O sermão sobre a queda de Roma, de Jérôme Ferrari
Por Pedro
Fernandes
No Verão de
410, Roma é invadida pelos visigodos chefiados por Alarico. Durante três dias
de agosto, a cidade tomada é transformada em ruínas e o episódio instaura uma
crise no centro do império cristão. Isto é, abalam-se também as estruturas da
fé, afinal, como pode Deus (e São Pedro e São Paulo) permitir o abandono da Roma
Aeterna a um exército de bárbaros? O episódio leva Santo Agostinho, então
arcebispo de Hipona, a redigir um conjunto de cinco sermões proferidos no ano
posterior à invasão. Os textos oferecem uma releitura da história e a partir
dela uma proposição inteiramente inovadora: Roma enim quid est, nisi Romani?
A questão nascida de uma leitura das Geórgicas segundo a qual todas
as cidades têm um fim se mostra radical porque parece se guiar pela máxima
de que o homem é a medida de todas as coisas, logo, o mundo não é para-si mas
em-si.
Esse sentido
é possivelmente o recobrado por Jérôme Ferrari na escrita de O sermão sobre
a queda de Roma. Santo Agostinho, portanto, não é retomado apenas no
título, nem na série de excertos que intervém no cerzido das narrativas ou na
recomposição da cena sobre sua morte nas ruínas de sua abadia no norte da
África, e sim propriamente na ideia central da homilia desenvolvida pelo
escritor simultaneamente como tema e elemento formal. O que o leitor acompanha são
as variáveis que determinam a mais fatal das certezas: tudo o que existe, existe
para a ruína, ante o tempo, nada é eterno, a eternidade é um porvir. A interpretação
do sermonista abriga ainda outra leitura perspicaz, a da história enquanto
espiral: um mundo novo sempre nasce da juventude do homem. E é esse movimento que
sustenta o tempo narrativo deste romance.
Assim, é
proposital a escolha do escritor francês pelo sermão 81 como seu ponto de
inflexão. Este é o texto que constitui, juntamente com o sermão 105, a passagem
mais filosófica da retórica agostiniana sobre o episódio histórico de 410 e se
marca, assim, por uma abrangência quase universal ao estabelecer uma
interpretação acerca da ruína dos homens e da ruína do mundo. As duas
narrativas principais de O sermão sobre a queda de Roma discorrem
sobre três gerações de uma família de um povoado remoto na Córsega, uma ilha do
Mar Mediterrâneo, separada da Sardenha pelo Estreito de Bonifácio, situada na zona
geográfica a oeste da Itália, embora seja uma região administrativa da França. Com
os Antonietti, a família em questão, conhecemos os Pintus; há entre elas
profundos laços de amizade como demonstram os amigos de infância Matthieu
Antonietti e Libero Pintus.
A primeira
narrativa está situada entre o retorno de Marcel à terra natal e sua morte. Depois
de aposentado das funções públicas exercidas entre a Indochina, a África
francesa e Paris, o reencontro do pai de Matthieu com o seu passado é mediado
por várias fronteiras: a do silêncio do pai, veterano da Resistência na
Primeira Guerra Mundial; a distância do filho entregue quando criança aos cuidados
da irmã depois da trágica morte da mãe no parto; da própria gente do lugar, mais
sarda que francesa, e, culturalmente em relação à civilização, presa aos modos
bárbaros que o remetem sempre para os tempos no continente africano. O desfecho
trágico da narrativa ratifica essa interpretação.
Junto com o pesado
passado de Marcel, a narrativa do romance de Jérôme Ferrari parece interpelar a
própria história da Córsega, mundialmente conhecida como o berço de Napoleão
Bonaparte, que nasceu em Ajaccio um ano depois da ilha ser ocupada pelo Reino
da França. O retorno da personagem reaviva o fim da pompa imperial de seu país
(sinonimizado por Marcel e o pai) cujo sopro se encontra na força do líder
político e militar durante os últimos estágios da Revolução Francesa. Se
Napoleão sai da Córsega para desbravar o mundo e refundá-lo, Marcel a ela
retorna para assistir, fora de ordem, o seu fim antevisto desde a queda das
colônias. Sua morte parece significar o apagamento dos últimos suspiros da
glória de um mundo que, daí em diante, estará mergulhado nos liames da
decadência, sopro com o qual se erguerá as gerações seguintes. A queda aqui
denota o declínio de uma nação de ontem, que agora sem fisionomia não é capaz
de representar nenhuma influência fora de seu próprio mundo; e talvez nem nele,
como sinaliza o diálogo falhado entre gerações nesse romance.
O mundo posterior
se revela com Matthieu e Libero. Os dois não apenas remontam o mito do duplo na
literatura – pelas tensões assumidas e as relações de aproximação e
distanciamento inter e autoexercidas – como remontam certo impasse e
confluência de dois mundos: aquele apreende o mundo enquanto unidade organizada
hierarquicamente, o que no romance se demonstra pela sua formação, suas ações e
seu interesse pela filosofia de Leibniz; para este o mundo se constitui do livre
arbítrio do homem, logo, diversamente. Essa compreensão encontra respaldo na
filosofia de Santo Agostinho e pela penetração que alcançou em obras como as de
Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche, demonstram que Libero é uma criatura melancólica
e alheada ao mundo justificado enquanto princípio hierárquico. Ou seja, a maneira
cuidadosa com que o escritor engendra cada um desses mundos, diversos entre si
e colocados ora em diálogo ora em choque, é um dos pontos fundamentais para a
unidade diversa desse romance.
É que cada capítulo
inaugura um mundo relativamente independente do constituído no capítulo
anterior, mas, à medida que o leitor avança pelo fio das duas narrativas, estes
se encontram e obrigam o leitor a repensar as estruturas que vai construindo.
Esse modo de estruturação narrativa, apesar de não original, constitui um
efeito inovador porque encontra justificação no tema e no universo propostos; Jérôme
Ferrari desconstrói o que só é resgatado pela leitura. Nesse sentido, o próprio
romance se confunde com a maneira de Matthieu conceber o mundo, que, por sua vez,
não deixa de reverberar na interrogação agostiniana: E o que é Roma, senão
os romanos? No fim, é dele, de Matthieu, que nasce esse mundo forjado pelo
romancista francês.
Matthieu e
Libero decidem abandonar os estudos em filosofia e retornam ao vilarejo remoto
de suas origens para reabrir num Verão tomado de turistas, os bárbaros desse
tempo, o bar decadente de Marie-Angèle, que propôs e encerrou vários mundos. Reprovados
cada um por parte de suas famílias, o sonho só se possibilita pela demão do pai
de Matthieu, mais tarde acusado da ruína dos dois por puro capricho: não haver
perdoado a natureza de preservar a vida do filho como se ele fosse o responsável
pela morte de sua mãe nos remotos confins da Ásia. O bar, entretanto, prospera,
mas estará longe de ser o mundo eterno como sonha Matthieu e é aqui que se
instaura o conflito entre os dois amigos.
A leitura do
Sermão 81 de Santo Agostinho, fundamental para o entendimento de algumas
nuances do romance de Jérôme Ferrari, esclarece uma saída para os cristãos
descrentes dos seus princípios: é que Roma não deixa de ser uma realidade
terrestre, por isso finita, mas se Roma é os romanos, e estes enquanto homens constituem-se
matéria e espírito, neste último, por sua vez, repousa a fé e nela a realidade
eterna. A interpretação agostiniana contempla uma nova ascese fundamentada na
humildade, resistência no sofrimento, a caridade e a esperança. Tudo isso é
perfeitamente exercido nesse romance, em grandes e pequenos tons, e mesmo o
propósito, já despido de Deus, é também o de uma realidade eterna, muito embora
esta pertença apenas ao horizonte de esperança visto que seus artífices são,
não um Deus, e sim, demiurgos. Para isso, a narrativa lida com uma variedade de
dicotomias exercidas desde o par de personagens principais: exterior e interior,
eterno e efêmero, passado e futuro – bem ao gosto do platonismo de Agostinho.
O exercício
ficcional de O sermão sobre a queda de Roma é sempre guiado pelo fim e
princípio de um mundo; a certa altura, o narrador reflete o que podemos tomar
como síntese da narração: “Talvez cada mundo não seja mais que o reflexo
deformado de todos os outros, um espelho longínquo em que a sujeira parece
brilhar como diamante, talvez não haja mais que um único mundo, do qual é
impossível fugir, pois as linhas de seus caminhos ilusórios acabam por se
cruzar”. O retorno e a permanência de Matthieu e Libero, refazendo um percurso como
o de alguns antepassados (Marcel é um deles), aponta exatamente para essa
conclusão. Se o mundo pode se fazer pelo cerzido invisível do destino, a queda,
o fatal fim de tudo, é, por vezes, produto da própria ação humana, porque “o
demiurgo não é um Deus criador. Não sabe que está construindo um mundo,
trabalha como homem que é, pedra após pedra, e logo sua criação escapa,
ultrapassa-o e, se ele não a destrói, será ela a destruí-lo”.
Ao conceito o
homem é o mundo podemos acrescentar outro, formulado da leitura de Santo
Agostinho do Salmo 8 no conjunto de sua prédica: “Que é o homem senão o que
dele recordas?” A ruína do mundo é a do homem. E só podemos falar dela uma vez
cumprida. Assim, a história do mundo é a da sua ruína e a do homem. Este é o que
dele podemos recordar. Toda nossa existência é isso: o que dela recordamos. Esses
princípios são os mesmos que regem os limites desse romance de Jérôme Ferrari, e,
por sua vez, regem os limites de toda ficção romanesca: a tentativa de descortinar
o mundo e compreender a queda do homem, a condição que nos define desde a
condenação ao degredo por provar do conhecimento. Tal preocupação é observada pelo
próprio romance: “Não sabemos, em verdade, o que são os mundos nem do que
depende sua existência. Em algum lugar do universo talvez esteja inscrita a lei
misteriosa que preside a sua gênese, o seu crescimento e o seu fim. Mas uma
coisa sabemos: para que um mundo novo surja, é preciso que um mundo antigo
morra. E sabemos também que o intervalo que os separa pode ser infinitamente
curto ou, ao contrário, tão longo que os homens devem aprender a viver em meio
à desolação por dezenas de anos, para então fatalmente descobrir que são incapazes
de fazê-lo e que afinal de contas não viveram nada.”
A longa e a
abreviada ruína do mundo – é isso o que O sermão sobre a queda de Roma
observa. A história que cobre dos séculos XIX ao XXI e a segmentação do tempo (a
derrocada do império francês, as duas guerras mundiais, o colonialismo) pela
irrupção suposta pela memória presente de um passado remoto (qual a própria ruína
de Roma e de Hipona inscrita por/ sob a narração) constitui a observação do
romancista acerca dessa lenta queda do mundo. Nisso, este romance reitera a
história enquanto contínua dinâmica e mesmo repetição, tal como observa Santo
Agostinho. O longo tempo de três gerações perfaz o mesmo movimento da narrativa
que atém o instante de duas estações sobre outra vez o resgate e a ruína do bar
de Marie-Angèle. Esta segunda narrativa é a melhor prova sobre a queda
abreviada do mundo, mas é a correlação de formas o melhor do romance. História
de um povo e história individual mostram-se implicadas num mesmo princípio.
O romance de
Jérôme Ferrari alcança o papel de oferecer aos leitores uma poderosa fábula sobre
nossa relação com o tempo, a história e a memória e como fabricamos nosso mundo;
as implicações entre mundos que, por mais isolados e insignificantes interferem
na ordem das decisões mais abrangentes, reafirmam que tudo existe em correspondência.
Ver isso em funcionamento só mesmo pelas lentes da boa literatura, tal como nos
oferece nesse caso O sermão sobre a queda de Roma.
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