Visibile parlare: a representação do real nos cantos X e XII do Purgatório, de Dante Alighieri
Por André Cupone Gatti
I.
A arte, mais que sugerir o
que ela possa ou não ser, nos inquieta especialmente pelas diversas e mutáveis
relações que ela mantém entre o objeto “real” e a sua imitação. A mais
influente e conhecida conjectura a respeito do problema da representação é a ideia
platônica segundo a qual a arte é a cópia da cópia, enquanto imitação de um
objeto que, por sua vez, é a imitação da ideia original ou divina. Assim,
podemos interpretar que a arte, talvez, nasça motivada por uma insuficiência do
real em se revelar por completo, por uma necessidade de tornar transmissível
aos nossos sentidos aquilo que a realidade, por si só, omite ou emana de
maneira incomunicável. Da antiguidade aos nossos dias, a arte se apropriou da
realidade, dos seus signos, da sua matéria bruta, experimentando-a com
insaciável curiosidade e descobrindo, não raras vezes, em seu cerne, um
pensamento ou uma essência invisíveis a um olhar não mediado pelo princípio da
representação artística. Daí vem a sensação paradoxal de que, muitas vezes, a
arte é mais real que a realidade.
Segundo Erich Auerbach, um dos
mais importantes críticos literários do século XX, o poeta florentino Dante
Alighieri foi responsável por reavivar na literatura ocidental um modo de
expressão artística que nasce de algo concreto e deságua na clareza de um
pensamento universal. Isso não apenas retomou uma visão clássica das coisas do
mundo, mas deu justa representação a filosofias - tais quais a lógica do amor
cortês e as ideias de São Tomás - que até então haviam atravessado a idade
média sem um desdobramento mais concreto e factual. Desde a sua produção
stilnovista, Dante deu especial relevo aos fatos em si, parecendo crer que a
força da arte, quase sempre, vêm de algo objetivo. Sobre isso escreve Auerbach:
“na poesia mais antiga de Dante, o evento concreto substitui a retórica
na qual Guinizelli expressava estados de espírito”. (1997, p.
55) A dimensão terrena de tudo aquilo que se representa, antes relegada a uma
literatura popular de viés cômico, é incorporada à poética dantesca e igualada,
em importância, às incursões abstratas e às conjecturas morais. Esse mundo das
coisas, da clareza concreta e dos fatos objetivos, poderia ser visto sob um
significado metafórico, não fosse a importância central do “fato em si” para
compreender a filosofia estética da obra de Dante. Para o florentino, atesta
Auerbach, “As imagens não significam ‘outra coisa’ mas são a linguagem na qual
a alma se expressa, e seu sentido lhe é absolutamente fiel.” (p. 97)
A Divina Comédia, obra máxima de
Dante, é a síntese desse pensamento ambicioso a respeito da representação. Esse
projeto tomista-aristotélico, mais do que qualquer outra coisa, intencionava
abarcar o completo mundo dos fatos, atestá-lo sólido e, a partir de sua
solidez, erigir uma complexa cosmovisão que unia a antiguidade clássica
(aristotelismo) à era cristã (doutrina tomista). A imagem, portanto, está na
raiz da expressão dantesca, e é com o olhar que se dá o primeiro passo da
aprendizagem. A visão une leitor e poeta numa viagem essencialmente sensorial,
isso não só porque a poesia de Dante nasce da experiência concreta, mas porque
“a doutrina filosófica por ele seguida dava grande valor a formas
individuais e parecia justificar que fossem representadas.” (p. 108)
Sendo a Divina Comédia uma obra
repleta de veredas, rizomas, caminhos alternativos, não é de se espantar que em
quatro tercetos do Purgatório (três do canto X e um do canto XII), Dante
reflita poeticamente sobre coisas tão abrangentes e significativas como as
ideias de arte, de realidade e de natureza, bem como sobre o próprio fazer
poético. Me detenho nesses tercetos para construir, nesse texto, uma possível
via de interpretações.
II.
O Purgatório, dos três reinos do
além-túmulo visitados por Dante, é aquele cuja lógica se aproxima mais da vida
terrena, pois igual a ela, a vida no Purgatório acontece segundo a passagem
do tempo e é manifestamente passageira, provisória. Nessa montanha envolta por
um caminho ascendente em direção ao paraíso terrestre, as almas que em vida se
arrependeram de seus pecados são distribuídas por cornijas segundo a natureza
de seus desvios, a fim de purgá-los, e recebem, visual ou sonoramente, exemplos
de figuras que exageraram do mesmo pecado ou de personagens que cultivaram a
virtude oposta ao pecado em questão. A exemplaridade, portanto, é um artifício
que, apesar de presente em toda a Divina Comédia, ganha especial relevância no
livro do Purgatório, encontrando o seu paroxismo nos cantos XX e XII. Nesses
cantos, o exemplo, pelo fato de ser transmitido por realistas cenas esculpidas
na pedra da montanha, nos permite refletir sobre os limites e as transgressões
da representação artística, o seu vínculo com a realidade das coisas, com a
natureza, com Deus e com a criação poética.
Mesmo que as cenas esculpidas em
pedra sejam criadas a partir das mãos divinas, a sua natureza imitativa permite
a contraposição da coisa real em relação à coisa representada, sugerindo, desse
modo, uma reflexão que não se limita às cenas em si, mas que também diz
respeito ao princípio essencial da arte. O terceto “Morti li morti e i vivi
parean vivi: / non vidi mei di me chi vide il vero / quant’io calcai, fin che
chinato givi.” (Purgatório, XII, 67-69), ao igualar a realidade do verdadeiro à
do figurativo, dizendo que quem viu o “vero” não viu com mais realismo que o
poeta, que viu a imitação, também iguala, ou aproxima bastante, as noções de
“parecer” e “ser” (“i vivi parean vivi”), abrindo espaço para a ideia de que a
concepção do real acontece por meio da aparência, da figura, e que a criação da
realidade, portanto, estaria não só ao alcance de Deus, o sumo artífice, mas,
em certa medida, ao alcance de alguns artistas. A relativização da realidade
face a arte figurativa também pode ser observada no terceto: “esser di marmo
candido e addorno / d’intagli sí, che non pur Policleto / ma la natura li
avrebbe scorno.” (Purgatório, X, 31-33). Desses versos apreende-se quase uma
certeza do poeta de que, pelo menos nesse caso, a arte é mais real que a
realidade, que ela exprime uma verdade não identificável no mundo dos fatos e
que possui um poder organizador de sentidos alheio à própria natureza. Não nos
esqueçamos que a mão de Deus, no trecho em questão, está presente tanto no
“marmo” quanto na “natura”, o que impede a transgressão da filosofia tomista
por Dante, sem impedir, porém, que nós, leitores do século XXI, observemos
nesses versos certa reflexão acerca dos efeitos da arte, feita por um poeta
notadamente perfeccionista e consciente do seu gênio inventivo.
A atenção dada às exemplares
figuras de pedra descritas nos cantos X e XII do Purgatório produz não só a
ebulição dos sentidos do Dante personagem, como um desafio para o Dante autor
que, por meio de uma afiada engenhosidade semântico-musical, visa reproduzir em
nossos sentidos o fascínio de algo tão enganadoramente real. É justamente a
tensão entre falso e verdadeiro, impossível e possível, que vemos no seguinte
terceto: “Similemente, al fummo de li ’ncensi / che v’era immaginato, li occhi
e ’l naso / e al sì e al no discordi fensi.” (Purgatório, X, 61-63) Os sentidos
são desajustados, não conseguem apreender a natureza paradoxal da
representação, pois aquilo que é representado transgride os limites materiais
do meio pelo qual é transmitido. Os olhos e o nariz, divididos “al sì e al no”,
não dão conta da exuberância sensorial.
Também o poema, como já dissemos,
é incrivelmente rico em sensações, como pontua Auerbach neste trecho: “por sua insistência no
concreto, na singularidade de uma situação; por sua exibição despudorada de
sentimento pessoal, o poema dantesco toma uma tal intensidade que aqueles que
não estavam preparados para engajar-se com paixão se sentem violentados e
tomados de alarme.” (1997, p. 63 e 64)
No seguinte terceto do canto X, há
uma expressão que sintetiza tanto a natureza das cenas esculpidas quanto a
ambiciosa poética dantesca: “Colui che mai non vide cosa nova / produsse esto
visibile parlare / novello a noi, perchè qui non si trova.” (Purgatório, canto
X, 94-96) Apesar do poeta afirmar que no mundo terreno não é possível encontrar
o “visível falar”, a poesia de Dante não é outra coisa que um “falar visível”,
na medida em que faz do verbo o princípio de criação de um vasto e vivo mundo
imagético. Além disso, o “visibile parlare” aponta para a maneira pela qual
Dante expande o seu universo poético, partindo de algo muito concreto, muito
claro, muito “visibile”, para alcançar a unidade do seu mundo das ideias, feito
essencialmente de palavras, do “parlare”.
Nesses quatro trechos dos cantos X
e XII do Purgatório, observamos que Dante relativiza a realidade do que é real,
bem como a artificialidade do que é engenhosamente criado. Para que a razão
siga a “diritta via”, o olhar precisa ser convencido de uma outra verdade, ao
mesmo tempo imitativa e essencial, aquém e além da “natura”, oscilante entre o
“sì” e o “no”. Ao falarem da criação paradoxal do Deus artífice, os tercetos
também apontam para o ofício do poeta, calcado sobre a obstinação de dar forma
a tudo aquilo que, tanto no mundo material e universal quanto na esfera
emocional e particular, não é suficientemente “real” em seu estado bruto,
natural. O Purgatório, talvez, por ser o único reino temporal dos reinos do
além, permite a colocação de uma experiência ambígua como essa da arte que
comunica tanto o concreto realismo quanto a explícita invenção. No Inferno e no
Paraíso, via de regra, as experiências são unívocas, e quando não as são de
imediato, acabam por ser explicadas e superadas. De uma forma ou de outra,
esses cantos, de todos os cantos da Divina Comédia, são provavelmente aqueles
que expressam com maior agudeza a relação intercambiável entre o verdadeiro e a
sua reprodução.
III.
A visão, em Dante, desperta os
outros sentidos, ensina, explica e aclara. A razão, que nasce dela, organiza um
universo duplo, estruturado sobre a relação entre as coisas e as ideias, entre
o som e o sentido. A dimensão sensorial da Divina Comédia, por nascer do fato
concreto, da situação particular, não deixa de ser significativa se vista
apartada de seu desdobramento filosófico, tão variadas e terrenas são as
situações com as quais nos deparamos, do Inferno ao Paraíso. A dimensão
filosófica também é entendida por si só, porém, como diz a citação de Auerbach
mais acima, o pensamento tomista não só permitia ser representado, como “dava
grande valor às formas individuais”. Dante uniu o seu talento à sua convicção.
Percebeu que a criação artística tinha o poder de dar contornos possíveis,
contornos reais, vivos, a qualquer pensamento bem formulado e coerente.
A Divina Comédia é uma criação de
múltiplos significados, feita de imagens, pensamentos e palavras tão bem
articulados entre si, que configuram uma realidade outra, à imagem e semelhança
do mundo, aliás, superando, em clareza, o próprio mundo. A poesia dantesca, não
subjugada à retórica nem ao prosaísmo documental, atinge o leitor com o mesmo
fascínio inerente às esculturas do Purgatório, ou seja, criando algo que não só
parece, mas é, que transgride os limites da expressão, que comunica despertando
os sentidos, e que, afinal, não encontra muitos pares na experiência universal.
Trata-se, em poucas palavras, de um “visibile parlare / novello a noi, perchè qui
non si trova.”
Bibliografia
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia
- Purgatório. Tradução de: Italo Eugenio Mauro. São Paulo: Editora 34, 2017.
AUERBACH, Erich. Dante, poeta do
mundo secular. Tradução de: Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.
Comentários