Para que serve a Filosofia (?), de Mary Midgley
Mary Midgley. Foto: Leon Harris |
Vivemos num tempo
em que a tecnologia, a informação e, subsequentemente, o conhecimento avançam a
uma velocidade vertiginosa. Por outro lado, nos dias que correm também se fala
muito em especialização, na era da tecnocracia.
A ciência evoluiu
em vários campos, surgiu noutros que, no século passado soariam a pura magia e,
com isso, teve necessárias alterações no que toca à definição de método.
Da raiz etimológica
que podemos ir buscar ao grego, para significar caminho, podemos dizer que,
desde que percebemos que os paradigmas podem ser superados, não devíamos
reduzir a ciência a empirismos demonstráveis em linha reta.
Os paradigmas
quebram-se, a ciência evolui da eterna nascente que é a realidade em busca de
explicação. E, nesse ponto, ninguém nega a importância da ciência.
Contudo, será
legítimo dizer que as fontes diminuíram em tamanho ao deixarem de ser
alcançadas a olho nu. Havia os microscópios que, entretanto, foram substituídos
por tecnologias tão ínfimas, capazes de chamar ao discurso a nanotecnologia. A
unidade elementar chamada átomo, catalogada pela filosofia grega, passa a ser
enorme perto daquilo em que o podemos dividir.
A separação das
ciências exatas das ciências sociais e humanas, com Dilthey, fez já há uns
séculos com que a visão holística dos filósofos se transformasse, se
especializasse, se voltasse para a análise da linguagem, para a epistemologia,
a lógica, a fenomenologia do conhecimento, entre outros.
Ao mesmo tempo que
se deu essa especialização, foi tomada por outras ciências que emergiram no
início do século passado e, com o tempo, perdeu, em termos sociais, a
importância que teve outrora.
Nesse sentido, há
posições que a desvalorizam e outras que a chamam de novo pela necessidade de
entendermos a realidade e de a vislumbrarmos como um todo – um qualquer quid
mental que nos permita separar o trigo do joio para discernir a verdade do que
não o é, sobretudo em tempos de fake news como o que atravessamos.
Foi num dia
cinzento, em plena tempestade pandémica, que me cruzei com um livro de Mary
Midgley que nos deixa a questão a que visa dar resposta este texto: Para que
serve a filosofia?
A autora, que foi
professora de Filosofia na Universidade de Newcastle, não nos responde sem
falar em conceitos que muito fascinam: a liberdade, o que é a liberdade, bem
como o debate de questões centrais que se colocam entre a existência e a
inexistência de livre arbítrio.
O livro divide-se
em quatro partes. Na primeira, Mary Midgley busca referências, ainda que nos
coloque sempre questões. Parte do objeto da filosofia para chegar ao ponto em
que se afirma que entre duas teorias corroboradas opostas, temos que escolher.
É dessa escolha que parte para o debate das situações em que existam duas
soluções alternativas válidas.
Afirma, então, que:
“a filosofia não progride numa linha reta, acrescentando uma descoberta após
a outra, numa ordem fixa como as ciências exatas. Em vez disso, tem de manobrar
de forma de algum modo imprevisível, para acorrer às emergências que variam num
padrão de vida em mudança”.
Pelo caminho, a
autora aborda as críticas da sobrevalorização de outras ciências em detrimento
desta e lastima que o seu método tenha enveredado, em uníssono, pela lógica
analítica. Curiosamente, a autora levanta, com este livro, a possibilidade de
criação de um outro método, que permita ver o todo, com olhos de ver e sem
reduzir a realidade a uma visão metonímica da ‘parte pelo todo’.
Mary Midgley
defende que “a engenharia filosófica será sempre necessária”, até porque “os
cientistas – em especial, os físicos – precisam muitas vezes de fazer questões
filosóficas” ou, ainda, que “a ciência exige também que sejam atravessados
fossos e construídas pontes”.
Curiosamente,
relaciona a capacidade de investigar e a filosofia com o desenvolvimento dos
dois hemisférios cerebrais: a lógica estaria mais ligada ao esquerdo e o
direito estaria mais ligado a essa capacidade de enquadrar as partes numa visão
mais ampla dos fenómenos, dos factos, do conhecimento e da realidade.
A ciência é aberta
à mudança – e já o era antes de Popper o conseguir explicar. Vejam-se os
exemplos de Galileu, Copérnico, ou Einstein ou, mais tarde, com Hawking ou Higgs. Mas, além da ciência,
também o homem muda – viemos do australopitecos e continuamos a evolução na
linha do homo sapiens.
Os argumentos mudam
e as questões orientadoras, na perspetiva da autora, devem passar da hipótese
do ‘se’ para o plano da possibilidade com o ‘como’.
Chama para o debate
uma obra denominada Dance to the tune of life: biological relativity,
de Denis Noble, em que o autor também apela a que as pessoas vejam a “relevância
das perguntas em relação ao contexto mais alargado a partir do qual elas
surgem”.
Defende, assim, que
o fluxo imprevisível da experiência pessoal se conjuga com aquilo que pela sua
mecanicidade seja determinável: separá-los equivaleria a ter duas formas
parciais de representação do mesmo processo, na linha do velho exemplo do
relâmpago e do trovão.
Se nos voltarmos
para a questão do livre arbítrio, encontraremos argumentos que são totalmente
antagónicos e aparentemente irreconciliáveis, mas verdadeiros, na medida em que
não nos podemos cingir ao materialismo, tendo em conta que se alterou a própria
definição de matéria ao aceitar que alguma é invisível, do mesmo modo que, logo
depois, se aceitou cientificamente a anti-matéria.
Por outro lado, os
behavioristas reduzem tudo à determinabilidade do comportamento e a uma série
de hipotéticas causas inatas ou relacionadas com o meio em que a pessoa se
integra. Todavia, esquecem-se da segunda natureza capaz de alterar muita coisa
– a cultura.
Assim, podemos
dizer que a filosofia olha para os conhecimentos especializados, para as
diferentes formas de pensar e, com isso, torna-nos pessoas capazes de
configurar a ‘big picture’, numa
forma de “dar sentido ao todo.”
Neste ponto, confesso
que os meus olhos brilharam um pouco mais quando li:
“A razão pela
qual os filósofos acabam por ser recordados não é por terem revelados novos
factos, mas por terem sugerido novas formas de pensar (...). Depois disto, o
pensamento poderá prosseguir sob novas formas, novas direções que não terão
forçosamente de tornar desatualizados os seus predecessores. Poderá muito bem
haver espaço para ambos”.
Na segunda parte do
livro, a autora deambula pelos olhos da ciência. Questiona se há alguma ciência
que veja tudo como um todo. Afirma, nesse sentido, que “vai juntar aspetos da
vida que não foram adequadamente ligados, de modo a construir uma imagem do
mundo mais coerente e manuseável. E essa imagem do mundo coerente não é um luxo
pessoal. É algo de que todos precisamos para as nossas vidas”. Aponta, ainda, o
dedo em sentido crítico à defesa da ciência como novo remédio milagroso para
tudo, na medida em que os cientistas que defendem essa tese acabam por não
olhar para as suas debilidades e pontos fracos, alguns dos quais já referimos
acima. Como se a sociobiologia pudesse substituir o convívio humano que
pressupõe a particularidade de todos os seres detentores de particularidades próprias,
sentimentos e emoções, elementos estes de suma importância.
Na terceira parte
percebemos que, muitas vezes, temos de tomar decisões em caminhos que se nos
apresentam como alternativos ante a existência de mais do que uma possibilidade
– aí colocam-se problemas decisórios no sentido da tomada de decisão. Neste
ponto, a filosofia teria a importância de conseguirmos olhar para o tal
miradouro sobre a realidade e equacionar, à luz do autoconhecimento, do
conhecimento e das experiências adquiridas, o melhor caminho a seguir. E, neste
sentido, achei o livro muito interessante, porque a verdade é que me parece que
não existem respostas prontas e soluções milagrosas para o sucesso pessoal ou
profissional, sem que se equacione a pessoa, as suas capacidades e os valores
que defende. Não é por isso nenhum livro de incentivo ou autoajuda que engrandeça
o ego de muitos e que, muitas vezes, os faça tirar os pés do chão. Pelo
contrário.
Na última parte, a
filósofa traz a estranheza e a originalidade do caminho para a equação. Como se
tudo isso convergisse para um ponto em que todas as linhas paralelas se
encontram. E aí também se encontrariam os sentimentos e a subjetividade, a par
da sua singularidade, que é o que nos distingue da inteligência artificial.
É neste ponto que
paramos para refletir nas questões de avaliação de inteligência que a reduzem
ao hemisfério esquerdo do cérebro, em que o raciocínio se dá sem sair da linha
reta e, por isso, gerador de conclusões que se dão como certezas absolutas.
Pelo menos até serem falsificadas por outras teorias em linha reta, mas que
concluem em sentido oposto.
É indesmentível que
a Inteligência Artificial tenha cada vez mais importância e expansão no mundo
em que é indubitável a importância da ciência na redução do obscurantismo. E
isso é louvável.
Contudo, sublinho a
posição da autora quando refere que humanidade é um valor a defender. E é
importante por muitos motivos, mas sobretudo para ressalvar a importância de um
mundo que não se reduza a linhas retas de robots com elevada capacidade de
resposta através de inteligência artificial. E a humanidade é a ciência
analisada por homens, com a racionalidade e a sensibilidade necessária em áreas
como as ciências sociais e humanas, as decisões políticas ou as nossas próprias
decisões individuais ou coletivas de caminhos a seguir.
A autora vai buscar
o relativismo, que é muitas vezes utilizado por investigadores das ciências
exatas quando, por exemplo, se referem ao tempo – esse muito difícil de
compreender em linha reta, que é abstrato e além do plano da matéria que nos
limita a nós e à nossa forma de ver o mundo.
Se é evidente que
não se pode usar o subjetivismo como ciência exata, a verdade é que também não
podemos partir de uma visão antiquada da realidade, presa à física clássica ou ao
fisicalismo emergente dos círculos de Viena. O que temos em debate quebrou a
visão purista do materialismo e lançou muitas críticas ao behaviorismo, pelo que
não podemos simplesmente fingir que não existem.
Reforça-se, assim,
ante este caos, a importância da filosofia. Mas também ressalva que não se
aprende a filosofar na escola. E que muito se aprende a fazê-lo se seguirmos em
linha reta, ipsis literalis, o que nos dizem os professores. Os
filósofos nunca o fizeram. E isso nunca se confundiu com desrespeito pela sua
opinião ou pelas suas ideias. Claro que a grande maioria tinham em grande conta
e consideração os seus feitos, estudos, escritos e opiniões, bem como todo o
mérito necessário para conseguirem emitir esses mesmos estudos, feitos,
escritos e opiniões. E isso nem sequer dizer que não seguissem a mesma linha
orientadora ou matriz que era já seguida pelos seus mestres.
Os filósofos têm a
particularidade de, quase sempre, ver a realidade desse espectro mais
abrangente, pelos seus próprios olhos e pensamentos. E isso, muitas vezes,
dá-se porque os assuntos e as especialidades sobre as quais a sua atenção recai
apresentam muita lógica e pontos de ligação com outras áreas do conhecimento,
que também têm as suas especificidades e métodos.
Pensar o mundo não
é um rótulo ou uma militância. É uma forma de analisar o todo, tendo em conta
as causas dos fenómenos e não só o fenómeno, só de per si, em termos isolados. E,
ainda assim, a tentativa, muitas vezes, de o tentar compreender. E isso pode
não ser uma desconstrução. Pode, inclusivamente, até ser construtivo.
Esta reflexão sobre
a importância atual da filosofia parece-me premente. Vivemos um tempo que tudo
é cada vez mais mecanizado, em que o obscurantismo e as fake news alastram
rapidamente e em que a ciência é, indubitavelmente, essencial. Mas, por outro lado, acompanhamos
o pensamento da autora quando defende que a evolução científica tem a ganhar
com a filosofia e com o estímulo mútuo que o desenvolvimento dos dois
hemisférios cerebrais têm para essa mesma evolução seja feita com humanidade.
A autora defende que a filosofia é
absolutamente necessária. Nós concordamos.
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