A Herdade, de Tiago Guedes
Por Maria Vaz
A Herdade é ampla, apaixonante, um mundo fechado, cheio de simbolismos,
longe de tudo e todos. Funda-se no apego à terra, à família, a um status quo
que, à primeira vista, nada tem a ver com política instituída ou com protocolos
impostos pela sociedade da época, muito embora existissem regras provenientes
da filosofia imposta pela austeridade do pai de João, que este foi seguindo,
sabemos lá se de forma determinada ou inconsciente e que se vai sedimentando ao
longo da metragem do filme português realizado por Tiago Guedes.
O filme começa com a ideia de que tudo acaba, de que tudo é finito. E
que na sua finitude deparamo-nos com situações-limite e com a continuidade da
vida dos que ficam. É nesse sentido que nos encaminham as primeiras cenas – ao pragmatismo
da forma como o pai de João lida com a finitude da vida, com a morte, com o
eterno devir antes de o relógio fixar os ponteiros num tempo paralisante. O que
não quer dizer que as pessoas não sintam ou não tenham sentimentos. Pelo
contrário. Há coisas que reservamos no nosso interior para permanecerem num
reduto inviolável que a especulação alheia não atinge. Assim nos pareceu o pai
de João – um pragmático que jamais expressaria a sua vulnerabilidade ante o ato
do filho na árvore simbólica da morte. A herdade não acaba. Persiste no tempo e
vai passando, de geração em geração, para alguém da família que a administre.
Por ora era a vez de João, que assume as vestes de personagem principal.
Fruto de tudo isso, João assume uma personalidade forte e um tanto ou
quanto inconvencional para a época. Herda do tio o espírito libertino que o fez
escolher para adornar a sala de jantar um quadro que expunha nudez parcial
feminina, o que, de certa forma, espicaçava os bons costumes da época do Estado
Novo e de todo o contexto sócio político e religioso que o país atravessava.
João e a família podiam ter esse tipo de atitudes porque a herdade tinha um
grande peso no setor primário da economia do país, na medida em que era uma das
maiores herdades da Europa.
Não obstante, dispersavam-se boatos de que a herdade era um ‘mundo à
parte’ dentro do nosso Portugal Salazarista, que valeram a João visitas de
Estado do Ministro do Interior, no sentido de o pressionar a manifestar o seu
apoio ao regime. Como João não se manifestou publicamente, a PIDE não demorou
muito tempo a levar-lhe Leonel, o encarregado supostamente comunista, que
torturaram com queimaduras de cigarros nas costas. Só o libertaram porque João
o foi buscar a Lisboa e ficou em favor ao sogro, que era general do regime, mas
não saiu sem antes manifestar o tal apoio público ao ‘país’.
A vida de João era a herdade. Não existia mundo além dos muros
limítrofes daquelas terras. A vida da esposa de João, Leonor, era a espera, a
educação das crianças e a fuga à realidade, enquanto fumava a sua cigarrette e
bebia o seu cálice de vinho para compensar a falta de atenção do marido e o
isolamento da cidade e da família.
Percebemos mais tarde que a grande paixão do personagem principal era a
irmã da esposa – uma mulher charmosa e divertida que, embora se sentisse
atraída por ele, teve inteligência suficiente para saber que se tivessem casado
seria traída e infeliz. Casou com um conde que era apaixonado por ela.
As aventuras de João ficavam na penumbra. Assim aconteceu ao caso de
João com Rosa, a empregada, que resultou no nascimento de uma criança, um
menino, que Joaquim assumiu como filho.
Podemos dizer que o filme se divide em duas partes: uma anterior à
queda do regime e outra posterior. Com o fim do Estado Novo e o anúncio da
democracia, representado pelo desfile de tanques em contraste com a “Grândola
Vila Morena”, de Zeca Afonso, a passar na rádio na noite em que João e a esposa
regressavam de Lisboa.
A Herdade sobrevive à onda de expropriações da época, embora tivesse
sido várias vezes invadida pelos sindicatos e por trabalhadores que exigiam o
direito ao trabalho quando, em boa verdade, não havia a possibilidade de pagar
a mais ninguém. A falta de trabalho para a quantidade de trabalhadores que
surgiram e a reivindicação de salários mais altos teve lugar numa altura em que
a herdade começava a falir e a viver do lucro acumulado outrora.
O realizador conseguiu mostrar muito bem aos contrastes que se viveram
antes e depois do 25 de Abril. Em pequenas coisas. A evolução é muito bem
feita, desde o figurino até aos detalhes da evolução nos automóveis ou na
degradação da casa da herdade, com o passar do tempo. Também se nota na forma
de tratamento entre as pessoas e nos convívios entre os donos da herdade com os
trabalhadores. Também percebemos pelo filme como as altas figuras do regime se
mudaram para outros países com medo da democracia e na forma como chamavam
terroristas a todos aqueles que se diziam contra o Estado Novo.
O lucro acumulado começa a acabar. Se o filme começa em analepse, chega
uma parte em que a prolepse se insinua. As crianças já são jovens adultos e, em
poucos segundos, passamos para a década de 90 do século XX. A filha legítima
envolve-se romanticamente com o filho ilegítimo e a necessidade de verdade
emerge. Entre a legitimidade e a ilegitimidade, sem cobranças religiosas, sobra
a parentalidade. Leonor toma a decisão de se divorciar de João. O filho mais
velho, com vários problemas de toxicodependência, também o abandona – João
nunca o tratou com afecto. Não via nele capacidades de liderança para
administrar a herdade, que era a sua grande obsessão. Leonel, o encarregado por
quem nutria a maior confiança, também decide ir embora porque João não lhe
conseguia pagar o vencimento e já tinha vários em atraso.
De outras paixões, sobra o cavalo ‘puro sangue lusitano’, a quem
recorria sempre que precisava de desanuviar. O cavalo cai e lesiona-se. João
decide disparar sobre ele. Estava em sofrimento. E João tinha aquela velha
ideia de que tudo acaba. Tudo. Menos a herdade. E a árvore simbólica. E o local
de reflexão a que as situações-limite sempre o conduziram – a pequena ilha no
lago.
A herdade teve a sua estreia mundial, em setembro, na 76ª edição do
Festival de Cinema de Veneza, onde concorreu ao Leão de Ouro. Não tendo
conseguido atingir o feito, vimos atribuído a Tiago Guedes o Bisato D’Oro pela
crítica independente para melhor realizador. Representará Portugal na corrida a
Óscar de melhor filme estrangeiro, pelo que integra a lista dos 93 filmes
indicados. A personagem principal de João é interpretada por Albano Jerónimo,
acompanhado, entre outros atores, de nomes como Sandra Faleiro e Miguel Borges.
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