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Caixa 19, de Claire-Louise Bennett: o percurso de um experimentalismo trôpego

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Por Amanda Fievet Marques Claire-Louise Bennett. Foto: Patrick Bolger     Publicado em 2021 com o título Checkout 19 , o romance da escritora inglesa Claire-Louise Bennett saiu neste ano pela Companhia das Letras como Caixa 19 , com tradução de Ana Guadalupe. O romance é extremamente irregular quanto à qualidade de sua composição. Ele se constrói com uma narrativa não-linear — embora existam fios que se entremeiam, e motivos que retornam — das reminiscências da narradora-escritora.   Desde o primeiro capítulo, “Uma grande bobagem”, fica claro que a repetição e a digressão são os grandes procedimentos estruturais. A repetição opera, aqui, tanto como explicitação do hábito da narradora, leitora desde menina, que conta e reconta seus costumes juvenis de leitura na casa de seus pais, seus verões no pátio a ler, seu fascínio pelos livros proibidos de sua mãe, quanto como recurso formal. Repetições lexicais, verbais, que ora conferem um tom de oralidade à narrativa, ora realiz...

Um homem diferente subverte o show da representação

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Por Alonso Díaz de la Vega Há alguns anos, com a ascensão de movimentos sociais que reivindicavam gênero e raça nos Estados Unidos, o slogan “A representação importa” tornou-se popular. Em um esforço para se adaptar às tendências de consumo, Hollywood tentou — sem muita convicção e por um tempo, apenas — integrar pessoas que antes eram rejeitadas pelo sistema: alguns filmes a cada ano começaram a ser dirigidos, escritos e estrelados por afro-americanos, mulheres e, ocasionalmente, descendentes de imigrantes asiáticos, mas continuaram a ser produzidos e distribuídos por homens brancos, que lucravam mais. A prática, questionável por si só, já está em declínio e, em seu auge, teve uma exceção notável: a porta foi quase completamente fechada para pessoas com deficiência, exceto por O som do silêncio (2019) e CODA (2021), vencedores do Oscar que, com personagens atraentes (inclusive fisicamente) e lições sobre como viver plena e inspiradoramente com a deficiência auditiva, evitaram assust...

Nota sobre Sontag (II): como ela me ensinou a pensar

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Por A. O. Scott * Susan Sontag. Foto de Peter Hujar usada na contra-capa da primeira edição de Contra a interpretação .  Passei toda a minha adolescência em uma pressa terrível de ler todos os livros, assistir todos os filmes, ouvir todas as músicas, ver tudo em todos os museus. Essa obsessão exigia muito esforço à época, quando não existia streaming e tudo tinha que ser caçado, comprado ou emprestado. Mas essas mudanças não são o assunto deste ensaio. Os jovens culturalmente famintos sempre foram insuportáveis e incomuns, muito embora eles tendam a investir em ser diferentes — em aspirar (ou fingir) algo mais profundo, mais elevado do que o comum. Com seriedade, o olhar contido da vida adulta mostra seu lado ridículo, mas o desejo que move isso não é brincadeira. É uma fome não só por conhecimento, mas por um tipo particular de experiência. Dois tipos, na verdade: a experiência específica de encontrar um livro ou obra de arte, e também a experiência futura que aguarda por você ao...

Deixa disso, camarada, me dá um clássico

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Por Rafael Bonavina Figl-Migl. Foto: Guy Johansson I   A abertura deste poderia ser uma expressão como “os anos passam, os bons livros ficam”, porém cada vez mais vemos livros sendo proibidos, tirados de circulação, censurados e até destruídos. Então será que os bons livros de fato ficam ou apenas estão ficando ? Esse apagamento do passado parece marcado pela suspeição e pelo medo, como uma tumba que, aberta, pode revelar algum tipo de maldição ou vírus desconhecido. Em certo sentido, podemos dizer que é uma parte importante do trabalho dos intelectuais a preservação dessa fortuna cultural que se encontra em constante xeque.   No entanto, aceitar a ideia de uma literatura canônica sem quaisquer ressalvas seria ignorar as importantes discussões que vêm sendo feitas nas últimas décadas acerca das bases excludentes desse conceito. Diversas culturas são excluídas disso que se convencionou chamar de cânone, criado como uma espécie de legitimação do domínio cultural eurocêntric...

Boletim Letras 360º #652

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DO EDITOR   Na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você tem desconto e ainda ajuda a manter o Letras . Can Xue. Foto: Simone Padovani LANÇAMENTOS   Uma das mais proeminentes escritoras chinesas contemporâneas, Can Xue — que é com frequência comparada a Franz Kafka, pois, assim como ele, construiu uma obra fundada em premissas próprias, capazes de levar sua literatura a lugares aonde nenhum outro escritor chegou — tem sua primeira obra publicada no Brasil .   Finalista do International Booker Prize, Histórias de amor no novo milênio é seu romance mais celebrado de Can Xue e conta a história onírica e bem-humorada de uma miríade de mulheres insaciáveis que estão em busca de prazer e do direito à felicidade numa cidade industrial precária. Entre elas está Niu Cuilan, uma mulher independente, viúva e almoxarife. Um de seus hobbies é ir a uma estância termal que oferece “serviços especiais”. Lá conheceu seu amante, Wei Bo, que é casado e e...

“Carga viva” e a vida que resiste

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Por Afonso Jr Ana Rüsche. Foto: Arquivo pessoal da escritora (Reprodução)   Cheguei bem cedo ao lançamento para comprar o livro sem fila. Ana Rüsche, a autora, a quem eu já havia entrevistado antes, nos recebe com um sorriso e diz: “Deixa eu assinar agora, porque depois...” Eu faço uma piada meio descabida: “E se um milhão de pessoas aparecem?” (em minha defesa lembro que se noticiou que a queda no número de leitores foi de mais de 11 milhões de pessoas desde 2015). Ela estava certa. Quando deixei a livraria, a fila saía pela porta...   Existe um motivo. (Meu eu crítico vai fingir que não me sinto próximo da autora por uma espécie de sintonia telepática, e que não a considero uma referência na investigação da vida, ou essa crônica seria apenas um grande néctar de bajulação de vizinhos de geração).   No debate do lançamento, ouvi dos palestrantes que seria um livro em que aparece o tema do HIV nos anos 1980, em que a autora homenageia o crítico e dramaturgo Alberto Guzik...