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Um novo cavaleiro de bronze

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Por Rafael Bonavina  Orest Kiprensky,  Retrato de A. Púchkin , 1827. Foi lançada neste ano O cavaleiro de bronze e outros contos em versos , uma nova seleta de textos de Aleksandr Púchkin, sem dúvida um dos, se não o, mais importantes escritores na história da literatura russa; e ainda assim, como por uma ironia do destino, ele é pouco lido fora da Rússia. Púchkin é para os russos algo como o nosso Machado de Assis, ou seja, uma espécie de ponto de virada na historiografia literária, de salto qualitativo. Não raro encontramos pesquisadores defendendo que a literatura russa só afirma sua identidade nacional a partir de Púchkin; e isso, a nosso ver, não seria um exagero de fã. Afinal, sua obra mescla o classicismo — que pautava grande parte da literatura — com diversos elementos da cultura popular, como a fala e o folclore. A partir daí, é como se a língua russa real começasse a ganhar mais presença no papel, tomando espaço do estilo grandiloquente e já desgastado que se usava n...

Feito bestas, de Violaine Bérot

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Por Sérgio Linard  Violaine Bérot. Foto: Massimiliano Minocri “Os senhores são homens, mas tentem imaginar o que acontece, os dedos, o sexo, que penetram quando você não quer. Tentem imaginar. Você está lá, no seu trabalho, um dia normal, com o colega de sempre, a mesma rotina, e, de repente, sem saber por quê, sem conseguir enxergar o que pode ter acontecido, o que pode ter desencadeado aquela fúria, mas o colega gentil te derruba sobre a escrivaninha, te joga, esmaga sua cabeça no meio das pastas, sussurra no seu ouvido, não se mexa, sua puta, não diga nada, não quero ouvir um pio, e você não diz nada, é claro[...]” O romance Feito bestas , de Violaine Bérot, discorre sobre uma triste temática sempre atual, mas tem algumas realizações que poderiam ter melhor exploração para garantir aproveitamento convincente e adequado para o excelente conteúdo que se tem em mãos. A história, registre-se, é ambientada nos Pirineus quando uma menina com aproximadamente seis anos de idade fora enc...

Boletim Letras 360º #665

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DO EDITOR Saibam que na aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste boletim, você pode obter um bom desconto e ainda ajuda a manter o Letras. A sua ajuda é essencial para que este projeto permaneça online. Cristovão Tezza. Foto: Guilherme Pupo LANÇAMENTOS O novo romance de Cristovão Tezza é uma reflexão terna e audaciosa sobre um pai e um filho, um relato de dupla formação, uma investigação franca do passado familiar, da política do país — e dos afetos que nos constituem . João Batista Tezza, pouco letrado, começou a fazer anotações num caderno de capa dura em fevereiro de 1931, quando entrou no exército como soldado em Florianópolis, aos vinte anos. E manteve o hábito até a semana em que morreu, precocemente, já professor e advogado, em julho de 1959, em decorrência de um acidente de lambreta. O escritor Cristovão Tezza sempre soube da existência dos cadernos de seu pai, mas nunca havia se interessado por eles até que, em 2021, durante a pandemia, o autor decid...

Respirar

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Por Tiago D. Oliveira Claire Desjardins. Respirar Deram as mãos e ficaram em silêncio. A proposta era aguentar por três minutos, um de frente para o outro. Luíz Melodia cantou: “Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais.” Ele transformou em música uma deixa, uma prova de generosidade. Saber é dividir; só assim tem sentido. Um caminho. Sim, porque tatear a experiência humana e descrevê-la sem desperdícios talvez seja mais uma questão de voltar a senti-la do que simplesmente seguir o fluxo. Respirar é o primeiro passo. Cientistas da NASA descobriram que a crosta terrestre sobe e desce cerca de 1 cm ao ano. Esse movimento acontece devido à redistribuição das águas e do gelo, o que chamam de “oscilação glacial isostática”. Como se o planeta respirasse. Respirar é insistir. Arriscar a todo custo: a mais pura prova de vida. É também mandar um recado. E tantos são passados diariamente, mas não nos atentamos para o perigo que é viver sem se dar conta. “Quando se vê, já são 6 horas: h...

Entre o mundo e Baldwin: notas sobre Da próxima vez, o fogo

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Por Vinícius de Silva e Souza   É muito fácil se perder no fluxo de “Carta de uma região de minha mente ”, ensaio barra memória barra reflexão de James Baldwin que concentra quase toda a obra Da próxima vez, o fogo , traduzido por Nina Rizzi para a Companhia das Letras, casa que publicou o livro no Brasil em 2024. Entre relatos de sua infância, reflexões sobre religiosidade, exemplos de racismo da época em que foi escrito e relato de causos de sua vida adulta, o escritor nos leva, de maneira hipnótica, a refletir sobre a ligações entre religião (principalmente o islã) e a segregação racial de seu país.  Na época, aos 39 anos, o que afirma o autor, aqui, é que nem a militância radical de Malcom X e nem a pacifica desobediência civil do Reverendo King são o caminho ideal para o fim da segregação. Mostrar-se como uma categoria mais elevada, exemplificar civilidade e honra são os caminhos que o autor parece querer traçar, fortemente opondo-se a ideia de revidar violência com mais ...

Simpatia pelo senhor Scorsese

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Por Ernesto Diezmartínez  “Desde que me lembro, sempre quis ser diretor de cinema.” Essa poderia ter sido a empolgante frase de abertura da biografia de Martin Scorsese, se ele mesmo a tivesse narrado como uma série documental para a televisão. Rebecca Miller, diretora de Mr. Scorsese (Estados Unidos, 2025), uma minissérie de cinco episódios disponível na Apple TV que apresenta a vida e a obra do grande cineasta ítalo-americano, tem uma ideia diferente de como contar essa história, tanto dentro quanto fora dos sets de filmagem. Mr. Scorsese foi concebida, desde o início, não como uma cinebiografia tradicional, mas como um retrato pessoal multifacetado, construído, pode-se dizer, a partir dos princípios do cubismo sintético. Assim, a cineasta, roteirista e atriz Rebecca Miller retornou às suas raízes como estudante de Belas Artes, pintora, escultora e ilustradora, entregando uma envolvente colagem cinematográfica scorsesiana, construída a partir de diversos depoimentos — de amigos...