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Walter Salles esqueceu de comprar a televisão

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Por Renildo Rene   Walter Salles revelou seu olhar vertiginoso sobre o nosso cenário político, mas esqueceu de encenar a compra da televisão realizada por Eunice Paiva, no início deste milênio, que confirmaria certas dimensões para pensar o ideal brasileiro pós 88. No novo filme do diretor, visitamos a família de Marcelo Rubens Paiva, em uma estrutura linear bem definida de tempo e espaço, após o seu desaparecimento orquestrado por militares brasileiros na década de 70.   Já na cena inicial, os créditos indicam a data e o contexto dos eventos que o espectador irá vislumbrar. Em seguida, uma restauração imagética da residência sempre bem ocupada por familiares, amigos e objetos que encenam a cultura popular daqueles anos. Veroca, Nalu, Eliana, Babiu e Cacareco, os filhos de Marcelo com Eunice, ganham presença por meio dessa vertigem da câmera de ocupar diferentes posições, movimentos, tamanhos, para ilustrar os dias como a união de muita gente, e com a felicidade que os une prestes a se

Marginália para Maria Gabriela Llansol

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Por Eduardo Galeno     “‘Vinde ler’ – diz Ana aos objectos…” M. G. Llansol, Um beijo dado mais tarde   “Idade Média: quando ler um texto era comentá-lo…” M. G. Llansol, Herbais, 26 de julho, 1981 Llansol em Herbais, Bélgica     Em Llansol, a poesia está em constante conversa com a prosa. Mas não chega a ser hibridismo. Não sei do que se trata propriamente, mas existe. A poesia como derramamento generalizado, não misto. Não forma, mas pureza. Os gêneros se fundem dentro do que ela coloca no estilo (no que ele conduz de completamente sinestésico, mas (i)limitado pela geometria, por um pensamento de corpo lógico ).   Spinoza diz, na parte XXXII das definições das afecções de sua Ética , sobre o desejo: enquanto desiderium :   “O desejo frustrado é o desejo ou apetite de possuir uma coisa, desejo que é mantido pela recordação dessa coisa e, ao mesmo tempo, entravado pela recordação de outras coisas que excluem a existência da coisa desejada.”   Nessas palavras, se o que tem de significat

Antonin Artaud e o “Bluff surrealista”

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Por Ricardo Echávarri Antonin Artaud. Foto: Man Ray. Quando for reescrita a história do Surrealismo — a vanguarda mais ousada e transcendente do século XX —, na sua parábola, deverão ser apontados os seus Hileg ou pontos axiais, de que falava Paracelso: aquelas adesões entusiásticas ou despedidas abruptas ao único ismo (herdeiro do “sol negro” do Romantismo) que se postulou como algo além do mero campo artístico, e levantou a bandeira da poesia, do amor e da liberdade, quase como uma nova concepção de vida.   Antonin Artaud ingressou no Círculo Surrealista em 1924, tendo acabado de publicar seu livro de poemas Tric Trac du Ciel . Dirigiu a Oficina de Pesquisa Surrealista e criou o Teatro Alfred Jarry, em homenagem ao inventor da Patafísica (ou “ciência das soluções imaginárias”) e grande inovador cênico. A passagem de Artaud pelo Círculo, apesar de brilhante, foi suficiente para delinear uma era civilizacional baseada no surrealismo: uma nova ordem passional que recuperaria para o hom

Boletim Letras 360º #610

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Thomas Bernhard. Foto: Otto Breicha LANÇAMENTOS   Coletânea apresenta novas expressões da escrita de Thomas Bernhard .   “Tudo nele era revolta”: dessa maneira o poeta francês Rimbaud é definido por Thomas Bernhard no texto que abre a coletânea Na pista da verdade , escrito em 1954, quando o escritor tinha apenas 23 anos. Tais palavras tão categóricas podem muito bem se aplicar à carreira que o autor austríaco desenvolveu nas décadas seguintes. Afeito a polêmicas e controvérsias, ele escreveu uma sequência de peças de teatro que atacavam as cidades austríacas onde eram encenadas, assim como seus habitantes, muitas vezes sem poupar os próprios festivais de dramaturgia que as contratavam. Neste livro organizado por Wolfram Bayer, Raimund Fellinger e Martin Huber, podemos nos divertir com a chegada inesperada do autor à redação do jornal de Augsburgo, onde protestavam contra sua peça, quase como um happening . Mais importante que isso, podemos matizar o estilo de Bernhard através de sua

Ode ao passeio e ao caminhante: Baudelaire, Debord e a cidade

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Por Pilar R. Laguna Gustave Caillebotte. Rua parisiense, dia chuvoso   Existem dois tipos de pessoas, as que passeiam e as que não passeiam. A menos que uma causa importante os impeça, reconheço a minha profunda incompreensão em relação a estes últimos. Vaguear é uma atividade essencialmente humana, ou assim gosto de pensar, e quando não a praticamos é como se estivéssemos negando uma parte substancial da nossa essência. Não estou falando do deslocamento prático, estou falando da deambulação descontraída, aleatória e reflexiva que é quase uma prática mística e transformadora. Uma ferramenta para despertar a atenção, a criatividade e até rebeldia.   O passeio — em oposição ao ato de simplesmente caminhar — tem como premissa uma sede sem a qual é impossível ocorrer em todo o seu esplendor. Deve haver uma intenção transformadora no caminhante: o desejo de voltar um outro. Não tem nenhuma relação com rotinas ou deveres e é principalmente um exercício psicológico e de atenção — especialment

Terra do pecado/ A viúva, de José Saramago

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Por Pedro Fernandes Terra do pecado saiu a público em 1947 e foi o primeiro livro de José Saramago. Que alguns, incluindo o próprio escritor, tenham lido essa estreia como gorada não é novidade, principalmente, quando conhecemos o romancista a partir de Levantado do chão . Mas, isso não é verdade. Mesmo colocando o romance que permanecerá ignorado pelo autor até cinquenta anos adiante ao lado de suas principais obras do gênero não deixamos de encontrar nele um exercício bem-acabado de alguém que antes de reinventar a forma romanesca precisou conhecer minimamente os desenvolvimentos dos modelos tradicionais. É possível que não apenas a insistência do seu editor, mas certa consciência de que esses primeiros exercícios no romance possuem alguma qualidade que não a de servir como mero produto de curiosidade dos leitores, tenha feito com que este e o livro posterior — Claraboia , finalizado em janeiro de 1953 — tenham regressado dos longos desaparecimentos experimentados na sua trajetória