baltazar serapião e o estupro no Brasil
Por Paula Luersen
© Derek Jerman |
Qual a lógica de relação com o
mundo que faz com que cento e oitenta mulheres sejam estupradas por dia no
Brasil? Para além de questões estruturais, que tipo de imagem, que tipo de crença
e de entendimento habita o foro íntimo dos perpetradores dessa violência? A
pergunta é já muito incômoda. Poderíamos tentar recorrer à lógica do
patriarcado e à violência endêmica em um país tão desigual. Esses são discursos
que muitos de nós já cansamos de proferir e ouvir e que, nem por isso,
poderemos deixar de reafirmar. Penso, porém, em outras maneiras de colocar essa
violência em termos, que talvez saibam escapar ao anestesiamento frente aos
discursos já proferidos, aos números e porcentagens. Formas de dizer que tragam
uma consistência outra para esse problema e ainda nos surpreendam:
“uma mulher é ser de pouca fala,
como se quer, parideira e calada, explicava o meu pai, ajeitada nos atributos,
procriadora, cuidadosa com as crianças e calada para não estragar os filhos com
os seus erros. também para não espalhar pela vizinhança a alma secreta da
família, que há coisas do decoro da casa que se deve confinar aos nossos. Assim
se fazia a minha mãe, barafustando dia a dia, mas liberta das intenções de nos
educar coisas inúteis ou falsas, que fizessem de nós rapazes menos homens ou
simplesmente iludidos com um mundo que só as mulheres imaginavam”.
“eram [as mulheres] instáveis,
temperamentais, aflitas de coisas secretas e imaginárias, a prepararem vidas só
delas sem sentido à lógica. Tinham artefatos e maneiras de parecer gente sem
quererem perder tudo o que deviam perder. Eram, como sabíamos tão bem,
perigosas”.
Esses são trechos de O remorso de
Baltazar Serapião, livro de Valter Hugo Mãe. A obra propõe uma experiência de
leitura extremamente difícil tal a crueza dos juízos que eram e ainda são expedidos
sobre as mulheres. O livro traz a história da família Sarga, subjugada ao domínio
de um Senhor, dono de terras e provido de grande prestígio, sustentado pelos
dominados. Embora a história se passe na Idade Média, esse dado fica pouco
evidente pela escolha do autor em centrar a narrativa na fala do narrador – o
primogênito da família – que coloca em primeiro plano os inúmeros elementos de
discursos que ainda hoje se sustentam no imaginário coletivo, atuando social e
politicamente quando o assunto é o corpo, a vida e o direito das mulheres.
Ao encarar esse personagem, Valter
Hugo Mãe consegue nos dar a medida da covardia que sustenta a fala e as ações dos
membros da família retratada. Mais do que isso, nos mostra como a covardia
transpassa todas as searas da vida comum desses indivíduos, tornando-se sua
maneira de existir no mundo. O temor, o acanhamento e a falta de coragem, que
caracterizam uma existência covarde, acabam levando a outra de suas expressões:
a violência contra o mais fraco. Me refiro aqui às crianças. Nessa seara,
chegamos ao quadro mais terrível não só de um livro calcado nas crenças da
Idade Média, mas da nossa realidade atual: revelou-se, na semana passada, o
dado de que cinco crianças de dez a catorze anos são internadas por dia no SUS,
em média, em decorrência de abortos. Crianças de dez a catorze anos, sublinho. Esse
é o número de crianças que conseguem chegar a postos de atendimento do SUS e
sabemos que ele é apenas uma parcela da realidade ainda mais desoladora.
Voltemos ao livro:
“a brunilde tinha onze anos quando
foi para a casa [do Senhor]. diziam que lhe vinham as mamas tardava nada,
preparava-se para ser leiteira. as mulheres quando se tornavam leiteiras podiam
aceder a maior discernimento e os trabalhos a que se destinavam deviam ser
aproveitados de imediato”.
Embora
a leitura dessas linhas nos soe ultrajante, ela expõe com feroz assertividade a
condição de desumanização a que esses corpos, ainda imberbes, foram e são
sujeitados. O livro retorna ao momento em que foram geradas muitas das máximas sobre
os corpos das mulheres, passadas de geração em geração, inundando de crenças os
conhecimentos populares a partir do poder da Igreja. O autor retorna ao ideário
que associou curandeiras, parteiras e mulheres comuns à figura da bruxa. E é doloroso
pensar que muitos dos ditames que figuram no livro ainda atuem, na nossa
realidade, como pano de fundo de nossas mazelas sociais. Estamos fartos da
abordagem desse problema a partir da ótica do particular. Se pensássemos tal
fenômeno entendendo-o como individual, como chegaríamos a esses números? Cinco
crianças internadas por aborto no SUS diariamente no Brasil. Cento e oitenta
mulheres estupradas por dia.
“quando a ermesinda veio, entrou
no nosso lado da casa (...) surpresa com a minha aparição gaguejou algo que não
ouvi, tão grande foi o ruído de minha mão na sua cara”.
“ficou revirada no chão, esfregada
de dores no corpo todo, a respeitar-me infinitamente para se salvar de morrer,
e como me deitei fiquei, surdo de ouvido e de coração”.
É
um exercício angustiante colocar-se dentro das páginas do livro de Mãe, mesmo
que a partir da distância que a narrativa nos permite. É mais terrível, porém,
imaginar que tal violência é parte da vida diária de tantas mulheres e
crianças. Ou melhor, da vida diária do país. Lembremos dos médicos que
diariamente se deparam com mulheres e meninas que passaram por abusos nos
plantões; lembremos dos professores que diariamente convivem com crianças vítimas
de violência em escolas públicas e particulares; lembremos de amigos, de
vizinhos, de conhecidos e de colegas de trabalho que percebem a violência se
abatendo contra alguém muito próximo. Tarda a considerarmos esses abusos como
problema social, que não será resolvido com denúncias irrisórias.
Para além de enquadrar tal
realidade como particular, existe ainda uma outra ótica muito comum dedicada ao
problema que diz respeito a fazer acreditar que ele está para além da casa. No
escuro das ruas, no caminho mal tomado, nos espaços sociais que as mulheres se
atreveram a ocupar. Conforme os números comprovam, contudo, é no centro da
família, essa instituição hoje tão defendida e ostentada pelo poder público, no
centro da família brasileira que o problema encontra sua preponderância.
“se lhe dei o primeiro corretivo
de mão na cara não foi porque não a amasse, e disse-lho, existe amor entre nós,
assim te aceitei por decisão de meu pai que quer o melhor para mim, mas deus
quis que eu fosse este homem e tu a minha mulher, como tal está nas minhas mãos
completar tudo o que no teu feitio está incompleto [...] deitei-me, a minha mãe
estremeceu do lado de lá da parede. o meu pai desconfiou do meu pulso para
decidir a vida sozinho. o aldegundes arrepiou-se por todos, ali sozinho de mim
[...] a saber que cada um de nós se afastava para uma nova realidade, apartados
pelas opções e papeis que nos eram destinados desde sempre”.
O
fato é que, ao nos deslocar para dentro de uma família subjugada pelas relações
de trabalho na Idade Média, ficamos com a sensação de que Valter Hugo Mãe não
fala de outra coisa que não das questões que nos preocupam hoje. A grande
maioria dos atos de violência se dão e se acobertam no centro das famílias. O
autor é preciso em apontar o decoro, a ideia de manter particulares os segredos
da casa, como uma das estratégias mais bem sucedidas de todo esse ideário machista.
Cabe frisar que o autor também constrói personagens destoantes, que buscam e encontram outros destinos. Se não escapam à violência, tomam para si o propósito de não perpetuá-la ou o objetivo de combatê-la. Mas não são esses os personagens que se encontram com os dados mencionados aqui. Cento e oitenta mulheres são estupradas por dia no Brasil. Cinco crianças de dez a catorze anos internadas no SUS diariamente em decorrência de abortos. Se o livro constrói outros personagens e nos leva a intuir possibilidades capazes de modificar esse problema, não é esse o ponto em que se encontra a nossa realidade geral. Enquanto país, infelizmente, ainda não conseguimos passar dos primeiros capítulos.
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