Sérgio Sant'Anna, um esteta da língua dos raros na literatura brasileira
Por Pedro Fernandes
Sérgio Sant'Anna. Foto: Daniel Ramalho. Arquivo do Jornal Cândido. |
Em 2019,
Sérgio Sant’Anna pode comemorar, sem alardes, os cinquenta anos de carreira
literária; é bem verdade que, como todo grande escritor, a data é simbólica.
Não apenas pelos sentidos nela implicados ― a tradição com a palavra e a dedicação
a um ofício ―,
mas porque através dela foi possível estabelecer uma retrospectiva sobre
o desenvolvimento de um universo, cujas fronteiras continuavam ainda em franca expansão. “A cada nova
obra, procuro fazer alguma coisa diferente. Do contrário, perderia a graça”, disse em 2018 ao jornal Cândido; e sabemos que o escritor carioca seguia ativo na porfia da renovação literária.
Na efeméride,
a casa editorial que publicou a obra do escritor desde o fim dos anos
1980, reeditou por recomendação de uma amiga de Sérgio Sant’Anna, o romance Amazona.
O livro sempre apresentado como uma ótima opção para o acesso ao trabalho
criativo do mestre da ficção brasileira foi publicado em 1986 e estabelece um
diálogo bastante atual com a política do feminino, além de recobrar algumas questões
históricas que estiveram sempre em pauta no Brasil, um debate que, nos últimos
anos havia se constituído uma frente de questionamento nas intervenções públicas
do escritor nas suas redes sociais.
A reedição
de Amazona foi o gesto mais alto num ano que poderia, se fosse o autor nascido
num país mais atento aos seus, ter sido o mais significativo em homenagens a um
dos seus grandes criadores. É verdade que datas do tipo podem ser pura miragem,
porque é quase impossível determinar a gênese de um escritor, mas são acontecimentos
fundamentais como esses que permitem outra vez revisitar universos criativos e
irrigá-los com novas presenças. Esse movimento é o que dá rotação a obras
consolidadas e, delas, a formação de outros pequenos universos, de leitores e /
ou criadores.
Já se disse
que escrever literatura é uma tarefa como qualquer outra: exige disciplina e dedicação,
como disse Sérgio Sant’Anna na sua intervenção, em 2012, no Festival Literário
da Pipa; mas, diferente de tudo, é um exercício que se pratica com a inteireza
dos sentidos, o que significa dizer que resumir-se ao puro ofício é cair num
artificialismo perceptível à primeira vista tal como se percebe o sabor
alterado de uma comida. Qualquer profissão, mesmo a de cozinheiro e a de
escritor, pode ser bem desempenhada apenas com o bom uso da técnica. Mas, para
a literatura, apenas técnica é insuficiente.
Assim, quando
se diz que um escritor inteirou tantos anos de ofício, é por convenção.
Considera-se o ano de publicação de sua primeira obra; o ano a partir do qual a
atividade da escrita se tornou uma profissão ou o ano quando um grupo
significativo, entre leitores, pares, críticos, passam a admitir que
determinada obra guarda importância no âmbito das criações de um tempo, o que
faz esse criador uma figura destacável para o ajuntamento social a qual
pertence. No caso de Sérgio Sant’Anna isso veio em 1969 com publicação do livro
de contos O sobrevivente. Este livro foi financiado pelo pai e produto
de alguns anos de dedicação à escrita; antes, já figurara com textos em
antologias como Porta, na revista Estória ou no Suplemento
Literário, um caderno circulava aos sábados no diário oficial do Estado
desde 1966 e então sob direção de Murilo Rubião. Com o primeiro livro, ganhou
uma bolsa para participar de um programa de escrita criativa na Universidade de
Iowa, nos Estados Unidos.
Antes disso,
Sérgio Sant’Anna havia morado em Belo Horizonte, onde cursou Direito na
Universidade Federal de Minas Gerais ― daí sua relação com os nomes de então
na literatura; depois viveu entre 1967 e 1968 na França, onde cursou pós-graduação
no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris. Neste período
presenciou uma variedade de turbulências da história, como a Primavera de
Praga, movimento que restabeleceu as liberdades democráticas na República
Tcheca. Depois, quando volta dos Estados Unidos, fixa-se na cidade onde nasceu
em 1941, o Rio de Janeiro, e passa a trabalhar na Escola de Comunicação da
Universidade Federal.
Todo esse
périplo será fundamental para a feitura da obra de Sérgio Sant’Anna. E por uma
razão simples: o escritor conseguiu aliar de forma inovadora a técnica e a experiência.
Isso se deixa observar por três características de sua obra. A primeira delas,
é um acentuado zelo para com a língua, o que permitiu-lhe construir uma
linguagem própria e ciente dessa propriedade. A segunda, o contínuo trabalho de
experimentação formal, estabelecendo muitas vezes diálogos inusuais com as
diferentes manifestações de linguagem ou a contínuo questionamento sobre as
fronteiras das formas. E, a terceira, uma predileção por se estabelecer num território
que é propriamente o do literário, a recriação pela ficção desta zona difusa
entre o visto e o imaginado, interessando-se por investigar com este último influencia
nossas maneiras de perceber o mundo e as coisas, demonstrando outras vias de
acesso a uma consciência de ser e estar no mundo.
É importante
notar que o equilíbrio entre esses três elementos é fundamental para a constituição
da obra de Sérgio Sant’Anna e para sua autenticidade, isto é, aquilo que o
destaca entre os da sua geração. No conto, forma que mais praticou e pela qual
ficou reconhecido, por exemplo, a obra desse escritor é verdadeiramente
inovadora. Além dos elementos destacados, vale dizer que essa inovação se
conjuga por duas frentes: uma reintegração às feições desta forma como
praticada na nossa literatura e a proposição de uma dicção cuja propriedade se
guia por um ritmo cioso da linguagem.
Quer dizer,
antes de se preocupar com certa objetividade sobre o acontecido, cujo interesse
repousa no episódio, algo que se observa em obras como a de um Rubem Fonseca, o
escritor está interessado em trabalhar as camadas sugeridas pelas múltiplas
possibilidades do dizer: o sugerido. Isso o faz, obviamente, autor de uma
literatura cujo vigor supera as criações do autor de Feliz ano novo
ainda que a polidez e a generosidade de Sérgio Sant’Anna envolvidas pelo calor
da emoção tenham feito admitir que esse escritor era um dos sucessores de
Machado de Assis, o que, bem sabemos, não é uma verdade. O valor da literatura
do autor de Amazona está muito mais próximo à constatação que faz de
Rubem e por uma razão: o estar atento aos funcionamentos da linguagem, suas impossibilidades
de alcançar a coisa e/ ou o acontecido, os clichês e alternativas forjadas de
dizer. Não é apenas a preocupação de contar, mas como se conta, as implicações
aí envolvidas.
O trabalho
cioso com a linguagem se observa na variedade de criações a que se dedicou e,
sobretudo, numa obra que preferiu a qualidade sobre a quantidade de títulos. Se
obteve destaque na narrativa curta, sua obra não se reduziu a esta forma.
Sérgio Sant’Anna escreveu romance, novela e poesia. Deste último gênero,
podemos designá-lo como um poeta bissexto; incluem-se apenas dois trabalhos: Circo
(1980) e Junk-Box (1984). O primeiro designado como “Poema permutacional
para computador, cartão e perfuratriz” só obteve uma edição pela extinta Edições
Colombo; o segundo recebe como subtítulo “Uma tragicomédia nos tristes
trópicos”. Os dois designativos apontam para esse tratamento criativo ao
perfurar as fronteiras entre os gêneros literários e as formas textuais e questioná-los
como o que são: designativos incapazes de conceituar precisamente os limites da
escrita.
O gesto de
fabricação de novas formas se observa ainda na prosa romanesca. Confissões
de Ralfo, seu primeiro romance, recebe como subtítulo “Uma
autobiografia imaginária”. Conforme é sublinhado no verbete disponibilizado na
Enciclopédia Itaú Cultural, “A atmosfera sugerida pelo subtítulo confere ao
narrador-protagonista a licença para ignorar os limites entre a declarada
ficção e o que se oferece como sua biografia”; “Nos fragmentos que compõem seu
discurso, Ralfo se apresente em diferentes versões ou personalidades: repórter,
herói, mágico, ator, escritor, em clara tendência ao escapismo.” Sérgio Sant’Anna
lida, assim, com os próprios limites do que é verdade ou mentira patentes em
quaisquer dizeres. Depois de publicar o romance de 1975, passam-se dois anos para
o próximo, Simulacros, título que acentua essa volubilidade da
realidade. No romance, ainda escreve o já citado Amazona (1986) e Um
crime delicado (1997), com os quais ganha o segundo e terceiro
Prêmio Jabuti.
Um
romance de geração (1981) e A tragédia brasileira (1984) são
exemplos de obras que questionam os limites da forma romanesca ou enxergam o
romance como um canteiro de experimentação; aparecem designados pelo escritor
como romance-teatro pelo uso evidenciado da teatralidade como recurso para a
representação ficcional. No primeiro, o escritor Carlos Santeiro transforma uma
entrevista num ato teatral a partir do qual revisita sobre sua vida e suas
inquietações estéticas e políticas. No segundo, sua obra predileta, utilizando-se de elementos
comuns ao romance e ao teatro, com infiltrações do ensaio, a obra recria, a
partir de uma variedade de pontos de vista, o atropelamento de uma menina de
doze anos.
Entre os títulos
de contos estão, além do livro de estreia, Notas de um Manfredo Rangel,
repórter (1973), O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
(1983, Prêmio Jabuti), A senhorita Simpson (1989), Breve história do
espírito (1991), O monstro (1994), O voo da madrugada (2003,
Prêmio Portugal Telecom), O livro de Praga (2011, Prêmio Clarice
Lispector), Páginas sem glória (2012), O homem-mulher (2014), O
conto zero (2016) e Anjo noturno (2017). Parte do trabalho com a forma
breve também leva o escritor a testar seus limites; muitas vezes, as peças que
formam o que chamaríamos uma antologia findam por constituir a possibilidade de
uma narrativa longa, seja por certa continuidade entre as narrativas ou a
reiteração de mesmas personagens.
A estreita
dedicação de Sérgio Sant’Anna à literatura, só conseguida em sua totalidade a partir
dos anos 1990, depois de se aposentar da carreira como funcionário do Tribunal
Regional do Trabalho, se reflete na forma ciosa com a qual compôs uma obra de
pura elegância, mesmo quando se imiscui pelos temas mais corriqueiros; isso fez
do escritor, no melhor sentido do termo, um esteta da língua dos raros na
literatura brasileira. Sua morte pela COVID19, registrada no dia 10 de maio de
2020, abre uma grande lacuna nas nossas letras, muito embora, como em todas as
perdas daqueles que deixam um legado, fica uma obra irretocável para encontro e
encanto dos seus leitores.
Nota
* Foram
fundamentais para o percurso do texto, o contato com dois ótimos perfis. O
primeiro, “O sobrevivente. Sérgio Sant’Anna e a obsessão pela
literatura”, escrito por Bernardo Esteves para a edição 103, de abril de 2015,
da revista Piauí. E, o segundo, “Uma tarde com Sérgio Sant’Anna”, escrito por Álvaro da Costa e Silva para a edição 84, de julho de 2018, do jornal Cândido.
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