Paterson, de Jim Jarmusch
Por Pedro Fernandes
Como se determina ou se forma a persona
do poeta? A pergunta cavilosa motivou o derramamento de baldes e baldes de
tinta na tentativa de se copiar uma resposta que nunca chegou a ser
satisfatória, embora a escola romântica tenha se encarregado de fincar suas
raízes ao máximo limite da profundidade, ao ponto mesmo de muitos dos brotos da
imensa árvore que aí se formou ainda verdejarem sobre nós quase quatro séculos
mais tarde. À frente disso, talvez só a escola modernista, mas não sem deixar de
barganhar uma conta impagável com a primeira. O poeta como uma entidade em
contato com o incognoscível e todas as derivações daí possíveis (o profeta, o
louco, o alheado) e a figura de espírito esponjoso, facilmente capaz de
absorver as dores do espírito (sobretudo as da coita amorosa) são duas das mais
significativas imagens da forja romântica. Depois, sua capacidade individualista
de sozinho dizer de si e do mundo com a força da própria luz advinda do gênio que
o ilumina. E reside aqui o ímpeto da voz inusual que mesmo de corte corriqueiro
consegue se instituir única no amplo corredor de vozes que determinam o panteão
dos poetas ─ quer,
dizer, esse modelo que persiste entre nós desde o modernismo.
As tentativas de resposta para a
pergunta colocada na abertura destas anotações não pertencem apenas aos campos
teóricos ou da historiografia dos mais diversos. Ela está na base de uma
variedade de produtos que investigam os costumes, as feições, os motivos de uma
obra e de seu criador; neste rol, podemos acrescer biografias, documentários,
entrevistas e obras de ficção das mais variadas expressões e formatos. De
maneira que, de alguma forma, é essa a questão na base e a justificativa da
narrativa de Jim Jarmusch com Paterson, um filme que, mesmo repetindo
alguns pequenos clichês de feições românticas (nunca podemos fugir deles
totalmente, como dissemos), está circunscrito nas dimensões de uma pequena e
delicada pérola. A narrativa escolhe uma escala de tempo cronológico, este ao
qual todos estão submetidos, mas persegue outra dimensão, aquela formada pelos
pequenos episódios que toldam o movimento corriqueiro daquela primeira e neles
encontra um vasto campo de investigação sobre o poeta enquanto aquele que
repara essas circunstâncias, as mesmas que influenciam seu trabalho com a
palavra.
Primeiro falemos sobre os pequenos
clichês, só mesmo a fim de pontuá-los porque não são coisas que atordoem a
beleza do filme. Além do lugar à parte no mundo verificado pelo ambiente de
contraponto ao exterior, a casa, o principal deles é a reiteração do poeta tomado
pelas artimanhas da musa; a singular recorrência de Dante e Petrarca em dois
diferentes momentos da narrativa não é gratuita. Além de reavivar certa ideia na
economia das trocas criativas do poeta que aspira alcançar ou superar o seu
maior, é a história do enovelamento amoroso-poético na base criativa desses
dois poetas que reverbera no pequeno casal formado por um simples motorista de ônibus
de Paterson e sua companheira, a dona de casa de ideias extravagantes que sonha
pela mesma medida, de ser uma fabulosa feitora de cupcakes ou uma estrela da
música country. Ela própria não deixa de reparar a coincidência de ter o mesmo
nome que a musa de Petrarca: Laura.
Ao longo do filme, aliás, não
deixamos de acompanhar o morno do amor cujo calor readquire uma temperatura mais
ardilosa num dos poemas do pretenso poeta. Vale pensar, pelo sentimento
variável que esse relacionamento alcança, que a presença do amor é também uma
maneira de oferecer um contraponto para o avivamento dessa persona em
investigação. Isso significa compreender o elemento trivial não é deslocado,
mas cumpre sua função de amplitude da atmosfera proposta. Todo o idealismo de
Laura constitui um espírito que está contraposto ao do companheiro, racional e
metódico como exige sua profissão, traço que inunda toda sua existência e as
vivências do casal.
Falamos sobre coincidências. E o
ritmo de repetição da narrativa fílmica, que é o próprio ritmo da rotina, mas
também um refrão ou um verso que se repete ao longo de um poema, é constantemente
invadido pelas coincidências; elas estão na contínua imagem dos gêmeos que
estão em toda a parte da cidade, estão nos encontros fortuitos desenvolvidos
pela personagem principal do filme, estão mesmo nas implicações entre as
figuras evocadas e o enredo proposto. Em termos de identidade, não findam na
correlação entre musas de mesmo nome, está o nome do protagonista. Paterson é o
nome da cidade que forma a geografia da narrativa e é também o nome do
motorista de ônibus que, nas horas vagas, escreve poesia.
E está aqui, nessa personagem ora
integrada ora estrangeira no seu próprio meio, toda a beleza do filme. O poeta
é um homem comum, preso à roldana repetível dos modelos estabelecidos pela ordem
que encontra na palavra escrita uma maneira de acesso e compreensão sobre o
mundo e essa condição sisífica dele e de todos. E, não há imagem mais cara
entre as formulações mais atuais sobre a poesia: esta não é o excepcional, o
que se integra a uma dimensão onde só os deuses ou os afeitos a essa condição
podem alcançar. Mesmo porque há muito que o excepcional, ainda que possa
atordoar nossos sentidos, deixou de nos servir de verdade absoluta, um deus ou
um destino que sobre nós se abate; este tempo se transformou na poeira que
agora forma nosso imaginário e que irrompe vez por outra nas ações, decisões e
gestos cotidianos, incluindo entre eles, a criação. Por mais que este poeta
recorra ao seu Parnaso particular ─
o belo cartão-postal de Paterson diante do qual o motorista se motiva a ampliar
e revisar seus poemas e onde se encontra com a figura que reacende seu ímpeto
para a poesia ─ é
sobre fósforos, trânsito, para-brisas e encontros fortuitos, o que sua escrita
contempla.
Dissemos acima que o filme de Jim
Jarmusch elege o tempo do calendário, mas persegue outra dimensão. O primeiro
responde pela organização interna do enredo: cada dia da semana, entre uma
segunda-feira e outra, funda um pequeno episódio que se baseia na mesmidade das
coisas. Acordar, tomar café, vestir-se, ir ao trabalho, escrever, almoçar,
retornar para casa, jantar, sair para passear com o cachorro, ir ao bar para um
copo de chopp, dormir e repetir o mesmo ciclo da existência comum que parece
oferecer variações mais bruscas apenas nos finais de semana quando as
atividades do mundo material se substituem pela companhia a Laura, pela leitura
e as pequenas celebrações do casal. Mas, ainda que o tempo hodierno funcione
dessa maneira, entre as repetições, irrompem pequenas variações e é nelas que
se deposita a atenção maior da narrativa e, de uma maneira, que mesmo os nossos
sentidos domesticados talvez custem reparar.
Parece então que Paterson cobra do seu espectador uma modificação dos sentidos para alcançar esse tempo outro
que se perde na pressa do dia. A poesia nunca é mediada pelo tempo do relógio,
mas não é puramente efeito contemplativo, tampouco superior ao rotineiro ou
preso a uma dinâmica da qual tenhamos que abdicar do que somos. Essas qualidades,
o filme parece inquirir, somam-se às vivências dos aspirantes à criação mas
incapazes dela, tarefa que sobra na narrativa para os idealistas como
companheira de Paterson.
Não é à toa, portanto, que a
referência fixada na minúscula fotografia no reservado do porão onde às vezes
se isola para ler e escrever, muitas vezes, no livro ao qual sempre retorna, ou
mesmo a feliz coincidência de ser um nascido na mesma cidade, seja William Carlos
Williams. O médico que, nas horas vagas escrevia poesia e se firmou entre os
mais importantes da literatura estadunidense pela capacidade de transformar,
segundo José Paulo Paes, todo assunto ou objeto em matéria de poesia. O fugaz,
o diminuto, o aparentemente desimportante, ainda repetindo as palavras do nosso
crítico e poeta, são emprestados para a construção da persona ficcional construída
por Jim Jarmusch.
A citar essa referência
onipresente na narrativa, outras não deixam de passar despercebidas e guardam
em pequena medida sua influência no desenvolvimento do enredo: a comédia de Lou
Costello, o pacifismo de Allen Ginsberg, e a variada estirpe herdeira de William
Carlos Williams, seja o citado Ginsberg ou a Escola de Nova York (ENY),
referido pelo nome de Frank O’Hara, ou a figura antecessora da poética do
cotidiano, Emily Dickinson, e o herdeiro contemporâneo desse método sistematizado
pela ENY, Ron Padgett, o verdadeiro autor dos poemas que dão forma a Paterson.
Mesmo o terror de Erle C. Kenton, no filme que o casal Paterson e Laura veem
para celebrar o sucesso das suas vendas de cupcakes na feira da cidade ─ Island of Lost Souls
foi a primeira adaptação cinematográfica sonorizada de A ilha do Dr. Moreau,
de H. G. Wells ─
prenuncia, de alguma maneira, o novo círculo que se abre depois desse
instante celebrativo. Como dissemos, nada é, ainda que livre, gratuito neste filme-poema
de Jarmusch. O conjunto variado de referências expõem dessa forma outra matéria
do fazer poético e da persona do poeta posterior à modernidade: o poema, e por
sua vez seu criador, é resultado de um convívio com episódios e materiais
diversos; o poema é um sistema bricoleur.
Quando nos referimos às influências
do poema que determinam a própria estrutura do filme ou o tratamos por filme-poema
não nos guiamos apenas por um sentido gratuito favorecido pela narrativa
fílmica; Paterson, a cidade e a personagem principais, é também o título de um
poema de William Carlos Williams. Escrito sob influência do Ulysses, de
James Joyce, romance paradigmático sobre a trivialidade da vida, a tentativa do
poeta era, no mesmo ritmo do cantar sua aldeia para o mundo, registrar a
fortuidade do seu próprio tempo. Este exercício, bem se vê, determina a
organização e o funcionamento da narrativa de Jarmusch, sobretudo se repararmos
na coincidência em nada fortuita entre a personagem e a cidade. Todo poeta é
não apenas uma voz que se distingue no tempo como é também um lugar no tempo e
é este o papel materializado neste homem-cidade vivido por Adam Driver.
Como se determina ou se forma a persona
do poeta? As respostas, quando muitas, significam de alguma forma, que nenhuma
é satisfatória. Paterson escolhe uma das linhas possíveis, já
sedimentadas na tradição dentro e fora da literatura estadunidense, e responde
que o poeta é, simultaneamente, homem entre os homens e aquele capaz de imprimir
sentido ao que escapa dos sentidos comuns. A julgar pelo mundo que habitamos,
essa atitude se revela crucial porque uma existência integralmente invadida pela
força do tempo comum se não nos conduz à barbárie, tal como reproduz alguns
mais fatalistas talvez ainda imersos num sentido coletivo da expressão poética,
nos sufoca por inanição. A poesia oferece algum suspiro com o qual retornamos à
superfície um outro de nós mesmos. Parece útil, fechar estas notas com um poema
de William Carlos Williams que amarra essa imagem final. Chama-se “A duração”,
na tradução de José Paulo Paes (Companhia das Letras, 1987):
Uma folha amarfanhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho
e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo
arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando
veio um carro e lhe
passou por cima
deixando-a aplastada
no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi
com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.
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