Maria Velho da Costa, a fulguração imaginativo-criativa
Por Pedro
Fernandes
“Não sei se
sou escritora. Não me há estatuto de especialidade que sossegue. Sei que foi
nesta língua que resisti ao que até hoje pretendeu colonizar-me o sentir e o pensar,
acaso sem que o conseguisse.”
Maria Velho
da Costa
Maria Velho da Costa. Foto: Rui Guadencio |
Maria Velho
da Costa foi distinguida com alguns dos reconhecimentos mais importantes em seu
país e mesmo no âmbito da língua portuguesa: em 1997 recebeu o Prêmio Vergílio
Ferreira pelo conjunto da obra; em 2008, recebeu pelo romance Myra, o
Prêmio Correntes d’Escrita; em junho de 2003 foi condecorada com a medalha da
Ordem do Infante D. Henrique de Portugal; em abril de 2011, com a medalha da
Ordem da Liberdade. Entre prêmios e condecorações, recebeu em 2002, o Prêmio
Camões. Os méritos se reafirmam quando sabemos que sempre foi lida com louvor
no âmbito acadêmico.
Mas, a
escritora morreu no dia 23 de maio de 2020 e deixou por cumprir igual
reconhecimento entre os leitores comuns de seu país. Sempre acusada de ser
autora de uma literatura hermética ― constatação sempre discutível seja
qual for o escritor ―, o desconhecimento de sua obra no Brasil se deve, em
parte, à recepção popular irregular em Portugal. Maina Mendes, seu romance
mais conhecido, anterior ao acontecimento das Novas cartas portuguesas,
sempre está situado num lugar que não permite meio termos entre os que incensam
e os que reprovam.
A condição
de impopular nunca deve ser o ponto-limite de referência para um
escritor; reiterada com frequência na cena literária desde sempre, é sempre
revista tardiamente. Há quem diga que existem os escritores que escrevem para o
futuro. Confrontada com essa questão em agosto de 1998, numa entrevista a
Miguel Serrano e José Jorge Letria, mostrou-se receosa numa certeza: “Para já não
tenho a certeza de que os meus livros venham a ser lidos no futuro nem isso
para mim conta de maneira determinante. Não faço a mínima ideia do que será o
futuro”. Mas, basta lembrar os casos brasileiros de uma Clarice Lispector ou de
uma Hilda Hilst para saber uma resposta; foram escritoras pouco lidas no seu
tempo ―
esta última, a fim de conseguir atenção do grande público, chegou a praticar
formas das mais variadas, como a chamada literatura pornográfica ―e que só
mais tarde romperam com os fechamentos, os silenciamentos e manipulação do rótulo
do hermetismo.
Maria Velho
da Costa, entretanto, foi persistente no que agora podemos designar como projeto
literário; recusou-se a se deixar integrar aos rótulos e às determinações. Tal
recusa nunca foi gratuita; partiu de uma escritora que transformou a ciência de
que escrevia para destrinçar seus fantasmas interiores em certeza sobre a
renovação da escrita literária em língua portuguesa, sem que, para isso,
precisasse se acomodar em estatutos que tomaram forma do seu tempo para cá,
alguns já viciados, como os de literatura feminina. Nesse sentido, quis e
esteve sempre na zona limite, em ruptura com o estabelecido e o status quo,
duas formações facilmente tornadas comuns quando os leitores de um modo geral
começam a estabelecer conceitos ou fórmulas nas quais possam justapor obras e
escritores.
O preço pago
por essa necessária rebeldia é sempre muito caro: vai da ignorância popular à
recusa, além, é claro, de não conseguir se livrar de designativos de baixo-tom,
sendo o hermetismo o mais comum e fatal deles porque contribui para os dois
primeiros comportamentos. No caso de Maria Velho da Costa, pelo menos um lugar transformou-a
em presa da armadilha das determinações; o das três marias portuguesas que
ganharam fama no mundo porque findaram por peitar o fechado regime ditatorial
português depois da publicação das Novas cartas portuguesas.
Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, em 1974. |
Na obra de
1972, estavam com ela Maria Isabel Barreno (1939―2016) e Maria Teresa Horta
(1937―).
Questionadora visível desde a forma, o livro foi inspirado nas Lettres
Portugaises; composta por cinco cartas supostamente escritas por Mariana
Alcoforado, uma freira portuguesa que fora seduzida e abandonada pelo seu
amante, o cavaleiro francês Noel Bouton, no Convento da Conceição em Beja. As Novas
cartas oferecem a ruptura com ditame estabelecido pelo regime falocêntrico
sobre as mulheres, uma vez que elas se dedicam a tratar questões referentes ao
desejo e ao corpo, além de denunciar os mandos dos homens. Foi considerado
“pornográfico e atentatório da moral pública” pela polícia do Estado Novo; impresso
dois exemplares, a maior parte deles foi retirada das livrarias e as escritoras
mais o editor, Romeu de Melo, da Estúdios Cor, levadas aos tribunais. Toda
celeuma estabeleceu um debate sobre o tema ― fora de Portugal, claro está,
e um movimento internacional em defesa das três mulheres; o processo só findou a
7 de maio de 1974.
Desde então,
falar sobre Maria Velho da Costa ou sobre Isabel Barreno e Teresa Horta é retomar
toda essa história em torno das Novas cartas e, de repetições, o livro
se fez famoso, mas mais famosa a atitude delas ao ponto de, muitas vezes, o livro
deixar de ser lido como devia ― pela revolução estético-formal e pelos
temas suscitados ― para ser reduzido ao estatuto de um manifesto feminista.
E, foi com situações desse tipo que escritora sempre se colocou pouco à vontade:
a mera simplificação de um trabalho que não estava a serviço de uma ideologia específica
e sim propunha o questionamento de toda uma ordem perversa com os destinos dos
próprios princípios que nos distingue enquanto parte de uma civilização.
Toda obra de
Maria Velho da Costa tomou continuidade de um projeto universal adensado com a
literatura de Virginia Woolf e James Joyce, radicalizado pelos escritores das
vanguardas e por estéticas como o chamado Nouveau Roman, se
considerarmos o vivo interesse pelo proposital desfazimento dos modelos
narrativos tradicionais. O interesse de não se prender ao rótulo de uma escrita
feminina ou feminista por esta escritora parece então se filiar a
essa busca maior de uma universalidade da criação; Isabel Allegro de Magalhães em
O sexo dos textos chega a considerar que em Portugal não se vislumbra,
mesmo com todo alvorecer de mulheres escritoras a partir da geração de Maria
Velho da Costa, uma escrita feminista, no sentido de que existam
criações literárias fechadas em especificidades e / ou perspectivações
restritas a uma escrita realizada por mulheres.
Numa
entrevista para o jornal Público de janeiro de 2013, a escritora diz
desconhecer “o que é uma escrita feminina”; e supõe que existam “temáticas e
tratamentos de temáticas que obviamente só podem ser femininos”, mas uma
escrita assim designada não lhe parece clara. “Pode haver um texto que é
claramente feminista na defesa dos seus temas”. O que se designa como escrita
feminina é a que for escrita por mulheres, mas isso não pressupõe uma
especificidade. “Dizer que aquela escrita só podia ser feminina, não faz sentido.”
De toda
forma, qual sublinha Domingos Lobo em “Os universos temáticos de Maria Velho da
Costa” breve comentário sobre a obra dessa escritora para o Avante!, suas
personagens femininas, algo que não é alcançável apenas numa literatura realizada
por mulher, “possuem um ambíguo sentido de transcendência, que não procura
resgate mas afirmação face ao caos do mundo; busca uma identidade superlativa e
resistente que enfrente dúvidas e caminhos percorridos às cegas. Há nessas
personagens uma modelar voz intemporal, da essência, do que redime ou mata,
algo de poroso e selvagem como em Maina Mendes, ou de absoluto
desespero como em Sara, de Missa in Albis. Com elas a autora
alargou os limites da língua, a intensidade semântica, as ressonâncias
imagísticas da Literatura feita em português.”
Assim, o que
se designa é outra maneira de tratamento das formas e das estéticas geridas
agora por um ponto de vista antes excluído dos modelos vigentes. Maria Velho da
Costa assume-se, então, entre os escritores que elegeram a ruptura porque sua
posição em relação à ordem é vincadamente desconstrucionista; por isso, para
citar algumas variantes, sua obra prefere o interior em relação à exterior, a
fragmentação e a descontinuidade em relação à sequenciação e à organização
cronológica, a destituição das fronteiras entre os gêneros literários pela interpenetração
entre prosa e poesia e o respeito às técnicas discursivas que lidem com o polifônico
―
“Alucinando vozes e casos que passam a ser ouvidas e acontecidos”, como descreve
numa das crônicas de O mapa cor de rosa ― o que é definido por ela como
uma crioulização, ao compreender que o campo literário lida com as misturas
capazes de abalar e produzir tensões para desfazimentos do vigente.
Sua obra é
vasta e contempla uma variedade de formas literárias e cujos designativos são apenas
circunstanciais, uma vez que todas as suas criações desrespeitam os conceitos
tornados ponto-pacífico nos estudos literários. Três anos antes de Maina
Mendes, publicada em 1969, escreveu o livro de contos O lugar comum,
e: Cravo (crônicas, 1976), Português; Trabalhador; Doente mental e
Casas pardas (romance, 1977), Lúcialima (romance, 1983), O
mapa cor de rosa (crônicas, 1984), Missa in Albis (romance, 1988), Dores
(contos, 1994), Madame (teatro, 1999), O amante do Crato (contos,
2002) e Myra (romance, 2008), entre outros. Todos compõem uma escrita que
se arvora como um trabalho artesanal com a linguagem integrada à recusa dos
modelos discursivos dominantes e deslimitada.
A crítica encontra
nesse impulso inovador e criativo o que se anuncia no início do século XX português
com um Raul Brandão ― os pressupostos aí lançados teriam dominado toda a cena
literária, como demonstram as decorrências de renovação dos modos literários
nas obras de um Almada Negreiros, um Carlos de Oliveira ou um José Cardoso
Pires ―
até desabrochar em definitivo em obras como de Maria Velho da Costa; no seu
tempo, a constituição de uma dimensão interior, qual pensada pela psicanálise e
pela psicologia, e as variáveis de experimentação com a linguagem visíveis
desde as práticas de vanguardas formam os elementos suscetíveis a uma nova poética
da palavra, atentando para sua dimensão de fulgor e encanto.
A geração de
Maria Velho da Costa principia uma variedade de escritoras numa literatura
constituída até então quase exclusivamente por escritores. A sua escolha pela
criação de uma dicção singular, inimitável, pode ter sido a primeira alternativa
para se afirmar propriamente num contexto sem que fosse pela relação de
espelhamento desfigurado com o homem. Acabou por contribuir para uma revolução que,
se há muito anunciada, só se consolidou a partir de então ―
dentro e fora da literatura portuguesa. Isso não é pouco. Isso não pode se
reduzir ao estatuto vão do hermetismo. Porque isso é a renovação da própria literatura,
pela sua dimensão mais importante: a fulguração imaginativo-criativa.
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