A falência, de Júlia Lopes de Almeida
Por Pedro Fernandes
No longo debate sobre a
falibilidade do cânone literário sobram exemplos de obras significativas colocadas
à margem. Mas, sempre podemos contar com as necessárias aberturas, afinal, a
ideia do canônico como uma redoma intransponível resulta, para sorte do próprio
cânone, ultrapassada. Na literatura brasileira, fundada na também aos poucos
vencida noção de filiada como se uma ramagem da literatura portuguesa, as
fronteiras dessa biblioteca de obras fundamentais seguiram à risca certo modelo
que privilegiou os elementos fundamentais da base social regente, entre eles, o
desinteresse pelo reparo para com as escritoras. Assim, Júlia Lopes de Almeida ficou
sempre lembrada como a mulher que esteve nos bastidores do projeto da Academia
Brasileira de Letras e abdicou de sua presença no clã para que o marido, de
obra, sabe-se, muitíssimo inferior, ocupasse o que era seu de direito.
É preciso outra vez tocar essa
história porque continua como um capítulo nebuloso das nossas letras e porque é
necessário vencê-lo enquanto lemos a obra dessa escritora com os critérios
devidos, ressaltando-se o que for de ressaltar. Esse trabalho precisa resultar,
não no nocivo apagamento da história, mas no desfazimento do que se torna
epigonal na biografia de Júlia Lopes de Almeida, enquanto sua literatura, o
centro de interesse, permanece colocada à serviço do contexto ideológico de seu
tempo. É mais ou menos essa triste cultura de transformar a mulher em apêndice
de alguém. Quer dizer, é isso o que faz um leitor ainda procurar pela escritora
não porque ela é a autora de A falência mas porque é a injustiçada que
teve o acesso negado ao parnaso dos imortais.
A obra de Júlia Lopes Almeida
alcança lugares diversos da criação literária; foi pioneira na escrita
para crianças quando publicou juntamente com a irmã Adelina Lopes Vieira uma
antologia que reunia textos em prosa e verso destinado aos pequenos leitores.
Colaborou em diversos meios no Brasil e em Portugal, onde construiu parte da
sua vida. E se envolveu em vários debates, alguns muito caros para o seu tempo,
como a República, a Abolição e a Emancipação Feminina ― temas, aliás, que não deixam
de respingar vez ou outra nos diálogos de A falência, romance seu dos mais
conhecidos, publicado em janeiro de 1902 e que a crítica, mesmo depois da sua redescoberta
continua a filiá-lo ao realismo.
Bom, se colocarmos este livro ao
lado de um Memórias póstumas de Brás Cubas, não deixaremos de notar que,
sim, aquele tem mais cores para tanto que a obra de Machado de Assis. Mas, olhado
isoladamente, o livro da escritora também pouco tem de realista; suas feições se
ajustam melhor a qualquer coisa de pré-modernista, tanto no tema, quanto na
maneira como está concebido esse mundo em degenerescência, no meio caminho das
primeiras formas de comércio e do capitalismo de especulação. E o que resta de
realismo? Alguns pouco componentes formais e a aguda crítica a certos
proselitismos burgueses. Depois disso, nada mais. É uma narrativa que se esforça
por estabelecer um rico painel em movimento acerca de um Rio de Janeiro aquecido
pelo auge da economia cafeeira.
Mas o narrador não está interessado
em acompanhar somente miúdo das relações íntimas. Quer antes compreender as
infiltrações e os resultados da falência. O termo pode assumir os mais variados
significados no romance, incluindo a falibilidade de uma autenticidade dos
engates pessoais. Os convívios e os amores, por exemplo, estão continuamente
marcados pelo valor financeiro, ainda que este seja para muitos um ponto
pacífico, haja vista que vida de frivolidades e vadiagem dão às personagens uma
certeza de paraíso terrenal, feito de gozo, da exibição dos salons e do esbanjamento
de recursos. Apesar de assim usufruída, a perenidade só mostra assustadiça para
uma personagem, o bem-sucedido comerciante de café Francisco Teodoro; no seu
entorno, ronda-lhe sempre a mesma sombra da pobreza, da humilhação e do
trabalho árduo antes de alcançar um posto visado no amplo mercado de concorrências.
Agora, o que prevalece, numa trama
em que, se o dinheiro é onipresente, é igualmente fogo fátuo, é mesmo o sentido
capital. Este de tom sentencial que decreta uma empresa, a ordem comercial, a
obrigação de se desfazer para cumprir com as dívidas aos seus credores. Neste
sentido não é apenas o destino da Casa Teodoro que esse pequeno caruncho rói,
são todos os destinos individuais, muito embora, o narrador seja muito ciente
que falência é o fim para uns poucos; o estamento burguês sempre se projeta em
alguma alternativa capaz de fazê-lo perdurar ― o casamento, outras alternativas
de negócios, por exemplo, são as reações de reerguimento do estatuto social
posterior à falência.
Dissemos antes que o romance de
Júlia Lopes de Almeida testemunha o trânsito entre uma forma rudimentar de comércio
e o aparecimento do mercado de especulações. Isso é demonstrado logo no início
da narrativa, quando Francisco Teodoro é informado sobre a rápida ascensão de mercador
que, no ritmo aventado, logo assumirá frente ao lugar alcançado depois de
extensos anos de labuta e guerrilha. Mas é também problematizado na conturbada
relação assumida com o primeiro filho. O jovem Mário, preterido da mãe, é o
fino esbanjador de capitais: queima dinheiro com mulheres, jogatina e luxos de toda
sorte; vê-se um impróprio para a vida de carniceiro do pai, quem teme pela
perda do patrimônio de anos de ardiloso trabalho. O fim trágico e antecipado
deste senhor que não chega a um título qualquer e a sorte tirada / fabricada
pelo / para filho figuram claramente entre os influxos do capital, matéria do
romance.
O melhor de A falência é
como o fantasma que ronda o destino de Francisco Teodoro se converte no monstro
que o devora. Isso significa que esta personagem adquire uma espessura psicológica
que, nas demais, sempre empaca no dramatismo de folhetim. Em nome disso, a
narrativa expande-se magistralmente quando passa a testemunhar os instantes
finais de uma lenta metamorfose começada simplesmente com uma fagulha lançada
ao acaso no encontro diário de comerciantes para um café no escritório da Casa
Teodoro. Não é a consciência perturbada o que se avista, mas sua entrada num
estágio profundo de letargia ante o fatalismo que tornou inevitável o que durante
a vida de rico foi apenas um medo constante. É o estampido contínuo feito de
silêncio para o fim. O leitor desconhecerá outro romance deste tempo, na
literatura brasileira, capaz de tamanho empenho.
Nesse painel de acentuados traços
econômicos, feito com retalhos de imagens verbais que acompanham a sístole e a
diástole do centro comercial cafeeiro do Rio na virada para o século XX, há
espaços dos mais variados para o registro sobre a disparidade das classes
sociais, acentuando-se o impasse entre centro e periferia, com o aparecimento
dos males, a exploração e o crime; a radiografia sobre o descortinar de uma
mentalidade brasileira ainda profundamente alienada pelo trabalho braçal, o
compadrio; as feias cicatrizes do passado recente da escravidão e a entrada no
Brasil da mão-de-obra vinda do estrangeiro; o vício para o religioso, a
crendice e os negacionismos das experiências para um humanismo, seja a ciência,
seja o desenvolvimento artístico e intelectual; e claro, o infindável drama das
mulheres.
Aqui, o romance envereda por temas
caros ao realismo, como o casamento e sua falência enquanto estamento em
pequena escala da ordem social burguesa. Mecanismo para acesso a outras classes
ou de suas continuidades, o narrador esforça-se por apresentar as mais variadas
possibilidades sobre o tema. É o casamento que permite salvar da ruína a
família de Camila; prestes a retornar para a dura vida no Nordeste, depois de
uma estadia sem sucesso no Sudeste do país, a jovem se casa com Teodoro.
Instalada a autarcia do grupo familiar formado por quatro filhos, uma agregada,
a sobrinha salva da miséria do orfanato e uma récua de trabalhadores
domésticos, da qual se destaca Noca, mãe, olhos e ouvidos da casa, Mila
consegue, no seu interior, instaurar um amancebo com Gervásio. O médico ganha
presença na casa depois de salvar o único filho do casal, Mário, e cuidar da
saúde do restante das meninas, as gêmeas Lia e Raquel e Ruth. A sociedade
amorosa não sabida exceto por Teodoro converte o doutor em mandatário nesse
pequeno paraíso de opulências: ele é o reformista contínuo nas modas e modos,
na educação das pequenas, nas transformações estéticas da casa e do amplo
jardim.
Sob o mesmo teto, o narrador
repara no amor puro e platônico de Nina; a criada dos sobejos da casa é perdidamente
apaixonada pelo primo. Rebelde sem causa, de Mário ― o infeliz com o pai, o
chantagista do caso amoroso da mãe e logo odiador de Gervásio ― a
torturada moça só tem indiferença. Aqui, o casamento aparece com duas frentes:
seria a salvação da pobre Nina e é a salvação de Mário e do imbróglio amoroso entre
Mila e o doutor. Quem dos mesmos sonhos padece, se estes têm, é a filha única do
velho Mota, empregado de Teodoro que padece depois de fraturar a perna numa
queda do bonde. Acontece que nesse tempo de transições a possibilidade conseguida
por Camila também está em falência. O tempo dos homens de posses interessados
em mulheres pobres para casar, não que tenha deixado de existir plenamente,
arrefeceu. Se as duas moças conseguirem será puro golpe de sorte. Os novos
homens querem mulher para figurar.
Desiludidas do amor, essas
pequenas podem constituir as futuras tias de Camila; as sovinas e fofoqueiras senhoras
Rodrigues, moradoras no morro do Castelo, dona Itelvina e dona Joana, quem às
primeiras qualidades é preciso acrescentar o fervor religioso que a leva
peregrinar diariamente meio Rio de Janeiro em igrejas, confissões, benzeduras e
missas. Despossuída de formação e de dinheiro, a situação da filha do velho
Mota tenderá ser pior; Nina, por sua vez, guarda qualquer coisa adquirida na
vivência com a família Teodoro: alguma letra, uma casita dada de presente num
raro pequeno rasgo de bondade dos ricos com a parenta. A sina da primeira poderá
se confundir com a da negrinha feita burro-de-carga das Rodrigues, Sancha,
quem, incapaz de encontrar alternativa para a vida cansa-se de pedir a Noca que
lhe compre uma dose de arsênico, o caminho rápido para o gozo da eternidade tão
cultivada pela dona Joana.
Nessa sociedade de transições, destaca-se
a pequena Ruth. Educada para a música sob os auspícios do doutor Gervásio, a
menina tem perfeita curiosidade por tudo da arte, das ciências e dos negócios ―
seria o continuador ideal, intelectualizado, do pai, não fosse ser mulher numa
sociedade que veta a elas tudo que não for do lar. É ela que numa visita à casa
das tias no morro do Castelo, fugindo da arruaça na sua casa em preparativos
para um dos grandes bailes da família, descobre a vida miserável que Sancha
carrega. Este episódio é dos mais fortes e se reveste de uma denúncia sobre a
manutenção do cativeiro para os negros décadas adiante a promulgação da Lei
Áurea. É notável que esta tomada de consciência venha pelo ponto de vista de
menina burguesa que, num rito de desobediência das mais sinceras intervém em
favor da escravizada e dali se demora em questões sobre as diferenças sociais no
seu pequeno mundo feito de toda sorte de luxos e conforto. É notável ainda que
a persistência desse estágio de degradação humana se mostre de dentro da casa
de uma senhora educada nos princípios da moral cristã; a plena denúncia de que o
discurso não vira a prática ou que o discurso existe para encobrir o
vilipendio, essa rotina nunca saída de moda sobretudo num Brasil radicado na
hipocrisia.
O espelho de Ruth neste painel é a
livre Catarina, irmã do capitão Rino, outro que se derrete em amores platônicos
para com Camila, mas, igualmente sabedor do amancebo e torturado pelo fim
trágico da mãe, de mesma natureza amorosa, prefere se desfazer da condena romântica
pelo imperativo de que o mundo não é feito de um só amor. Por conta própria, Catarina
não se descobre inclinada para o casamento; mesmo que não desempenhe o papel da
mulher avançada ― apesar de tudo, tem suas ressalvas sobre o direito delas
ao sufrágio, por exemplo ― a personagem é a única no romance que se mostra
bem-resolvida com o lugar social a ela destinado ou pela vida escolhida. Outra
figura feminina, entrevista apenas de relance, mas que demonstra ser habitante
em parte de um futuro outro para as mulheres é Paquita. Sua aparição na narrativa
é no convés do navio que a levará com a família à Europa. É ela quem se
desdobra numa lista de mandamentos obedecida silenciosamente pelo recém-marido
Mário; mesmo que pelo ponto de vista protetor da mãe, a situação descrita diz
qualquer coisa que foge ao imperativo de passividade sempre esperado da mulher
nesse tempo.
Como vê, este painel social
erguido por Júlia Lopes de Almeida compreende a sociedade em suas múltiplas
complexidades; observa o ordinário e comezinho da vida burguesa, mas não se
descuida de registrar panoramicamente a vida de pouco ou nenhuma sorte da
periferia; retrata a mundividência do comércio, incluindo toda prosódia masculina,
mas não deixa de acompanhar os pequenos dramas femininos na grande roda da
vida, seja no trabalho, seja fortuna, seja na sorte amorosa, seja no azar; e,
desenvolve vivas descrições do movimento dentro e fora das casas, no centro e
na periferia, as vivências na faina doméstica e no brutal serviço braçal, ou os
movimentos dos negócios corridos pelo jornal e pelo telegrama. A falência
é, assim, um documento vivo sobre o coração de um país que avançava acreditando
no sopro contínuo dos ventos de alguma boa maré. O resultado foi o naufrágio, não
o definitivo, porque, como as salvaguardas dos burgueses, há sempre alguma
alternativa que volta a colocar o navio na mesma rota de iludir seus
tripulantes com o mesmo sopro contínuo dos ventos de alguma boa maré; é assim
desde aportaram aqui uns senhores que se autorizaram chamar de seu o que nem
aos donos não foram autorizados a chamar de seu.
Comentários