Encontros machadianos: Carpeaux e seu companheiro de bordo
Por Guilherme
Mazzafera
Ilustração para Memórias póstumas de Brás Cubas. Mariana Rio. |
A
recorrência de Machado de Assis, bem como de questões relativas à sua obra,
funciona quase como leitmotif em meio à verdadeira paideia que Otto Maria Carpeaux
mobiliza em sua crítica literária. O interesse inicial por Machado parece se
localizar no próprio ato de fuga, exílio e imigração para o Brasil, em 1939,
ano do primeiro centenário do escritor carioca. Em seu último livro, a
biografia intelectual de Alceu Amoroso Lima, o primeiro brasileiro que
conheceu, Carpeaux rememora o caráter de incógnito do Brasil em face do mundo
europeu: “naquela época o Brasil estava praticamente desconhecido no mundo. Na
Europa só se sabia das queimadas de café e de algumas revoluções meio obscuras,
suspeitamente parecidas com os golpes de Estados das repúblicas
hispano-americanas.” Ignorando quaisquer grandes nomes de seu futuro lar, com
exceção de Villa-Lobos e do próprio Alceu, Carpeaux decide dedicar-se durante a
viagem marítima a sanar tais faltas, recorrendo à biblioteca de bordo: “e foi
no navio, lendo uma história da literatura brasileira, escrita por um lusófilo
francês, que encontrei pela primeira vez o nome de Machado de Assis” (1978, p. 12).
Na famosa
entrevista a Homero Senna, de 1949, perguntado sobre qual fora a primeira obra
brasileira que tomou contato, diz Carpeaux: “As Páginas Recolhidas, de
Machado de Assis; o capítulo ‘O Velho Senado’ ainda me parece a maior página
que li em prosa portuguesa.” (SENNA, 1996). Nesta mesma entrevista, realizada
em um momento no qual Carpeaux já havia escrito ao menos dois artigos sobre
Machado, a primeira redação completa da História da literatura ocidental
(escrita em 1944-1945 e publicada entre 1959-1966, com atualizações) e
preparava a Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira (1951), o
crítico assinala sem titubear seus autores brasileiros favoritos do passado: “Machado
de Assis; e, apesar dos defeitos evidentes, Lima Barreto e Augusto dos Anjos,
porque são os mais brasileiros, os que me dizem coisas que ignorava na Europa.”
Em um adendo
que amplia um pouco a dimensão da descoberta machadiana, Carpeaux relata um
encontro um pouco mais prematuro com as queridas páginas de “O velho senado”:
“Num dia de
verão de 1938, passeando pelas ruas estreitas em torno da catedral de Bruxelas,
encontrei num ‘sebo’ um pequeno livro: uma velha antologia da literatura
brasileira, trechos traduzidos para o francês por aquele grande amigo de Oliveira
Lima que foi Victor Orban. Cerrando os olhos, ainda vejo o volume amarelo,
esfarrapado pelo muito uso, que perdi depois, não sei como. Não me podiam
atrair muito as poesias de Álvares de Azevedo e Castro Alves, traduzidas para
uma prosa francesa sem jeito. Mas havia lá um trecho que as artes do tradutor
não chegaram a danificar demais: as últimas páginas de “O velho Senado”, de
Machado de Assis. Li e reli até saber de cor a frase final sobre os cemitérios
que ‘todos se parecem’. E dizia para mim: ‘Vale a pena aprender a língua
portuguesa!’” (“Depoimento machadiano”,
1958)
Ainda que
não completamente desfiguradas pela tradução, o sabor dessas páginas será o
acicate necessário para um empreendimento mais amplo, o aprendizado de uma nova
língua: “aprendi o português exclusivamente por via de leitura. Li muito. E li
muito Machado de Assis. E até hoje, tantos anos depois, não perdi o hábito de
relê-lo. Não só admiro. Cheguei a amá-lo, assim como se ama ‘o vinho da verdade
que embriaga’” (1958).
O encontro com
Machado, portanto, tem sabor de novidade e desvelamento, e não de reposição em
chave tupiniquim de verdades e experiências europeias. É, em certa medida, um
encontro com o país em sua máxima potencialidade estética. Dá testemunho disso
outra observação do mesmo “Depoimento machadiano”. Se foi lendo Machado que o
crítico aprendeu a “amar o Rio de Janeiro”, uma percepção mais funda –
afiançada de certo modo por palavras do próprio Machado e que ainda vige como
lugar-comum – se coloca: Machado é um twice-born cuja distinção em fases de sua
literatura fala de outra cisão mais significativa, entre a obra literária como
“documento histórico” e, por outro lado, como “contribuição à literatura
universal” (“Problemas da história literária brasileira”, 1999). Embora não
consiga pensar em outro autor em que tal cisão apareça de modo tão expressivo,
Carpeaux não procura reduzir o fato a singularidade nacional, gesto contrário,
a seu ver, à própria ficção machadiana, cujo escrutínio psicológico do “homo
brasiliensis” ensinou-lhe, “brasileiro adotivo”, “que as criaturas humanas são
mesmo iguais sob todos os céus, em todos os meridianos” (“Depoimento
machadiano”, 1958). Neste sentido, a aproximação à literatura de Machado, assim
como a seu autor, oferece uma dupla camada: “É preciso ler Machado, primeiro,
para saber como são os brasileiros; depois, para saber que são assim mesmo os
homens”. Trata-se de síntese poderosa, verdadeiro mote crítico que não despreza
a particularidade imediata ou vínculo necessário do estudo da obra machadiana
com seu chão histórico, mas reconhece que ele sozinho não possui força estética
suficiente, pois não dá conta por completo da “verdade da ficção” (“Tradição e
revolução”, 1999). Em outras palavras, machadianas, trata-se do encontro em
camadas, pelo olhar atento, com o “sentimento íntimo” que anima o pulsar das
grandes obras. Vejamos em detalhe, agora, três desses encontros.
Em “Aspectos
sociais da história literária brasileira” (1943), Carpeaux propõe de pronto a
eficácia da “aplicação dos métodos modernos de historiografia literária à
literatura brasileira”, desde que, naturalmente, suas origens sejam conhecidas,
evitando generalizações impróprias, de modo que a singularidade das obras acaba
por exigir “uma aplicação individualista” de qualquer processo interpretativo.
Se em outro ensaio contemporâneo deste (“Visão de Graciliano Ramos”) Carpeaux
pensa a noção de estilo como escolha do que deve perecer, aqui ele delineia
certa imanência entre a “atitude social” de um autor e sua manifestação
estilística, imprescindível para compreender aquela. O passo mais curioso é o
deslocamento de uma tipologia emprestada de Max Weber e seus “tipos ideais”
para pensar os lugares ocupados por determinados escritores brasileiros que,
como literatos, “chegam sempre um pouco tarde” em relação à pureza dos tipos,
dos quais são progênie: latifundiário pastoril (José de Alencar e seu
“indianismo artificial”); latifundiário sedentário (Joaquim Nabuco e seu
“liberalismo conservador”); burguesia rural (Euclides da Cunha e suas “visões
de dimensão cosmológica”); pequeno-burguês (Lima Barreto e seu “ceticismo
voltairiano”). Em seu conjunto, são escritores cuja expressão literária é
condizente com a “situação social do seu país”, mas que se mostra anacrônica em
relação ao século: “são filhos. Chegam tarde demais”. Resta a figura do
proletário, que ainda não existe na consciência brasileira e cuja origem social
faz-se notar apenas “quando venceu na vida, elevando-se até pertencer à elite”.
Eis Machado, que emerge antes de sua classe e, por isso, traz consigo
literariamente “uma realidade individual”. Se pensarmos naquilo que Carpeaux
formulará anos depois, a disjuntiva entre elementos propriamente brasileiros e
possíveis contribuições à literatura universal, Machado aparece neste texto
dentro do paradigma do “escritor de exceção”, não tanto porque não se pode
filiá-lo imediatamente às expectativas do presente nacional – que, para
Carpeaux, é marcado por sucessivos anacronismos –, mas como aquele que vem
antes, que anuncia e antecipa, e que deixa, pela sua literatura, ao invés de
documentos de seu tempo, um efetivo “valor literário”: “um estilo”.
A segunda
aparição mais ostensiva de Machado dá-se em um único e longo parágrafo da História
da literatura ocidental. A literatura brasileira nela comparece não como ramo
isolado, mas galho menor de uma mesma árvore inquebrantável, da qual se
extraem, no dizer de Antonio Candido (2004, p. 104), “os grandes conjuntos
orgânicos que exprimem o ritmo criador das épocas”. Assim, não é de estranhar
que o parágrafo machadiano esteja alocado entre Thackeray, Edward Fitzgerald (e
sua tradução dos Rubaiyat) e Anthony Trollope. Na análise do primeiro, observa
Carpeaux uma espécie de nota prolongada de “espírito cáustico” e “tristeza
dissimulada” que remete a outros contemporâneos, no caso, Flaubert, Turguêniev
e Machado. Alocado na “Parte VIII – A época da classe média” e sob o capítulo
“Literatura burguesa”, no qual Balzac é um dos nomes centrais, Machado
comparece como uma espécie de vitoriano deslocado, em que se casam “ceticismo e
malícia muito intensa”, características de um “poeta exótico” que se
anglicizou. Tal exotismo é sentido, no entanto, mais no Brasil do que na
Inglaterra, cujo conjunto de influências literárias é o que o distingue em seu
país natal. Autor de romances satíricos “à maneira de Thackeray” e com algum
parentesco não explícito com Jane Austen, Machado se revela pout-pourri de
influências que “não explicam o gênio”: há o eco dos moralistes franceses,
sobretudo La Rochefoucauld; uma intuição sobre Leopardi, desenvolvida por
Carpeaux em outros ensaios; e não poucas leituras de Schopenhauer. Ao caráter
incrível dessa mistura complexa manipulada por um “mulato autodidata do Rio de
Janeiro semicolonial da época”, soma-se o recorte histórico preciso, em que “um
grande escritor vitoriano” emerge em um Império que “em 1880 era semicolônia da
Inglaterra Vitoriana”. Se os romances podem evidenciar possíveis defeitos de
composição que uma crítica severa apontaria, é nos contos que se manifesta o
“sentido de forma latino do mulato latinizado”, cuja poesia fúnebre e irônica,
atravessada por uma consciência rigorosa da morte que o faz superar qualquer
imitação servil de vitorianismo, faz-se sentir na atmosfera “que envolve os
berços e os leitos de morte de seus personagens” (CARPEAUX, 2011, p. 1735-1737).
Por fim,
chegamos ao estudo mais famoso de Carpeaux sobre Machado, “Uma fonte da
filosofia de Machado de Assis” (1948, posteriormente escolhido como abertura de
Respostas e perguntas, de 1953; 1999, p. 477-480), texto paradigmático para
pensar o modo como o crítico se relaciona com a literatura nacional. Nele,
Carpeaux parece buscar uma filiação, uma afinidade de espírito em torno da
noção de materialismo em um amplo recorte que vai de Epicuro a uma célere
referência ao Manuel Bandeira de “Momento num café”, para dar conta de uma
semelhança íntima entre o delírio de Brás Cubas e o “Dialogo della Natura e di
un islandese”, que integra a prosa das Pequenas Obras Morais (Operette morali)
do poeta italiano Giacomo Leopardi, textos que se enlaçam pelo encontro de seus
protagonistas com um vulto grandioso e desmesurado em figura de mulher,
representando a Natureza como mãe “inimiga de todas as criaturas”.
Além de
sugerir um possível diálogo entre as obras, mesmo que de forma indireta via
Schopenhauer, Carpeaux procura também refutar uma imagem acomodatícia do poeta
italiano entre nós, a de “romântico melancólico”. Caso o tenha conhecido,
sugere o crítico, Machado teria percebido algo diverso, “um pensador poético ao
qual o ligavam profundas afinidades”, em especial o aspecto de “lucidez” que
curiosamente caracterizaria o delírio de Brás Cubas. Enumerando os autores em
distinções fundamentais – Epicuro não epicureu, Leopardi triste, mas não
elegíaco –, Carpeaux chega a uma percepção crucial sobre Machado: “embora
espirituoso, não foi um cético; ele também – ‘a vida é boa’ – foi
materialista.” Por fim, indica uma possível fonte comum desse materialismo
partilhado pelo italiano e o brasileiro: Pascal, em cujo ceticismo haveria uma
importante fagulha de inquietação espiritual (“não podem existir pagãos depois
do advento do cristianismo”). Nota-se, portanto, um refinamento de termos em
relação à visada da História da literatura ocidental, em que Machado se
irmanava a autores europeus por certo ceticismo de base não muito diferenciado.
A este
estudo, Carpeaux acrescenta uma espécie de apêndice, “Um poeta materialista”
(1955), em que aprofunda sua percepção do materialismo leopardiano, o que nos
permite, por conseguinte, entender melhor o que pensa sobre Machado. O
“pessimismo inconsolado” de Leopardi não seria presa do derramamento byroniano
ou mussetiano, mas expressão de um “classicismo mediterraneamente lúcido” atravessado,
em sua prosa, por um veio humorístico essencial. Carpeaux, no entanto, contesta
o pessimismo do autor italiano ao entendê-lo não como filosofia, mas, sim,
estado de alma. Retomando o “Dialogo della Natura e di un islandese”, o crítico
desloca a cisão inicial entre poesia e verdade para o dissídio entre natureza
humana e Natureza, pois esta – ou a matéria –, que prescinde do homem, é
eterna. Por fim, Carpeaux ensaia que há algo além desse materialismo – mas não
uma elegia – pois “um livro de poesia intensa nunca nos despede sem consolo”,
mesmo em prosa. O que parece essencial nesse díptico leopardiano é a
caracterização do materialismo de Machado de Assis não em chave meramente
filosófica, mas como atitude em face das coisas do mundo e que, por isso mesmo,
não tem a pretensão das teorias de que Machado tanto aproveitou ironicamente.
Dos três
encontros descritos acima, é possível evidenciar algumas constantes: a busca
por um locus machadiano nas literaturas nacional e internacional, a procura por
filiações e afinidades transnacionais e o traslado de opções metodológicas
estrangeiras para repensar a inserção de Machado entre nós. Retomando as
“figuras machadianas” propostas por Hélio Guimarães (2017), pode-se dizer que
as intervenções de Carpeaux parecem se localizar na tensão dialética, tão cara
a seu pensamento, entre “o escritor de exceção”, sem lugar no corpo literário
nacional de sua época, e o “homem representativo”, cuja obra não se pode
dissociar do chão histórico e da própria cidade que a anima. O esforço por
deslocar, reconfigurar e repensar a obra machadiana pela criação de novos
contextos críticos, fruto de um locus movente, parece indiciar certo sentido de
insuficiência percebido nas interpretações disponíveis à época em dar conta das
especificidades da forma machadiana, em compreendê-la criticamente, algo que
começa a tomar corpo em período próximo ao abandono da literatura por Carpeaux
em meados dos anos 1960 em prol da luta política e que ainda continua se
fazendo “em torno do autor realista”, construção tensionada pela
internacionalização da obra de Machado. Se os tivesse escrutinado, Carpeaux não
deixaria de escrever algumas palavras sobre o inalienável alcance formal de
estudos como os de Roberto Schwarz, Alfredo Bosi, Silviano Santiago e John Gledson.
Mas, suspeitamos, ainda ressoaria nelas uma leve dissonância, uma sutil
advertência em staccato: “É preciso ler Machado, primeiro, para saber como são
os brasileiros; depois, para saber que são assim mesmo os homens.” (CARPEAUX,
1958)
Referências
CANDIDO,
Antonio. “Dialética apaixonada”. In: Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2004, pp. 98-106.
CARPEAUX,
Otto Maria. “Aspectos sociais da história da literária brasileira”. Rumo. Rio
de Janeiro, 3ª fase, ano /i, 3º trimestre 1943, n. 2, vol. I, p. 17-21.
Disponível aqui.
CARPEAUX, Otto Maria. “Uma
fonte da filosofia de Machado de Assis”. A Manhã, “Letras e Artes”, Rio de
Janeiro, 4 abr. 1948, n. 80.
CARPEAUX, Otto Maria. Pequena
bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1951.
CARPEAUX, Otto Maria. “Um
poeta materialista”. A Tribuna. Santos, 21 ago. 1955; O Jornal. Rio
de Janeiro, 21 ago. 1955.
CARPEAUX, Otto Maria. “Depoimento
machadiano”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 27 set. 1958, p. 2.
CARPEAUX, Otto Maria. Alceu
Amoroso Lima por Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978.
CARPEAUX, Otto Maria. “Problemas
da história literária brasileira” e “Tradição e revolução”. In: Ensaios
reunidos – Vol.I (1942-1978). Organização, introdução e notas de Olavo de
Carvalho. Rio de Janeiro: Topbooks; UniverCidade, 1999.
CARPEAUX, Otto Maria. História
da literatura ocidental. 1.ed. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1959-1966. [4.ed.
São Paulo: Leya, 2011].
GUIMARÃES,
Hélio de Seixas. Machado de Assis, o escritor que nos lê. São Paulo: Unesp,
2017.
SENNA,
Homero. República das Letras. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.
Comentários
frequentar escola, tenha conseguido o nível de erudição e conhecimento a que chegou. E olhe que o Rio de Janeiro, de onde nunca saiu, era uma cidade, embora sede do império, mais do que provinciana, falta de bibliotecas que pudesse, como Joyce, estudar. Chegamos mesmo a duvidar da necessidade de um artista frequentar escolas, a maioria das vezes, simples repetidora de conteúdos, sem qualquer possibilidade de aprofundamento de conhecimento. Sei o quanto é difícil escrever uma linha, e, falo disto no meu romance Noite em Paris, o que me ainda mais abismado com a fluidez de Machado de Assis no seus escritos. Acredito que seria um dos grandes do mundo não fosse brasileiro e escrevesse em português.