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Sobre Manual de estoicismo: a visão estoica do mundo

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Por Afonso Junior Sempre que leio Epicteto (filósofo nascido em torno ao ano 50 na Frígia) eu tenho a sensação de ser pego de surpresa com alguma percepção muito impactante sobre a vida cotidiana. Também Marco Aurélio parece nos sacudir com sua filosofia crua; quando, por exemplo, fala (a nós, mergulhados no caos do carbono) da “respiração conjunta” de todos os seres e da “unidade da substância” ( Meditações , 6.38). Eu os leio com espanto, e não apenas com curiosidade.   Eu me lembro de um professor do mestrado que nos orientava a “não escrever para a massa” (também havia quem não achasse que todos tinham de ter faculdade, já que seriam sempre necessários “bons padeiros”). “As pessoas que lerão o seu trabalho”, dizia, “são especialistas, e não convém ser muito didático”.  Lembro de que sentimos um certo incômodo com o fato de que tanto esforço era para ser “consumido” por um grupo tão seleto. É natural que, numa sociedade capitalista, que cria desigualdades, diversos nív...

Vaim, de Jon Fosse

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Por Pedro Fernandes E se descobríssemos que a nossa vida foi determinada por escolhas alheias a nós? E se a vida que levamos com alguma determinação própria for, na verdade, a repetição de outra vida que também ignoramos? E se em algum momento, por uma razão desconhecida, pudéssemos assumir a consciência dessas duas possibilidades, o que faríamos com isso? Essas podem ser algumas das questões encontradas na base das três narrativas que constituem Vaim , o primeiro romance de Jon Fosse depois do prêmio Nobel de Literatura e o primeiro de uma trilogia sobre a povoação fictícia que dá título ao livro. O leitor da obra desse escritor não deixará de primeiro reparar nessa que pode ser uma das suas obsessões, o uso da numerologia com variável sentido simbólico, nesse caso, o número três. Três livros à volta de Vaim, mas este primeiro estrutura-se em três partes, constituídas como dissemos em três narrativas, em torno de três personagens que formam um inusitado triângulo amoroso marcado por t...

Uma câmera no caminho da máquina de limpeza étnico-territorial: No Other Land

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Por Luis Fernando Novoa Garzon “Depois de Auschwitz não ocorreu nada que haja revogado ou refutado Auschwitz.”  — Imre Kertész, Discurso de recebimento do prêmio Nobel de Literatura de 2002. A estigmatização, a despossessão e o posterior intento de extermínio dos inimigos de ocasião continuam sendo regra nos processos contemporâneos de expansão econômica e militar ao redor do mundo. Nos termos de Kertész, o escritor-testemunha, o método Auschwitz continua sendo o expediente basal de processos de obtenção de supremacia, que depende da supressão integral de potenciais alteridades e contrapesos. Foi durante e após a experiência narrada em Sem destino  que o escritor judeu-húngaro chegou a esta conclusão. Nesta obra, o autor apresenta paralelos atordoantes com o cinema de testemunho de No Other Land . O cenário de sua deportação da Hungria para Auschwitz, em 1944, é retraçado pelo olhar do adolescente que era, procurando compartilhar deliberadamente com o leitor níveis similares d...

Subsolos de Lima Barreto e Lev Tolstói

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Por Rafael Bonavina  Quando pensamos na Rússia, talvez venha à nossa mente alguns elementos que nos chamam atenção, como a neve, a rigidez no trato, as danças populares, as comidas típicas. Enfim, todas essas coisas que nos diferenciam, que nos afastam. É preciso apertar um pouco os olhos para vermos o que temos em comum com esses primos distantes. Mas, depois desse esforço inicial, começam a despontar os pontos de contato, desde o humor popular até a literatura erudita. E é justamente aí que gostaríamos de nos deter. Não é segredo que a literatura russa é de uma riqueza e complexidade imensa, assim como a brasileira; por isso, quando as duas se tocam, o resultado geralmente é, no mínimo, interessante, quando não, verdadeiramente valioso. Tampouco é novidade que Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski era usado como uma espécie de medida com que se comparava outros escritores, por exemplo, Machado de Assis diversas vezes foi avaliado como uma espécie de Dostoiévski brasileiro. Isso também...

Rosario Castellanos: a inteligência como única arma

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Por Raquel Lanseros  Rosario Castellanos. Foto: Rogelio Cuéllar A vida de Rosario Castellanos é tão fascinante, multifacetada e repleta de contrastes quanto sua própria personalidade e, claro, sua obra literária. Embora tenha nascido na Cidade do México em 1925, passou a infância em Comitán, Chiapas, terra natal de sua família. Deve existir algo de mágico nessa terra para que tantos grandes nomes da literatura mexicana tenham vindo daí; além de Rosario Castellanos, sabemos do seu amigo Jaime Sabines¹ ou do luminoso Efraín Bartolomé². Filha de uma importante família de latifundiários de Chiapas, proprietária de uma fazenda com escravos, Rosario Castellanos teve consciência desde cedo das injustiças que impediam no seu país o progresso dos povos indígenas: uma compreensão que, juntamente com ambições intelectuais consideradas impróprias para uma mulher de seu tempo e do momento histórico dominante, sempre a impediu de se sentir integrada à sociedade hierárquica de seu primeiro ambien...

Boletim Letras 360º #669

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DO EDITOR Saibam que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você pode obter um bom desconto e ainda ajuda a manter o Letras. A sua ajuda é essencial para que este projeto permaneça online. Jon Berger. Foto: Ulf Andersen LANÇAMENTOS Um dos últimos livros de John Berger é feito com a pena da liberdade criativa alcançada com a maturidade .   Diante de um achado ou de uma visão formidável, o tio Edgar levava o dedo com a verruga aos lábios, convidando seu jovem sobrinho ― o futuro narrador de O toldo vermelho de Bolonha  ― a fazer silêncio, a não dissipar a experiência vivida a golpes de lugares-comuns. “Deus é o não-dito”, sussurra ele à hora de dormir, certa noite em Saint-Malo. Essa discrição essencial dá o tom deste livro breve e luminoso, um dos últimos de John Berger. Sem alarde, o autor deixa as fórmulas feitas de lado e passeia entre um subúrbio londrino e as arcadas de Bolonha, o relato de viagem e o retrato falado do tio original e li...