito na «Ladainha dos
Póstumos Natais» (Cancioneiro de Natal).
Como
ensaísta, cronista e crítico literário, deixou-nos ainda dezassete
clarividentes volumes, entre os quais o intitulado Discurso Directo que David classificava como um indirecto
auto-retrato e por isso considerava o mais indicado para quem quisesse
principiar a conhecê-lo, para além da obra de divulgação e tradução intitulada Imagens da Poesia Europeia, elaborada a
partir de um programa homónimo que, como outros de sua autoria, intitulados Miradouro, Momento Literário, Música e
Poesia, Hospital das Letras, lhe granjearam grande popularidade na Rádio e
na Televisão. Vozes da Poesia Europeia I,
II, III, compilam a maior parte do seu trabalho como excepcional tradutor,
sendo que cada texto traduzido se metamorfoseia de forma original num autêntico
poema de David Mourão-Ferreira.
A comunidade
literária soube reconhecer o seu valor atribuindo-lhe onze prémios literários:
três de Poesia, dois de Conto e Novela, quatro de Romance, um de Teatro e ainda
um outro de Ensaio. As obras de D. M.-F. encontram-se traduzidas nas principais
Línguas Europeias.
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