Jojo Rabbit, de Taika Waititi
Por Pedro
Fernandes
Jojo
Rabbit é, para um diretor cuja filmografia inclui algumas das mais recentes
adaptações das HQs Marvel para o cinema ou a feitura de filmes menores dos
estúdios Disney, um ponto fora da reta. Não é apenas por ser sua saída da zona
de conforto que é dar vida a um universo cuja existência prescinde mais de comandar
uma extensa e criativa equipe técnica; é por ingressar no território que não
permite unanimidades. Não é o caso de os blockbusters atuarem como um fenômeno
unânime, mas as dissidências aparentemente são menores, visto que são produções
cujos interessados guardam certa correlação de expectativas. As diferenças são
ainda mais acentuadas se repararmos que o filme de 2019 não apenas foge desse
padrão como revisita um dos temas mais polêmicos e repugnantes na nossa curta
história das ideologias: o nazismo de Adolf Hitler e seu partido. Situado entre
as frágeis fronteiras do humor negro, este trabalho de Waititi, que é baseado
no livro O céu que nos oprime de Christine Leunens, parece obrigar os
espectadores a se decidirem entre amá-lo e detestá-lo.
E olhe que a
crítica tem sempre ressaltado que as diferenças entre as situações
desenvolvidas no filme estão mais leves que no livro; a evidente, mas não mostrada
relação de amor entre uma criança e uma adolescente, é um dos exemplos. Waititi
transfere o que há de erótico e mesmo sexual entre as duas personagens centrais
na obra de Leunens para o sentimento pueril da cumplicidade amistosa e os
primeiros alvores do despertar da paixão amorosa. Mas tudo é vestido da
inocência infantil. Esta, por sua vez, não é a dominante da narrativa fílmica que,
pode ser acusada de tudo (inclusive de apologista do nazismo), mas não de
inocente e boba.
O que tem
causado polêmica, portanto, é justamente a intervenção dessa maturidade numa
narrativa interessada em constituir uma sátira sobre os últimos suspiros do
Reich. Há aqui níveis variados de riso e algumas situações chegam a roçar no
perigoso sentido do escárnio com a raça. Quer dizer, a todo tempo somos
incomodados com a presente memória do horror e, claro, não nos referimos aos
espectadores que se integram entre a variedade de néscios interessados em revisar
o que não é possível de ser revisto.
Até porque Jojo
Habbit não está interessado em revisionismos. A sátira tampouco simplifica
as complexidades do regime e quer pelo desconcerto denunciar as incongruências
de uma máquina feita para odiar a partir de um potente trabalho de propagação de
absurdos. Nesse sentido, oferece mesmo um alerta para o nosso tempo ora envolto
nos fumos do estapafúrdio que tornado em crença se instala como verdade entre
nós. O filme visita o que foi um dos zênites desse sistema que se pautou entre os
vários modelos de verdade absoluta, alguns visíveis desde a origem imemorial dos
tempos, como o ideal populista que elege uma figura do líder designado pela revolução
em nome de um bem coletivo e mesmo dessa ideia tão vigente o mito da unidade
coletiva de um raça superior: o uso de crianças e jovens no trabalho de
consolidação desses que foram alguns dos muitos pilares do sistema de matar
alemão.
A entrada
nesse universo é oferecida desde a abertura da narrativa com um trabalho criativo
de colagem entre imagens de O triunfo da vontade, o influente
filme-propaganda do Reich dirigido por Leni Riefenstahl, e a euforia das
multidões pelos Beatles introduzidos no filme por uma versão alemã de “I Wanna
Hold Your Hand” pelo próprio grupo; a canção costura as duas situações para
ressaltar como o nazismo foi produto de uma histeria coletiva e seu epicentro resulta
dos perigosos fanatismos populares. Aquela foi alimentada pela redução do judeu
e todo aquele que não se enquadra no modelo da raça pura em perigoso inimigo. É
isso o que mais ressalta em Jojo Habbit: as histórias fantasiosas sobre
quem e como são os judeus, as ameaças que representam, tudo isso evidenciado
pela imaginação infantil apenas ressalta o absurdo da ideologia. Isso se nota
no amplo catálogo de desenhos e de histórias registradas pelo menino-nazi no
que para ele seria sua Mein Kampf.
Já o fanatismo
se deixa reverberar pela maneira como o Johannes Betzler tem a Hitler como seu amigo
imaginário ou uma extensão de sua própria consciência. Ele é tamanho que, mesmo
sabedor do fim da guerra e do suicídio do seu herói, seu fantasma torna a
persistir em sua companhia. Essa aparição contínua de um caricato e amigável
Hitler tem sido um dos problemas evidenciados pelos que decidiram repudiar o
filme, afinal todas as representações do führer têm ressaltado aquelas qualidades
que o designam como um monstro. Mas, é o ponto de vista infantil, integralmente
mergulhado nas águas da ideologia nazista, uma vez o protagonista pertencer ao
rigoroso tropel da juventude hitlerista. Ainda assim, não deixaremos de notar o
quanto essa figura se imiscui enquanto extensão de uma obsessão; o Hitler de
Jojo é sempre ardiloso, logo, diabólico e a descoberta disso levará a uma
completa transformação do menino acerca do seu ídolo.
Essa
descoberta é continuum da narração. Para tanto, o menino é atravessado
por diversas perdas, entre elas, a do pai que nunca aparece e que sempre é
designado como desertor do regime, o que terá algum fundo de verdade à medida que
sabemos da proteção da mãe de Jojo a uma judia presa no porão de casa – uma
referência que de imediato nos leva a Anne Frank. É desse convívio, a
adolescente transformada em amostra viva através da qual o menino-nazi pode observar
e catalogar suas curiosidades e invenciones difundidas pelo imaginário nazista,
que se forma a mensagem quase sempre ignorada pelos detratores do filme.
É verdade
que alguém ainda poderá dizer que Jojo une-se a esta jovem por puro interesse nascido
do medo radical do desamparo. Mas, ele próprio reconhece essa condição e,
assim, o que prevalece é a lição da convivência como uma mensagem de humanidade
sobre o radical tempo dos horrores. E o melhor: essa mensagem é oferecida a
partir de um intolerante. Waititi pode cair no clichê da regeneração do homem
ou, nem tanto, uma vez que a criatura reúne ainda todas as condições dessa
possibilidade – é uma criança, mas seu caráter é de longe conformista. Jojo
Rabbit se estabelece como uma alternativa maior sobre o Poder, a ruína
deste pela força da alteridade, isto é, a aprendizagem do outro e não sobre o outro.
O que também
chega a ser inusitado nessa narrativa é que nada deixa de ser ridicularizado; o
ideal de Waititi é revelar como o poder oprime sabendo que em seus quadros reside
tudo aquilo que persegue ou ainda constatar que no embate entre bons e maus,
nenhuma coletividade se sustenta seja para qual lado for. A primeira evidência
se nota no casal gay em que um dos homens se apresenta como ideal de
masculinidade para os da juventude hitlerista; aliás, o quadro pessoal desse
quartel reúne tudo o que é segregado pelo regime e seu verdadeiro comando não
reside naqueles que assim se apresentam, mas na mãe de Jojo. O próprio
protagonista que se vê uma réplica-mirim do führer é subjugado pelos do seu
destacamento depois de não conseguir matar um coelho como prova de seu valor e
lealdade ao sistema hitlerista e logo é rebaixado à condição de inválido depois
do acidente com um explosivo em treinamento causado depois de uma malsucedida tentativa
de vingança aconselhada desastrosamente pelo seu amigo imaginário.
A narrativa
fílmica bebe de um caldo rico de referências; se oferece, assim, não apenas como
sátira da história, mas dos filmes constituídos por seu imaginário como as
sugestões aos melodramas O menino do pijama listrado ou A garota que
roubava livros. O Hitler vivido pelo próprio diretor é talvez o exemplo
mais claro disso: vemos os traços do Hitler de Bruno Ganz em A queda! As
últimas horas de Hitler e a cena que se tornou viral de quando Steiner
falha nas suas ordens; do ditador construído por Charlie Chaplin. As homenagens
ainda se expandem fora da força do rebaixamento. É o que parece sugerir o não
crescimento físico de Jojo, o que além de ressaltar o interesse da narrativa em
sublinhar que o crescimento aqui é o outro e ao mesmo tempo nos remete a O
tambor, de Volker Schlöndorff. No mais, ao citar O grande ditador,
logo percebemos que este é um filme que amplia a breve lista da tradição
cinematográfica do riso em torno do nazismo nascida com Ser ou não ser,
de Ernst Lubitsch, ainda quando Hitler estava vivo.
Assim,
parece uma leitura forçada a que sugere integração disfarçada desse filme às fileiras
do enaltecimento da ideologia nazista. A arte, dentre as várias possibilidades,
deve ser aquela capaz de tocar em interditos. O que se coloca como intocável
tem o grande perigo de retornar, porque se os horrores não são superados devem
ser encarados de frente em suas múltiplas dimensões, mas jamais a da sacralização
quase sempre retocada pelo sério, nunca pelo cômico, esta força naturalmente
desconstrutora. Jojo Rabbit é, por isso, uma das surpresas mais
interessantes entre as produções cinematográficas recentes.
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