Acontecimentos na irrealidade imediata, de Max Blecher
Por Pedro Fernandes
Foi com Acontecimentos na
irrealidade imediata que Max Blecher fez continuar um projeto criativo
breve iniciado em 1934 com um livro de poemas publicado numa edição artesanal e
restrita. A brevidade não foi obra própria, se deveu a circunstâncias negativas:
o escritor morreu quando contava apenas 28 anos. Além deste romance, escreveu
outros dois: Corações cicatrizados e A toca iluminada. Esses trabalhos, se não de imediato, o
colocaram no rol dos importantes ficcionistas da literatura romena no século
XX. Posto que ocuparia se apenas fosse o autor do livro aqui em destaque: seja
pela renovação estabelecida na natureza do tema, seja pela maneira como articula
as duas forças poéticas, a poesia e a prosa, na constituição da narração.
Sabe-se que Blecher iniciou a escrita de Acontecimentos… em 1933, isto
é, antes de Corpo transparente, o primeiro livro, e retoma um ano depois
até publicá-lo em janeiro de 1936.
O leitor atento não deixará de encontrar
no romance a transformação do jovem escritor nesse intervalo de tempo entre a
concepção e o resultado em livro: num primeiro momento a narrativa é
profundamente invadida por certa consciência fenomenológica — produto
certamente das leituras do momento, Edmund Husserl e Martin Heidegger, sobretudo
— e depois por um experimentalismo de corte simbolista e surrealizante herdados
de Paul Valéry e André Breton, entre outros. Essas duas extensões não se
apresentam separadas, visto que percebemos certa conjunção dialética,
impossível de precisar se intencional, casual, ou as duas coisas — isto é, um
acaso que mais tarde se revelou uma frutífera possibilidade no desenvolvimento
de sua literatura.
Essa transformação — ou seria
variação — só é possível determinar porque entre os últimos segmentos da
narração nos descobrimos entre um narrador tomado por uma investigação do
símbolo em sua dimensão imaginativa e onírica. Entretanto, o volteio
psicológico que instaura uma intermitência entre o sujeito e as coisas, isso que
se denota com maior relevo para as primeiras instâncias do texto, tal como a presença
do imaginário e do sonho posteriormente, está em toda parte do narrado. O
intercâmbio dessas duas principais forças criativas, chamemos assim, revelam
duas coisas, pelo menos. Um escritor profundamente integrado aos saberes em prova
na Europa e colaborador ativo nos procedimentos inventivos daí resultados.
O próprio título — Acontecimentos
na irrealidade imediata — parece justificar bem o romance e propriamente
isso que observamos. O que se narra são circunstâncias que se apresentam estimuladas
a partir de uma consciência pouco à vontade no mundo e interessada em responder
sobre quem sou eu entre os outros e qual a minha condição. Apesar
de o mundo exterior se mostrar aos olhos do narrador como uma unidade fechada, por
vezes indiferente, uma impressão que se estende às personagens do seu entorno, para
essas questões não existem respostas pré-determinadas, tampouco únicas ou
acabadas e que a única possibilidade de as responder é por uma interpretação de
si e do mundo. E esta só é possível pelas suas experiências. E é a isso que se
dedica.
É preciso notar que a posição de
ente estranhado — embora encontre matéria no mundo e o contexto do passado
desse narrador se situa entre os alvores da psicanálise e os da profunda crise que
resulta a Primeira Guerra — é manifesta como uma predisposição interior e
individual do jovem. Tanto que é sua interioridade o que devora e modifica
imediatamente tudo e todos ao seu redor. Isto é, sujeito e mundo são entidades fenomenológicas
implicadas e aquele altera este à sua imagem. É dessa maneira que a realidade
se manifesta por qualquer coisa de terrível, monstruosa, adulterada, perniciosa,
deformada e logo em descompasso com o narrador, aparentemente um jovem burguês,
sem grandes intenções, mais ou menos bem acomodado socialmente, ainda que sua
família feita de alguns parentes e a figura apreensível do pai, não corresponda
perfeitamente a um modelo acomodatício.
Suas investigações se desenvolvem entre
vários episódios da infância e do início da juventude: são as descobertas
sexuais com mulheres, meninas e meninos; o entendimento do corpo a partir do
exame de seus buracos; a predileção por objetos de pequena ou nenhuma
significação; circunstâncias da rotina familiar, como casamentos e velórios; o
dia-a-dia preenchido com a atividade de perscrutar as fronteiras de sua
solidão, a melancolia; o regresso aos episódios da ambivalente relação com o
pai; e os trânsitos por lugares variados da pequena cidade onde vive — terrenos,
praças e casas baldias, as regiões periféricas, o circo, o museu de cera, o
cinema e o teatro.
Cada uma das circunstâncias sempre
finda de maneira inesperada e-ou marcada por certa implicação trágica que ao invés
de manter qualquer coisa como um conforto subjetivo experimentado pelo narrador
nos instantes de solidão aprofunda ou abre outra direção sobre sua melancolia provocando-o
ou empurrando-o para o ponto in extremis da vida. Cada circunstância
revela seu contato com aquela terrível solidão, manifesta mesmo quando estamos bem-acompanhados
e se concretiza na constatação negativa, porém coerente, do homem e do mundo enformados
na/ da lama.
Essa descoberta desenvolvida como
epifania — num episódio em que o narrador num solitário passeio pelo subúrbio
repete os movimentos de um animal chafurdando na lama — não se reveste de
nenhuma força religiosa. Ele próprio esclarece que essa consciência desperta
não é a bíblica “és pó e ao pó retornarás”. A distinção pó-lama é fundamental:
enquanto o primeiro abriga a simbologia da matéria primordial, fecunda,
geradora da vida, numa engrenagem semicircular, a lama, embora admita também o
mesmo campo de significação, permite o sentido que prevalece no romance: o
resto, o sujo, o podre, a escória, a aridez da vida marcada pelo excessivo, os
níveis profundos e inferiores do ser.
Impossibilitado de acessar
puramente essas regiões interiores, porque inacessíveis, escusas ou inacessíveis,
essas sempre se mostram enquanto imagem. Prevalece, por isso, em Acontecimentos…
a força do simbólico para denotar as volições psicológicas do narrador, que hora
assumem para ele próprio extensões puramente imaginativas, visto não se
comprovar fisicamente pelos olhos alheios. Seu mundo, portanto, é muitas vezes
transmudado, isto é, à primeira camada capturada pela visão é modificada pela
consciência. O referido episódio de chafurdar na imundície da lama é um
exemplo; ou a ver um buquê de flores onde se mostra uma echarpe, a face aguda
da morte como se uma premonição, são outras marcas.
Ainda no campo das significações, não
deixaríamos passar um acontecimento comovente e expressivo, que entrega uma resposta
desse itinerário investigativo oferecido por este narrador, resposta, aliás,
explícita desde a abertura da narração porque se trata, como dissemos, de um perscrutar
da condição subjetiva: “A terrível pergunta ‘quem realmente sou’ pulsa no meu
âmago como um corpo perfeitamente novo, que cresceu dentro de mim com pele e
órgãos que me são completamente desconhecidos.” — sublinha. Entre os registros de sua predileção pelos
lugares de silêncio absoluto (quase todos semidesertos e campos de representação
de uma falsidade do eu) onde pode viver a experiência de fora da
realidade, um dos relatos — é este o episódio — trata de uma visita ao
teatro de variedades da cidade. Até alcançar o porão “cheio de cadeiras quebradas
e objetos antigos cenográficos”, coisas com as quais se identifica, atravessa
por vários cômodos da casa e a maneira como descreve sua passagem pelo palco nos
chama atenção. Ao descer por uma escada, vê-se, “de repente, no palco vazio, diante
da sala deserta. Meus passos adquiriram uma estranha ressonância. Todas as cadeiras
e mesas estavam corretamente dispostas para uma representação. Eu estava sozinho
diante delas, no palco, em meio a um cenário de floresta.” E, conclui antes de avançar
para o porão: “Quis abrir a boca, sentia que tinha de dizer alguma coisa em voz
alta, mas o silêncio me petrificara.”
Este episódio é apenas uma das
muitas possibilidades de sintetizarmos uma resposta sobre as investigações desse
eu desconhecido que por vezes se sobrepõe ao eu comum que se interroga sobre
suas fronteiras, dimensões e lugar no mundo. É uma imagem esclarecedora a
existência enquanto um simulacro, o eu comum como dissimulação encenada para si,
a densa e impenetrável floresta, uma unidade dispersa de/ pelo medo e desejo,
sonho e silêncio, dor e solidão, escuridão e lama. “Debato-me, grito,
atormento-me. Quem me despertará?” — pergunta-se o narrador. E a resposta
parece dada pela escura epígrafe retirada de P. B. Shelley: “I pant, I sink, I
tremble, I expire”. Existir é um sonho acordado, vagar a esmo, um espantoso
pesadelo. Possivelmente, sabemos disso, mas sempre há quem toque
precisamente no centro nevrálgico da coisa e nos devolva, na impossibilidade da
palavra, a imagem possível e terrível que nos define. E Max Blecher faz isso
com Acontecimentos na irrealidade imediata.
Comentários