Hoje estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral
Por Pedro
Fernandes
O escritor Bruno Vieira Amaral. Foto: Vitorino Coragem. |
A falibilidade
da memória e o embate do homem contra o esquecimento integram a literatura desde
suas primeiras formas. Na Ilíada e na Odisseia, os dois textos
fundadores de toda a literatura ocidental, os dois topos comparecem de forma
variada: é a base de sustentação da exteriorização dos acontecimentos pela voz
enunciativa e, por vezes tema da história. O que se conta na epopeia é produto da
memória e é às musas que o aedo invoca pela perenidade e justa medida de sua
manifestação; por sua vez, Aquiles é quem, sabedor das duas possibilidades reservadas
para o seu destino, escolhe passar para a eternidade pelos seus feitos, pela
força e pela honra.
Se durante
longo tempo o homem acreditou no absolutismo da verdade, primeiro pelas suas
crenças, depois pela história e agora pela ciência, o que, por sua vez, estabeleceram
maneiras de encontrar na memória seu ancoradouro, a busca pela sobreposição do
esquecimento terá sido a mais inalcançável das possibilidades. Isso se deve, em
parte, a inviabilidade de determinação da eternidade: guardamos as situações e
produtos de nossa civilização (tal como individualmente compomos nossos
pequenos museus) mas o futuro é sempre uma incógnita ou a certeza de que o tempo
com sua força findará por tragar tudo.
Existir,
entretanto, pressupõe integrarmo-nos nesse embate. E a literatura permanece
como um dos campos onde melhor se pode compreender isso, sobretudo quando a
memória tem sido aplainada, seja pela crise da verdade e certo retorno ao
caótico mundo das ideologias individuais, seja pelos dispositivos que entendem
o passado como algo sem contato conosco e sepultado algures. É uma via, tal
como a linha da eternidade, inesgotável. Nas literaturas contemporâneas, esse
dilema se filia à diversidade de crises que nos acompanham – incluindo as de
narrar, o que tem transformado o romance, da unidade de verdade, muitas vezes, em
multiplicidade de possíveis. Isto é, o que se conta não é uma história, mas o
périplo para sua realização, pressupondo, inclusive, as múltiplas possibilidades
de dizer um mesmo acontecimento.
Hoje
estarás comigo no paraíso, de Bruno Vieira Amaral se integra ao rol dos romances
do porvir. O designativo pode servir para compreender melhor as obras que
integram em seu interior a narrativa possível. O que o narrador desse romance
busca é acessar a verdade do acontecido sem ter ao alcance a íntegra dos elementos
factuais necessários para tanto, outro dos impasses, visto que nenhum passado
se nos apresenta em sua inteireza e sim como resquício, escombro, fragmento;
toda história é feita, portanto, do trabalho de preenchimento de lacunas a partir
de uma perspectiva assumida por quem conta. Por sua vez, essa tentativa
encontra respaldo no princípio universal da ficção: o narrado não como o acontecido
e sim enquanto como poderia acontecer. Esse tratamento, embora nada tenha de
novo, sempre pode oferecer ao escritor uma variedade de maneiras de execução da
história, sendo recorrente o uso do suporte metaficcional, isto é, o princípio
pelo qual a narrativa esclarece seus próprios rumos e impasses de feitio.
O acontecimento
recuperado pelo escritor português se passou dois dias depois de seu
aniversário de sete anos de idade: o assassinato do primo João Jorge. O distanciamento
temporal não se configura para o narrador num impeditivo para a narração, não
nesse caso; seu principal dilema é a reconstituição da situação trágica e do universo
de uma figura cujo convívio foi alimentado mais do imaginário que da vivência.
Entre as dificuldades, inclui-se a diferença de idade entre essas duas
personagens, daí a convivência distanciada, o tabu da morte no âmbito familiar,
das relações entre pretos africanos e brancos portugueses resultadas em parte
dos terríveis anos de violência colonial e as conveniências estatais para com as
gentes da periferia ou os mortos comuns.
O romance
nasce, assim de um impulso que se multiplica em quatro linhas: romper com o
silêncio da família sobre o caso, incluindo aqui segredos, omissões e
silenciamentos em torno da figura procurada e do próprio narrador; compreender por
que um crime executado distante das vistas do narrador e sentido por ele apenas
pela reação contida da avó se tornou uma marca que o acompanha ao ponto de se
tornar uma obsessão; recuperar uma existência anódina do esquecimento total; e reaproximar-se,
mesmo à distância, do contexto colonial, do qual se deriva grande parte do
passado das figuras envolvidas na investigação do narrador. Cada um desses impulsos,
por sua vez, compõe quatro andamentos principais que enformam a narração: o périplo
pelo documental, ou seja, materiais que esclareçam alguns momentos da vida de
João Jorge; o périplo pela compreensão do narrador ante o episódio e esse primo;
o périplo sobre a colonização e a violência dela decorrente como uma marca indelével
nos indivíduos; e o périplo pela própria feitura da narração, que inclui aqui
as estratégias de contar da reunião de suposições imaginativas, dos depoimentos
de gente possível de saber algo sobre esse jovem pintor de paredes e das leituras
diversas que estão no entrecruzamento das trajetórias do narrador.
O diálogo
intertextual resulta dessa busca por uma maneira de contar, de inventar, de
corrigir as grandes lacunas com as quais se depara. Algumas das leituras
aparecem citadas e outras retrabalhadas num exercício de escritura – Gabriel
García Márquez, Euclides da Cunha, Vargas Llosa, Margaret Atwood, W. G. Sebald, Javier Cercas...
Deste último, é estreita a semelhança com o Rei das sombras, a começar
com o motivo da narrativa, passando pelo tratamento investigativo e os lugares
possíveis de interpretação acerca de um passado que se manifesta enquanto
sombra. No fim, o trabalho do narrador de Hoje estarás comigo no paraíso
recupera os itinerários do escriturário de Todos os nomes, de José
Saramago; neste romance, o leitor acompanha as voltas do Sr. José por conhecer
a mulher desconhecida que se lhe apresenta ao acaso, capturada dentre os
registros da gente famosa por ele colecionados. Nas três obras, o que
acompanhamos nada mais é que um itinerário pela composição de uma figura cujos
registros originais são frágeis demais para garantir sua existência no mundo
dos vivos.
Todo
itinerário de busca pelo outro é um trabalho de alteridade; a tentativa
de conhecê-lo resulta, dialeticamente, no reconhecimento de si. Assim, enquanto
o narrador de Bruno Vieira Amaral é conduzido para a vida de João Jorge, revive
sua infância, da qual vê-se não com as lentes de saudosismo, mas como o período
nebuloso que se confunde com a sua própria relação com o investigado. Falamos
de finais dos anos 1980, poucos anos depois da Revolução dos Cravos. A periferia
do Barreiro, cidade central dos acontecimentos, é ponte para uma reconstrução
além dos limites da vida e das famílias dessas duas personagens; através desse
espaço e das situações recordadas, oferece-se a recriação de um Portugal
profundo, ainda bastante marcado pelos costumes e os fechamentos impostos ao
longo de quase cinco décadas de ditadura militar (entrevista na severidade como
o mundo dos adultos conduz o mundo infantil ou mesmo nessa condição apalermada
das gentes) e por toda sorte de problemas daí decorrentes, como a miséria
profunda que induz à violência. Acrescente-se aos problemas deixados pelo
poderio militar, os impasses com a colonização em África e as questões variadas
nesse entorno.
Quer dizer,
esse narrador parece seguir parte dos conselhos oferecidos pelo amigo jornalista
Osvaldo Peres, para quem, a única possibilidade de compreender sobre João Jorge
é o árduo trabalho de reapropriação dos seus lugares, suas origens e seus contextos,
o que, por sua vez, demonstra uma compreensão crucial sobre quem somos, afinal.
Somos a vida que temos, mas esta está implicada aos lugares, situações e
contextos com os quais mantemos relações. O que periga, nesse procedimento, é o
narrador recair numa espécie de catalogação da história ou mesmo sua transformação
apenas em plano de fundo dos acontecimentos ficcionais, mas isso não acontece
em Hoje estarás comigo no paraíso porque mesmo o contextual é apenas um
elemento entre os diversos que juntos dão forma à narração, tampouco seu tema
central está subordinado à situação histórica; esta e os demais elementos se
apresentam toda vez que contribuem não para a evidenciação do episódio central,
mas para sua coloração ou o estabelecimento da atmosfera do acontecido, tal
como os recursos de imagem e som, por exemplo, contribuem para consolidação da
verdade mostrada num filme.
Entre o tema
da memória e do embate do homem contra o esquecimento, Bruno Vieira Amaral
transita por uma variedade de questões daí subjacentes; as principais delas
talvez sejam a morte e a violência. Ao imiscuir-se numa história de assassinato
decorrida num mundo de periferia profundamente sequelado pelos dilemas familiares,
de pobreza e de raça, o romance restitui a imagem de nossas complexidades
enquanto comunidade e civilização, destacando desse interior nossa inclinação para
a barbárie. E a única coisa que pode nos conformar diante desse universo degenerado
é a certeza de que se o narrado produz em nós qualquer coisa de mal-estar é por
duas razões possíveis: nossa tendência individual para negação do repulsivo ou
o nosso aperfeiçoamento que nos leva olhar a violência como algo perverso demais
para se mostrar parte de nós e do nosso convívio. Fora isso, o romance nos diz
o quanto o mal é parte inerente de nossa natureza e, logo, incontornável. Mas,
se a violência é constituída do irracional que nos habita, sua banalização é produto
social, mantido pela ineficiência do Estado.
Do interior desse
dilema, a morte é tratada nesse romance por vias diversas; da sua implicação no
mundo dos vivos, como evidenciamos, às tentativas de compreensão sobre nosso
compromisso com os antepassados, a memória deles (e a nossa) e com o nosso destino.
Nesse sentido, podemos levantar a variedade de sugestões oferecidas pelo título
do romance, intrinsecamente relacionada com essas inquietações. Recortada de um
episódio bíblico cuja passagem se mostra em epígrafe no romance, isto é, a
sentença proferida por Jesus para o malfeitor arrependido dos executados com ele
no Gólgota, nela se contém, por proximidade do ideário de salvação, a ideia de
eternidade, resgate do mundo dos esquecidos.
Tal como os
crucificados com Jesus, o que o romance de Bruno Vieira Amaral conta é aquilo
que não existe para o homem se não pelo outro, o último dia. Toda a vida possível
de João Jorge (e toda nossa vida) se contém nesse dia, o do apagamento geral de
nossa consciência no mundo. A salvação, o eterno, o resgate do esquecimento, é
tarefa dos vivos porque somos também a memória que os outros trazem de nós. A
sentença bíblica contém o sentido aqui explorado: a prometida entrada no
paraíso não é pela aceitação do Messias sobre arrependimento do ladrão mas por figurar
ao lado daquele que antes da morte já se convertera numa ideia. O romancista
não é essa figura convertida numa ideia, mas como o evangelista é quem tem o
alcance do mundo pela palavra e esta sendo a que contém e diz o mundo, é
veículo para a ideia, ressurreição dos mortos.
Hoje
estarás comigo no paraíso é o segundo romance de Bruno Vieira Amaral; o
primeiro, com o qual ganhou o Prêmio José Saramago, foi As primeiras coisas.
O livro referido nesse texto guarda o fôlego das obras feitas para resistir a longos
tempos de debate; o que aqui se evidenciou foi apenas a superfície de algumas
das questões suscitadas. Resta sempre esperar que possamos discuti-las e que o
autor se mantenha com igual e superior vigor: esse é um dilema universal que também
remonta as origens da criação, mas já agora não há musas a invocar ou a culpar quando
os itinerários não vingam.
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